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Leitura Espiritual |
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO SEGUNDO
Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos Cristológicos
do Símbolo
1. "Concebido do Espírito Santo, nascido da
Virgem Maria".
A origem de Jesus mergulha no mistério. Certamente,
os habitantes de Jerusalém objectavam contra a sua messianidade pelo facto de,
sobre ele, se saber, "de onde vem; mas, quando o Cristo vier, ninguém sabe
de onde vem" (Jo 7,27). A resposta imediata de Jesus, porém, revela
quão insuficiente é este pretenso conhecimento sobre a sua origem: "Eu não
vim de mim mesmo; mas aquele que me enviou existe na sua verdade, e vós não o
conheceis" (7,28). Sem dúvida, Jesus é natural de Nazaré. Mas, de que
adianta um tal conhecimento geográfico para identificar a sua verdadeira
origem? O Evangelho de João acentua, sem cessar, ser "o Pai" a
autêntica origem de Jesus, do qual ele procede de maneira total e diversa de
qualquer outro mensageiro.
Essa origem de Jesus, do mistério de Deus "que
ninguém conhece", é descrita pelas chamadas histórias da infância em
Mateus e Lucas, não para suprimi-la, mas precisamente para confirmá-la como mistério.
Ambos os Evangelhos, sobretudo o de Lucas, narram o início da história de
Jesus, quase totalmente com palavras do Antigo Testamento, com o fito de,
partindo do interior, demonstrar o que ali se realiza, como cumprimento da esperança de Israel, subordinando-o
à história inteira da aliança de Deus com os homens. A palavra da saudação do
anjo à Virgem em Lucas apoia-se estritamente na saudacção com que o profeta
Sofonias se dirige à definitiva Jerusalém (Sof 3,14ss), incluindo, ao
mesmo tempo, as palavras de bênção com que foram saudados os grandes vultos
femininos de Israel (Jz 5,24; Jdt 13,18 s). Portanto, Maria é
saudada como o resto sagrado de Israel, designada como a verdadeira Sião sobre
a qual se concentraram as esperanças nos descalabros da história. No texto de
Lucas, com Maria inicia-se o novo Israel; não somente começa com ela, ela é a
"filha de Sião", cheia de graça, na qual Deus coloca o novo início.
Não menos densa é a palavra central da promessa:
"Virá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te recobrirá, e
por isso também o santo que há de nascer será chamado Filho de Deus" (Lc
1,35). O olhar espraia-se, para além da história da aliança de Israel, até
à criação; o Espírito de Deus conota, no Antigo Testamento, a força criadora de
Deus; ele pairava sobre as águas primitivas transmudando o caos em cosmos (Gén
1,2); com o seu envio, criam-se os seres vivos (Sl 104, 30).
Portanto, trata-se de uma criação nova a realizar-se em Maria: o Deus que
chamou o ser do seio do nada, implanta um novo começo no meio da humanidade; a sua
palavra. torna-se carne. A segunda imagem do nosso texto – a "obumbração
com a força do alto" aponta para o templo de Israel e para a tenda sagrada
no deserto simultaneamente ocultando e revelando a sua glória (Ex 40,34;
1Rs 8,11). Como anteriormente fora descrita qual lídima "filha de
Sião", assim surge Maria agora como o templo sobre o qual desce a nuvem em
que Deus entra no seio da história. Quem se coloca à disposição de Deus,
desaparece com ele na nuvem, no esquecimento e na insignificância, tornando-se,
exactamente assim, participante da sua glória.
O nascimento de Jesus, da Virgem, sobre o qual os
Evangelhos falam desta maneira, tornou-se incómodo para os espíritos
esclarecidos de todos os quadrantes, e não só de ontem. As pesquisas das fontes
minimalizam o testemunho do Novo Testamento; a referência à mentalidade
não-histórica dos antigos relega-o ao reino dos símbolos e o seu enquadramento
na história da religião comprova-o como variante de um mito. De facto, encontra-se
muito difundido no mundo o mito do nascimento miraculoso do salvador. Ele reflecte
um anseio profundo da humanidade: o desejo do rude e puro, do encarnado na
virgem intocada; o anseio pelo autêntico maternal, protector, amadurecido e
bondoso e, afinal, a esperança a ressurgir, sempre que nasce um novo ser humano
– a esperança e alegria encarnada numa criança. Pode ser considerado provável o
conhecimento de tais mitos também em Israel; Isaías ("Eis, a virgem
conceberá...") poderia explicar-se perfeitamente como reflexo de
semelhante esperança, mesmo que deste texto não se conclua, sem mais, que haja
referência a uma virgem em sentido estrito. Se devesse ser entendido a partir
de tais fontes, o texto significaria que, por esses atalhos, o Novo Testamento
teria reassumido as confusas expectativas da humanidade centradas na
Virgem-Mãe; seguramente não se pode rejeitar, sem mais, como insignificante um
tal proto-motivo da história humana.
Ao mesmo tempo, contudo, é mais do que evidente que
os pontos de contacto imediatos do relato neo-testamentário sobre o
nascimento de Jesus da Virgem Maria não se situam no âmbito da história da
religião, mas no Antigo Testamento. As narrações extra-bíblicas deste tipo distinguem-se
profundamente da história do nascimento de Jesus, pelo seu vocabulário e
pelas suas formas de visão; o contraste central está no facto de, nos textos
pagãos, quase sempre a divindade actuar como princípio fecundante, gerador, ou
seja, sob o aspecto mais ou menos sexual, surgindo ela daí, como o
"pai" do salvador, em sentido físico. Nada disto se dá no Novo
Testamento, como vimos: a conceição de Jesus é nova criação, não geração por
Deus. Ali Deus não se torna, por exemplo, o pai biológico de Jesus, e nem o
Novo Testamento nem a Teologia eclesiástica jamais viram nessa narrativa, ou
seja, no acontecimento por ela transmitido, o fundamento para a verdadeira
divindade de Jesus, para a sua "divina filiação". Essa filiação efectivamente
não significa que Jesus seja meio Deus, meio homem, mas para a fé sempre foi
considerado essencial que Jesus seja todo Deus e todo homem. A Sua
divindade não denota uma diminuição na humanidade: caminho seguido por Ário e
Apolinário, os grandes heresiarcas da Igreja antiga. Contra eles foi
defendida, com grande decisão, a íntegra totalidade da humanidade de Jesus,
rejeitando-se assim a fusão do relato bíblico com o mito pagão do semi-Deus
gerado pelas divindades. De acordo com a fé eclesiástica, a filiação divina de
Jesus não se funda no facto de ele não ter tido um pai humano; a divindade de
Jesus não ficaria abalada, Se ele tivesse nascido de um matrimónio humano
normal. A filiação divina, de que nos fala a fé, não é, com efeito, um facto
biológico, mas ontológico; não um acontecimento no tempo, mas na eternidade de
Deus: Deus sempre é Pai, Filho e Espírito; a conceição de Jesus não significa o
nascimento de um novo Deus-Filho, significa que Deus, como Filho, assume em si
a criatura-homem, no homem Jesus, de modo a "ser", ele próprio,
homem.
Em tudo isto, nada se altera com duas expressões
que, aliás, poderiam enganar facilmente os menos avisados. Na narrativa de
Lucas afirma-se, em conexão com a promessa da conceição miraculosa, que o que
nascer "será chamado santo, Filho de Deus" (Lc 1,35). Não
estariam sendo interligados aqui filiação divina e nascimento virginal,
abrindo-se o caminho para o mito? E, no que diz respeito à Teologia
eclesiástica, não estaria ela falando continuamente da filiação divina
"física", traindo desta maneira seu fundo mítico? Comecemos a
responder por aqui. Sem dúvida, a fórmula filiação divina "física" é
sumamente infeliz e equívoca; mostra que, em quase dois milénios, a Teologia
ainda não logrou resolver a sua terminologia dos resíduos da sua origem grega.
"Físico" aí é tomado no sentido de physis, isto é, de
natureza, na acepção da filosofia antiga. Denota aquilo que pertence à
essência. Portanto "filiação física" quer dizer que Jesus é de Deus,
não só quanto à sua consciência, mas também quanto à natureza; com isto o termo
exprime a antítese em relação à ideia de uma simples adopção de Jesus por Deus.
Evidentemente, o ser-de-Deus, indicado pela palavra "físico", não tem
um sentido biológico-generativo, devendo ser compreendido na esfera do ser
divino e da sua eternidade. Quer dizer que em Jesus assumiu a natureza humana
aquele que, desde a eternidade, pertence "fisicamente", (isto é:
realmente, de acordo com o ser) à tríplice-una relação do divino amor.
Que diremos, porém, se um pesquisador tão
benemérito como E. Schweizer se manifesta sobre o nosso problema da seguinte
maneira: "Como Lucas não se interessa pelo aspecto biológico, também não
foi por ele superada a fronteira para uma compreensão metafísica"? Nesta
afirmação quase tudo está mais ou menos errado. O mais espantoso aí é a tácita
equiparação de Biologia e Metafísica. A filiação divina metafísica (essencial)
é aparentemente distorcida para origem biológica, invertendo-se totalmente o
seu significado: ela é, como vimos, precisamente o expresso repúdio de uma
compreensão biológica da origem de Jesus, de Deus. Realmente é triste sermos
obrigados a lembrar expressamente que a esfera da Metafísica não é a da
Biologia. A doutrina eclesiástica sobre a filiação divina de Jesus não se situa
no prolongamento da história do nascimento virginal, mas no prolongamento do
diálogo Abba-Filho e da relação da palavra e do amor encontramos aberta que
ali vimos. O seu conceito de ser não se coloca no plano biológico, mas no do
"eu o sou" do Evangelho de João, que desenvolveu, como já vimos,
neste contexto, todo o radicalismo da ideia de Filho – um radicalismo muito
mais completo e profundo do que as biológicas elucubrações do homem-deus do
mito. Tudo isto já foi largamente considerado: cumpria recordá-lo, porque se
tem a impressão de que a aversão actual à mensagem do nascimento virginal e ao
reconhecimento total da filiação divina de Jesus se baseia num profundo qui-proquo de ambos e numa falsa ligação entre eles – em que parecem continuar a ser
considerados.
Outra questão ainda continua aberta: a do conceito
de Filho na narração de Lucas. A resposta leva-nos, ao mesmo tempo, à questão
propriamente dita que flui das considerações até agora feitas. Se a conceição
de Jesus, da Virgem, pela força criadora de Deus, não tiver relação, pelo menos
imediata, com a sua filiação divina, qual será, afinal, o seu sentido? As nossas
análises anteriores permitem uma resposta fácil sobre o sentido da expressão
"Filho de Deus" no texto da anunciação: em oposição ao simples termo
"o Filho", esta expressão pertence, como ouvimos, à teologia da
eleição e da esperança do Antigo Testamento, caracterizando a Jesus como
herdeiro autêntico das promessas, como rei de Israel e do mundo. Ora, assim descobre-se
o nexo espiritual partindo do qual se deve compreender o nosso relato: a fé
esperançosa de Israel que, como se disse, mal se conservou isenta da influência
das expectativas pagãs sobre nascimentos miraculosos, mas lhes insuflou uma
imagem totalmente nova e lhes deu um sentido completamente diverso.
O Antigo Testamento conhece um rol de partos
miraculosos, sempre nas encruzilhadas decisivas da história da salvação: Sara,
mãe de Isaac (Gén 18), a mãe de Samuel (1Sam 1-3) e a mãe anónima
de Sansão (Jd 13) são estéreis e qualquer esperança humana de procriação
é vã. Em todas as três se dá o nascimento da criança que se torna portadora da salvação
para Israel, como acção da graciosa misericórdia de Deus que torna possível o
impossível (Gén 18,14; Lc 1,37), que eleva os humildes (1Sam 2,7;
1,11; Lc 1,52; 1,48) e derruba do trono os soberbos (Lc 1,52).
Linha idêntica prossegue com Isabel, mãe de João Baptista (Lc 1,7-25.36),
alcançando em Maria o seu ponto culminante e a sua meta. O sentido da história
é sempre o mesmo: a salvação do mundo não vem do homem e da sua própria
capacidade; o homem deve aceitá-la como dádiva, e só como puro dom é que pode
recebê-la. O nascimento virginal não significa um capítulo de ascese, nem
pertence directamente à doutrina da filiação divina de Jesus; ele é, em
primeira e última instância, teologia da graça, mensagem a dizer-nos como nos
sobrevém a nós a salvação: na singeleza do receber como dádiva irresistível do
amor que redime o mundo. No livro de Isaías o pensamento da salvação pela força
exclusiva de Deus encontra grandiosa formulação: "Exulta, ó estéril, tu
que não deste à luz; prorrompe em júbilos e hinos, tu que não experimentaste as
dores do parto; porque os filhos da abandonada são mais numerosos do que os da
casada, diz o Senhor" (Is 54,1; cfr. Gal 4,27; Rom 4,17-22).
No meio da humanidade estéril e desesperançada, Deus estabeleceu em Jesus um
novo início que não é resultado da história, mas dádiva do alto. Se cada homem
já é algo de indizivelmente novo, mais do que a soma dos cromossomos e do
produto de determinado ambiente, uma criatura irrepetível de Deus, Jesus
representa o verdadeiramente novo, não provindo do que é peculiar à humanidade,
mas do Espírito de Deus. Por esta razão, Jesus é Adão pela segunda vez (1Cor
15,17) – com ele começa uma nova hominização. Em oposição a todos os
eleitos antes dele, Jesus não somente recebe o Espírito de Deus, mas,
inclusive na sua existência terrena, Jesus existe exclusivamente pelo
Espírito sendo por isso a realização de todos os profetas: o autêntico profeta.
Em si não seria preciso lembrar que todas essas
considerações somente terão importância na suposição de que realmente se deu o
acontecimento, cujo significado elas procuram aclarar. São interpretações de um
acontecimento; suprimindo este, elas tornar-se-iam mero palavreado, que se
deveria qualificar não só de vazio de sinceridade, mas também de desonesto. De
resto, sobre tais tentativas, por mais bem intencionadas que possam ser, paira
uma discrepância que quase estaríamos tentados a qualificar de trágica: num
momento em que descobrimos a corporeidade do homem com todas as fibras de nossa
existência, capacitando-nos a compreender o seu espírito exclusivamente como
encarnado, como ser-corpo e não como ter-corpo, tenta-se salvar a
fé mediante a sua total desencarnação, refugiando-se numa região de mero
"sentido", de pura interpretação auto-suficiente, que só através de
sua ausência de realidade parece estar subtraída à crítica. Contudo, fé cristã,
na verdade, significa exactamente colocar-se ao lado do Deus que não é prisioneiro
da sua eternidade, nem está limitado apenas ao espiritual, mas que, aqui e
hoje, é capaz de actuar no meio do mundo e que actuou nele em Jesus, o novo
Adão, nascido da Virgem Maria pelo poder criador de Deus, cujo Espírito pairou
nos primórdios sobre as águas, criando o ser do nada.
Impõe-se ainda uma observação. O sentido bem
compreendido de sinal divino do nascimento virginal mostra também qual é o
lugar teológico de uma piedade mariana capaz de ser derivada da fé neo-testamentária.
Não pode basear-se numa Mariologia que represente uma espécie de segunda edição
da Cristologia – não existe nem direito nem razão para semelhante duplicação.
Desejando-se indicar um tratado teológico, ao qual a Mariologia possa pertencer
como sua concretização, o mais indicado seria o tratado da graça, que,
naturalmente forma um todo com a Eclesiologia e com a Antropologia. Como
autêntica "filha de Sião" Maria é o símbolo da Igreja, imagem do
homem crente incapaz de chegar à graça e até a si mesmo, a não ser pela dádiva
do amor – por graça. A palavra com que Bernanos encerra o "Diário de um
cura de aldeia", – "tudo é graça" – palavra em que uma vida
aparentemente confinada à debilidade e ao fracasso se revela como cheia de
riqueza e de realização, esta palavra tornou-se realmente acontecimento em
Maria, a "cheia de graça" (Lc 1,28). Maria não contesta nem
ameaça a exclusividade da salvação por Cristo, mas comprova-a. Imagem da
humanidade que, no seu conjunto, é expectativa, tanto mais precisando dessa
imagem, quanto mais se encontra em perigo de abandonar a esperança,
entregando-se à acção que por indispensável que seja – jamais será capaz de
preencher o vazio que ameaça o homem o qual não encontra aquele amor absoluto a
dar-lhe sentido, solução e o realmente necessário para a vida.
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)