A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XV
CAPÍTULO VII
Motivo do crime e obstinação de Caim que nem a palavra de Deus desviou do
seu premeditado crime.
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Contudo, não o deixa sem uma recomendação santa justa e boa, dizendo:
Sossega: ele voltará para ti e tu o dominarás [i].
Trata-se do irmão? Nada disso. De quê, pois, senão do pecado? Efectivamente,
foi depois de ter dito pecaste que Deus acrescenta sossega: ele
voltará para ti e tu o dominarás. Pode,
realmente, ser assim entendido: esta conversão (volta) para o homem deve ser a
conversão (volta) do pecado, de m aneira que o homem saiba que a mais ninguém
senão a si próprio deve atribuir o pecado. Este é que é o remédio salutar da
penitência, este é que é o pedido oportuno do perdão — que nas palavras para
ti a sua volta (ad te enim conversio ejus) — não se subentende «será», mas «seja»
à maneira de um preceito, e não de uma predição. Porque cada um domina o seu
pecado quando não se põe à sua frente, defendendo-o, mas a si o submete fazendo
penitência. De outra forma será escravo do seu domínio se lhe presta protecção
quando o comete.
Mas o pecado também pode significar a própria concupiscência carnal de que fala
o Apóstolo:
A came tem desejos contrários ao espírito [ii];
e entre os frutos da carne enumera a inveja que espicaçava Caim e o incitava à morte
de seu irmão. Convém que se subentenda «será», ficando assim: «para ti
será o seu regresso (conversio) e tu o dominarás». Realmente, quando se
perturba essa parte carnal a que o Apóstolo chama pecado ao dizer:
Não sou eu que o faço, mas o pecado que habita em mim [iii].
(parte da alma a que os filósofos chamam viciosa, porque não devia arrastar o
espírito, mas submeter-se ao seu império e ser afastada, pela razão, das obras
ilícitas) e quando perturbada, impele a alma ao cometimento de uma acção má, se
se acalmar e obedecer à palavra do Apóstolo:
Não ofereçais os vossos membros ao pecado como instrumentos de
iniquidade [iv]
- ela volta, domada e vencida, para o espírito e submete-se à autoridade da
razão.
Foi isto que Deus prescreveu ao que ardia nas chamas da inveja contra seu irmão
e queria suprimir aquele que devia imitar. «Sossega», diz-lhe; retém a
tua mão fora do crime; não reine o pecado no teu corpo mortal para te tom ar
dócil aos seus desejos; não ofereças ao pecado teus membros como instrumentos
de iniquidade — porque «para
ti será o seu regresso» se, em vez de largares as rédeas ao pecado, o
refreares com a tua calma. E «então tu o dominarás», isto é, quando do
exterior se lhe não permita agir, ele se acostuma, sob o poder do espírito que
o dirige com benevolência, a já se não agitar interiormente.
No mesmo livro sagrado diz-se algo de semelhante da mulher quando, após o
pecado, Deus, perguntando e julgando, proferiu as sentenças de condenação contra
o demónio representado na serpente, contra a mulher e contra o seu marido em
suas próprias pessoas. Efectivamente, disse-lhe:
Multiplicarei as tuas tristezas e o teu gemido. Darás à luz com
dores os teus filhos [v];
e a seguir acrescentou:
Voltarás para teu marido e ele te dominará [vi].
O que se disse a Caim acerca do pecado, ou acerca da concupiscência viciosa da
carne, diz-se nesta passagem acerca da mulher que pecou; donde se deve entender
que o varão para com andar sua mulher deve assemelhar-se ao espírito que com
anda a carne. E por isso que o Apóstolo diz:
O que ama sua mulher a si próprio se ama; pois nunca ninguém à sua
própria carne tem ódio [vii].
Devemos, pois, sanar estes males como sendo nossos e não os condenar com o se alheios
fossem. Mas Caim recebeu aquele preceito de Deus como prevaricador e, subjugado
pela inveja, armou uma cilada e matou o irmão.
Tal foi o fundador da cidade terrestre. Deste modo figurou também os Judeus,
por quem foi morto Cristo, pastor das ovelhas que são os homens, que Abel, o
pastor de ovelhas, que eram os animais, prefigurou. É uma alegoria profética de
que me abstenho agora de falar. Recordo-me de dela ter falado contra o maniqueu
Fausto.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)