Leitura espiritual
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A Cidade de Deus |
Vol. 1
LIVRO
II
CAPÍTULO XXIII
As alterações nas empresas
temporais não dependem do favor ou da hostilidade dos demónios, mas da decisão
do verdadeiro Deus.
Que
vos parece? Não acham que esses deuses ajudaram os homens a satisfazerem as
suas paixões? Não é evidente que não pensaram em refreá-las? Não foram eles que
ajudaram Mário, o plebeu adventício, sanguinário forjador e realizador de
guerras civis, a que chegasse a ser cônsul por sete vezes e a que morresse,
carregado de anos, no seu sétimo consulado, escapando assim às mãos de Sula
prestes a ser o vencedor? E se os deuses o não ajudaram em tudo isto — não é
pouca coisa o que confessam: mesmo que não lhe sejam propícios, ao homem pode
advir toda a felicidade temporal que tanto amam. Mesmo quando os deuses lhes
são adversos, os homens podem, como no caso de Mário, encher-se e gozar de
saúde, força, riquezas, honrarias, dignidade e longevidade. E podem também,
como no caso de Régulo, apesar de os deuses lhes serem propícios, ser
torturados e m orrer no cativeiro, na servidão, nas privações, nas vigílias e
nas dores. Se admitem que assim é, acabam por confessar, em conclusão, que eles
de nada lhes servem e que o seu culto é inútil. De facto, se, em vez das
virtudes da alma e da probidade de vida, cuja recompensa devem esperar só
depois da vida, se empenharam em ensinar ao povo o contrário;
Se,
nos bens passageiros e temporais, nem prejudicam aos que os odeiam nem
favorecem aos que os amam para quê venerá-los? Para quê importuná-los tão
zelosamente com o seu culto? Porque é que murmuram nestes trabalhosos e tristes
tempos como se tivessem de se afastar ofendidos? E por que é que por causa
deles a religião cristã é ofendida com os mais indignos ultrajes? Se nestes
assuntos têm poderes benéficos ou maléficos — porque é que prestaram a
assistência a esse péssimo homem que foi Mário e se desinteressaram desse
óptimo homem que foi Régulo? Não se revelaram eles por esta forma como os mais
injustos e perversos? Se assim julgam que são mais de temer e de merecer, pois
estão enganados: verifica-se que Régulo não os venerou menos do que Mário. Nem
se pense que se deve escolher uma vida depravada lá porque os deuses estimaram
mais a Mário do que a Régulo. Na realidade Metelo, de todos os Romanos o mais
digno de louvores, que teve cinco filhos consulares, mesmo nos assuntos
temporais foi feliz — e Catilina, o pior de todos, foi um desgraçado, oprimido
pela miséria e derrubado na guerra que seus crimes originaram. Mas a mais
verdadeira, a mais segura felicidade, dela só gozam os bons, os que adoram a
Deus, único que a pode conceder.
Quando
a República se perdia mercê dos maus costumes, nada fizeram os deuses para os
orientar ou corrigir de modo a que ela não perecesse. Pelo contrário aumentaram
a depravação e a corrupção dos costumes para que ela morresse. Não finjam pois
de bons, sob pretexto de que se afastaram ofendidos pela iniquidade dos
cidadãos. Certam ente que estavam lá: eles é que se traem e denunciam: não
puderam prestar ajuda com o seu ensino, nem ficar escondidos com o seu
silêncio. Ponho de parte o facto de Mário ter sido recomendado pelos compassivos
habitantes de Minturna à deusa Marica, no bosque a ela consagrado, pedindo a
prosperidade de todos os seus empreendimentos. Tendo ele voltado incólume de
uma situação altamente desesperada, este chefe cruel avançou sobre Roma com um
exército igualmente cruel. Quão sangrenta, quão selvagem foi essa vitória mais
desumana do que a de um inimigo, podem lê-lo nos escritores que o descreveram.
Mas, como já disse, ponho isso de parte. Não atribuo a sorte sanguinária de
Mário a não sei que Marica, mas antes à oculta Providência de Deus para fechar
a boca aos pagãos e deixar livres de erro os que não agem por interesse, mas
que olham para os factos com reflexão. Porque embora os demónios tenham algum
poder nestes assuntos, reduz-se ele, porém aos limites assinalados por uma
secreta e livre decisão do Omnipotente. Não tenhamos em grande conta a
felicidade terrena que muitas vezes se concede mesmo aos maus como Mário.
Também não a consideremos como coisa má pois muitos homens religiosos e bons,
adoradores do verdadeiro Deus, a fruíram contra a vontade dos demónios. Nem
pensemos que devemos tornar propícios ou temer esses imundos espíritos por
causa dos bens ou males terrenos. Porque, assim como os próprios homens maus da
Terra, também eles, os demónios, não podem fazer tudo o que lhes apetece, mas
apenas quanto lhes é permitido por Aquele cujos juízos ninguém compreende
plenamente nem critica com justiça.
CAPÍTULO XXIV
As façanhas de Sula foram
abertamente favorecidas pelos demónios.
Os
tempos de Sula foram tais que se começaram a desejar os anteriores embora
parecesse que ele era o seu vingador. Quando começou a dirigir o exército para
Roma contra Mário, as entranhas da vítima imolada pareceram tão propícias,
escreve Lívio, que o arúspice Postúmio queria que o condenassem à pena capital
se Sula não conseguisse, com o apoio dos deuses, o que tinha em mente. Eis que
«os deuses não tinham abandonado os seus santuários e os seus altares» quando
prediziam o resultado dos acontecimentos sem se preocuparem em nada com a
correcção do próprio Sula. Prometiam com os seus presságios uma grande
felicidade, mas não quebravam com ameaças a sua perversa cupidez.
Depois,
quando estava na Ásia a conduzir a guerra contra Mitrídates, foi-lhe revelado
por Júpiter, por intermédio de Lúcio Tício, que venceria Mitrídates. E assim
aconteceu. Posteriormente, quando pensava voltar a Roma e vingar as injúrias
recebidas e as dos amigos, no sangue dos cidadãos, de novo lhe foi revelado
pelo mesmo Júpiter, por intermédio de um certo soldado da sexta legião: antes
tinha-lhe vaticinado a vitória sobre Mitrídates, mas agora prometia-lhe o poder
com que recuperaria de seus inimigos o governo (rem publicam) sem muito sangue.
Então, tendo perguntado ao soldado que aspecto lhe parecia que tinha, e tendo-o
este indicado, Sula recordou-se que era o mesmo que apresentava o do vaticínio
anterior quando lhe anunciou a vitória sobre Mitrídates.
Poderá
dar-se resposta a isto: porque é que os deuses tiveram o cuidado de anunciar estes
felizes acontecimentos e nenhum tratou de corrigir com uma advertência esse
Sula que iria cometer através de criminosa guerra civil tão grandes males que
não só macularam como também sufocaram por completo a república? Como tantas
vezes disse, foi-nos dado a conhecer nas Escrituras Sagradas, e os próprios
factos o indicam suficientemente, que esses deuses são demónios que tratam do
seu negócio para serem tidos e venerados como deuses e serem obsequiados com
ritos que tornam cúmplices os seus adoradores para que tenham com eles o mesmo
péssimo veredicto no juízo de Deus.
Depois,
quando chegou a Tarento, e lá ofereceu um sacrifício, Sula viu no vértice do
fígado do vitelo a figura de uma coroa de ouro. Então Postúmio, o referido
arúspice, declarou que lhe vaticinava uma gloriosa vitória e ordenou que só ele
comesse daquelas vísceras. Passado um pequeno intervalo o escravo de um certo
Lúcio Pôncio vaticinou aos gritos: «Sou mensageiro que venho de Bellona. A
vitória é tua, Sula». Em seguida acrescentou que o Capitólio iria arder. Dito
isto, saiu imediatamente do acampamento e voltou no dia seguinte mais
desembaraçado e gritou que o Capitólio tinha ardido. E na verdade o Capitólio
tinha ardido. Na realidade a um demónio foi fácil prever e anunciar com rapidez
o sucedido.
Repara
bem nisto que tem o maior interesse para o assunto em causa: a que deuses
desejam estar sujeitos os que blasfemam do Salvador que retira do domínio dos
demónios a vontade dos fiéis! Vaticinando um homem gritou — «a vitória é tua, Sula!»
— e para que se acreditasse que gritava por inspiração divina, predisse também
um facto que iria desde já realizar-se e outro que acabava de se realizar muito
longe donde estava o espírito que falava por seu intermédio. Todavia não
gritou: «Abstem- -te de crimes, Sula!» — crimes horrendos que, uma vez
vencedor, ali cometeu aquele a quem apareceu no fígado do vitelo uma coroa de
ouro como símbolo evidentíssimo da sua vitória. Se tais sinais costumavam dar
os deuses justos e não demónios ímpios, de certeza que o que aquelas entranhas
deveriam mostrar eram nefastos acontecimentos e graves prejuízos para o próprio
Sula. Nem efectivamente aquela vitória foi tão proveitosa para a sua glória
quanto foi nociva a sua cupidez. Dela resultou que, ansiando pela glória e
tendo-se exalçado e mergulhado na prosperidade, foi maior o dano que ele
próprio sofreu nos seus costumes do que os danos que no corpo infligiu aos
inimigos.
Estas
coisas, na verdade tristes e dignas de dó, é que aqueles deuses não vaticinaram
nas entranhas do sacrifício, nos augúrios, nos sonhos ou vaticínios fosse de
quem fosse. Tinham mais medo de serem corrigidos do que de serem vencidos. Mais
ainda: faziam com que o glorioso vencedor dos seus concidadãos fosse vencido
pelos seus nefandos crimes e deles cativo e por aí ficasse mais estreitamente
submetido aos demónios.
C A P ÍT U L O XXV
Os espíritos malignos
incitam os homens ao crime e, para que o cometam, apresentam-lhes a autoridade
divina do seu exemplo.
Depois disto, quem não compreende — a não ser
aqueles que preferem imitar tais deuses a separar-se da sua companhia com a
graça divina — quem não verá quanto estes espíritos malignos se esforçam por
prestar pelo seu exemplo uma autoridade divina aos crimes? Os próprios deuses
foram surpreendidos a lutar uns com os outros numa ampla planície da Campânia,
onde, não muito depois, os exércitos dos cidadãos se envolveram em terrível
combate. Ouviu-se lá, primeiro um tremendo fragor e logo depois dizem muitos
que viram lutar dois exércitos durante vários dias. Quando esta batalha findou,
encontraram vestígios, tanto de homens como de cavalos — o que era de esperar
de tal conflito. Se é verdade que os deuses lutaram entre si, então já se
desculpam as guerras civis entre os homens — notando-se, todavia, até onde é
que vai a malícia ou a miséria de tais deuses. Mas, se fingiram que batalhavam,
que mais fizeram senão convencer os Romanos de que, quando se envolvem em
guerras civis a exemplo dos deuses, nada de criminoso cometem? É certo que já
tinham começado as guerras civis; já dantes tinha havido, em batalhas nefandas,
horrendas carnificinas; já a muitos comovera o caso de certo soldado que, ao
despojar um morto, reconheceu no cadáver desnudado o seu próprio irmão e,
amaldiçoando as guerras civis, aí a si mesmo se aniquilou e se juntou ao corpo
do irmão. E, para que ninguém tivesse aversão a tamanho mal e antes o ardor das
armas criminosas fosse aumentando cada vez mais, — os nefastos demónios (que
eles, tendo-os por deuses, entendiam que deviam louvar e venerar), quiseram
mostrar-se perante os homens a lutar entre si, para que a sensibilidade cívica
não receasse imitar tais pugnas, mas, pelo contrário, desculpasse o crime
humano com o exemplo divino.
Com
igual astúcia também os espíritos malignos exigiram que se lhes dedicassem e
consagrassem jogos cénicos, do que já falámos bastante. Aí se celebram as
enormes imoralidades dos deuses com cânticos de cena e com representação de
fábulas. Cada um poderá crer que eles fazem tais coisas; cada um poderá não o
crer. Mas o certo é que vendo-os deliberadamente exibirem-se em tais actos, os
imitará sem escrúpulos. E, para que ninguém julgasse que os poetas comemoravam
as suas pugnas e infâmias em vez de proezas dignas deles — eles próprios
confirmaram tais poemas para assegurarem o engano dos homens. Confirmaram as
suas pugnas não só nas representações teatrais, mas também mostrando-se aos
olhos humanos no campo de batalha.
Fomos
obrigados a dizer estas coisas porque os seus autores não tinham a menor dúvida
em dizer e escrever que a República Romana, por causa dos péssimos costumes dos
seus cidadãos, já se tinha perdido e dela já nada existia antes da vinda de
Jesus Cristo Nosso Senhor. Não atribuem esta perda aos seus deuses. Mas imputam
ao nosso Cristo os males transitórios que não podem causar a perdição dos bons,
quer estes continuem a viver quer lhes sucumbam. O certo é que o nosso Cristo
frequentemente deu tantos preceitos contra os costumes depravados a favor dos
bons costumes; ao passo que os deuses não contribuíram com preceitos
semelhantes a favor do seu povo fiel para que a república se não perdesse. Pelo
contrário: contribuíram até para a sua perda corrompendo os seus costumes com a
nociva autoridade dos seus exemplos.
Ninguém
ousará, julgo eu, dizer que ela sucumbiu então, porque
Retiram-se todos abandonando altares e
santuários, estes deuses [i],
como
«amigos da virtude» que se sentiram ofendidos com os vícios dos homens. Porque
os inúmeros sinais das entranhas, dos áugures, dos adivinhos com que mostravam
o seu empenho em serem gabados e com que se vangloriavam da sua pretensa
ciência do futuro e não menos pretensa ajuda nos combates, provam que eles
sempre lá estiveram. Se na verdade tivessem partido, os Romanos ter-se- -iam
sentido menos incitados à guerra civil pelas suas paixões do que efectivamente
o foram por incitação dos deuses.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Discessere
omnes adytis arisque relictis Di. Vergílio, Eneida, II, 351-352.