|
Leitura Espiritual |
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO SEGUNDO
Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos
Cristológicos do Símbolo
2. Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado,
morto e sepultado.
a) Essência do culto cristão.
Concluímos que a essência do culto cristão não se
encontra no sacrifício das coisas, nem em alguma substituição qualquer, como se
lê repetidamente nas teorias sobre a Missa, a partir do século XVI – segundo as
quais, deste modo, seria reconhecido o supremo domínio de Deus sobre tudo.
Todas estas considerações são ultrapassadas pelo acontecimento de Cristo e pela
sua interpretação bíblica. O culto cristão consiste no absoluto do amor, tal
como podia oferecê-lo somente alguém no qual o amor divino se tornou amor
humano; consiste na nova forma da representação incluída neste amor, a saber,
que ele ocupou o nosso lugar e nós nos deixamos tomar por ele. Portanto, significa
que nos cumpre deixar de lado as nossas tentativas de justificação que, no
fundo, não passam de desculpas, colocando-nos uns contra os outros – como a
tentativa de Adão em desculpar-se foi uma escusa e um atirar a culpa sobre o
outro, finalmente uma tentativa de acusar o próprio Deus: "A mulher que
pusestes ao meu lado, foi quem me deu daquela árvore, e eu comi" (Gen 3,12).
Este culto exige que, ao invés de opor afirmação destrutiva, da auto-justificação,
aceitemos a dádiva do amor de Jesus Cristo por nós, que nos deixemos unir nele,
tornando-nos adoradores com ele e nele. Agora será possível responder a algumas
perguntas que ainda se apresentam.
1. Face à mensagem de amor do Novo
Testamento, hoje impõe-se cada vez mais uma tendência de identificar completamente
o culto cristão com o amor fraterno, não se querendo admitir mais nenhum amor
directo a Deus, nenhuma veneração de Deus: reconhece-se exclusivamente o
horizontal, negando-se o vertical ou seja a relação imediata com Deus. Depois
do que se disse, não será difícil perceber por que uma tal concepção – à
primeira vista – de aparência tão simpática, falha na questão do Cristianismo,
e com ela, no problema do autêntico humanismo. Um amor fraterno auto-suficiente
descambaria em egoísmo extremado de auto-afirmação. Um tal amor recusa a sua
abertura última, a sua tranquilidade, o seu desprendimento, não aceitando a
necessidade da salvação deste amor por intermédio do único que realmente amou
bastante. Finalmente, um tal amor, apesar de toda a bem-querença, presta
injustiça a si mesmo e ao outro, porque o homem não se realiza apenas na
simpatia mútua do co-humanismo, mas somente na reciprocidade daquele amor
desinteressado que glorifica o próprio Deus. O desinteresse da simples adoração
representa a suprema possibilidade do humanismo e <sua verdadeira e
definitiva libertação.
2. Sobretudo das devoções tradicionais
à paixão nasce, frequentes vezes, a pergunta: de que modo, sacrifício (= adoração)
e dor estão interligados? De acordo com as considerações anteriores, o
sacrifício cristão nada mais é do que o êxodo do "para", a
abandonar-se a si; realizado substancialmente no homem que é totalmente êxodo,
auto-superação do amor. Por conseguinte, o princípio constitutivo do culto
cristão é este movimento do êxodo, com o seu rumo duplo a Deus e ao próximo.
Levando o ser-homem a Deus, Cristo introdu-lo no seio da sua salvação. Por isso,
o acontecimento da cruz é pão de vida "para os muitos" (Lc 22,19),
porque o crucificado refundiu o corpo da humanidade no "sim" da adoração.
Este acontecimento tornou-se, assim, totalmente "antropocêntrico",
por ter sido teocentrismo radical, entrega do "eu" e, com ela, da
essência do homem a Deus. Esse êxodo do amor é o "êxtase" do homem
para fora de si, no qual, colocado infinitamente acima de si, é, como que,
despedaçado, muito além das suas aparentes possibilidades de distensão; na
mesma medida, adoração (sacrifício) conota simultaneamente cruz, sofrimento em
ser esfacelado, morte do grão de trigo, que, somente na morte pode frutificar.
Mas assim também se torna claro que é secundário o elemento doloroso que flui
de um elemento primeiro, anterior, somente dele recebendo o sentido. O
princípio constitutivo do sacrifício não é a destruição, mas o amor. E somente
na medida em que o amor rompe, abre, crucifica, rasga, estas actividades
integram o sacrifício: como forma do amor num mundo marcado pela morte e pelo
egoísmo.
Relativamente a este assunto existe um texto de
Jean Daniélou, referente a outro problema, mas que me parece muito apto para
aclarar mais o pensamento que aqui nos ocupa: "Entre o mundo pagão e o
Deus trino existe uma única ligação, a saber, a cruz de Cristo. Se nos
colocamos nesta terra de ninguém tentando reatar os laços entre o mundo pagão e
o Deus trino, como ainda nos admiraríamos de somente poder fazê-lo na cruz de
Cristo? Devemos tornar-nos semelhantes a essa cruz, levá-la em nós e, como diz
S. Paulo a respeito do mensageiro da fé, "levar sempre no corpo os
sofrimentos de Jesus" (2Cor 4,10). Essa dilaceração que é para nós
a cruz, essa impossibilidade do coração de abrigar ao mesmo tempo o amor à SS.
Trindade e o amor a um mundo alienado da trindade, eis em que consiste a agonia
do Filho Unigénito, a cuja participação somos convidados. Ele, que carregou em
si essa separação com o fim de eliminá-la e que a eliminou exclusivamente por
havê-la levado em si anteriormente, ele envolve tudo de um extremo a outro. Sem
abandonar o seio da Trindade, Cristo estende-se ao limite extremo da miséria
humana, preenchendo todo o espaço. Esse estender-se de Cristo simbolizado pelas
quatro direcções da cruz, é a misteriosa expressão da nossa própria dilaceração e torna-nos semelhantes a ele". Em última análise, a dor é resultado e
expressão da dilaceração de Jesus Cristo, desde a sua existência em Deus até ao
inferno do "Meu Deus, por que me abandonaste?" Quem tiver a
existência assim distendida a ponto de encontrar-se simultaneamente mergulhado
em Deus e abismado nas profundezas da criatura abandonada por Deus, deve, por
assim dizer, esfacelar-se – este estará realmente "crucificado". Ora,
esse dilaceração é idêntica ao amor: é sua realização até o fim (Jo 13,1)
e expressão concreta da amplidão que o amor cria.
A partir deste ponto de vista poderia tornar-se
claro o verdadeiro fundo de uma devoção à paixão, que tenha sentido, e tornar-se
evidente como se entrosam devoção à paixão e espiritualidade apostólica.
Poderia tornar-se evidente que o fervor apostólico, o serviço em prol do homem
e do mundo se interpenetraram com o cerne da mística cristã e da devoção cristã
à paixão. As duas coisas não se aniquilam mas uma vive no âmago da outra. Assim
também deveria ter-se tornado claro que na cruz não se trata de alguma adição
de sofrimentos físicos, como se o seu valor redentor consistisse na maior soma
possível de torturas. Como poderia Deus alegrar-se com o sofrimento da sua
criatura, ou até do seu Filho, ou mesmo ver ai a moeda com que se devesse
comprar dele a reconciliacção? Bíblia e fé cristã estão muito distanciadas de
tais ideias. Não é a dor como tal que conta, mas a vastidão do amor,
desdobrando a existência de modo tal que une o distante e o próximo, pondo em
contato com Deus o homem abandonado por Deus. Só o amor confere rumo e sentido
ao sofrimento. Fosse outro o caso, e os algozes do Calvário teriam sido
verdadeiros sacerdotes; e os que provocaram a dor teriam oferecido o
sacrifício. Mas, como não dependia disto, mas daquele núcleo que o sustenta e
realiza, não foram os carrascos e sim Jesus o sacerdote a unir em seu corpo os
dois extremos separados do mundo (Ef 2,13 s).
E com isto respondemos substancialmente à pergunta
da qual partimos: Não seria um conceito indigno de Deus representá-lo como um
Deus a exigir a morte do Filho para aplacar a sua própria ira? A isto apenas se
pode responder: De facto, não se pode pensar assim de Deus. Mas, uma tal ideia
de Deus nada tem de comum com o conceito de Deus no Novo Testamento. Porquanto
este trata exactamente de modo inverso, do Deus que, por si mesmo, queria ser,
em Cristo, o ómega a última letra – do alfabecto da criação. Trata do Deus que
é amor em acto, o puro "para" e que, por isto, penetra
necessariamente no incógnito do último verme (Sl 22, 7). Trata do Deus
que se identifica com a sua criatura, pondo no contineri a minimo, no
ser apanhado e subjugado e envolvido pelo mínimo, aquela "super-abundância"
que lhe confere credenciais de Deus.
A cruz é revelação. Não revela uma coisa qualquer,
mas Deus e o homem. Descobre quem é Deus e como é o homem. Na filosofia grega
existe um estranho pressentimento disto: a imagem do justo crucificado descrita
por Platão. O grande filósofo pergunta qual seria a situação, neste mundo, de
um homem totalmente justo. Chega ao resultado de que a justiça de um homem só
se torna perfeita e comprovada, caso ele tome sobre si a aparência da injustiça,
porque só então aparece que ele não segue a opinião dos homens, mas se coloca
unicamente ao lado da justiça por ela própria. Portanto, de acordo com Platão,
o justo autêntico há-de ser um incompreendido e perseguido; aliás, Platão não
receia escrever: "Então hão-de dizer que o justo, nestas circunstâncias,
será flagelado, torturado, amarrado, que os olhos lhe serão vazados a fogo e,
finalmente, após todos estes maus tratos, será crucificado...". Este texto, escrito 400 anos antes de Cristo, sempre voltará a comover
profundamente o cristão. Na seriedade da reflexão filosófica prevê-se que o
justo perfeito no mundo deve ser o justo crucificado; pressentiu-se aí algo daquela
revelação do homem que se realiza na cruz.
O justo perfeito, quando apareceu, tornou-se o
crucificado, foi entregue à morte pela justiça; e isto diz-nos impiedosamente o
que é o homem: És de tal modo, ó homem, que não podes suportar o justo, és de tal
modo que o simplesmente amante se torna louco, espancado, rejeitado. Tu, como
injusto, sempre precisas da injustiça do outro, para te sentires desculpado,
não podendo, portanto, tirar proveito do justo que parece roubar-te essa
desculpa. Eis o que és. João resumiu tudo isto no ecce homo! ("eis,
isto é o homem!") de Pilatos, cujo sentido fundamental é: esta é a situação
do homem. Este é o homem. A verdade do homem é sua ausência de verdade. O verso
do salmista "todo homem é um mentiroso" (Sl 116 [115], 11) e
vive alhures contra a verdade, já trai o que vem a ser o homem. A verdade do
homem consiste em continuamente se chocar contra a verdade; o justo crucificado
torna-se assim o espelho onde o homem se vê sem retoque. Mas, a cruz não revela
o homem apenas, e sim também a Deus: eis quem é Deus, que se identifica com o
homem até este abismo e que julga salvando. No abismo do fracasso humano
descobre-se o abismo ainda mais inesgotável do amor divino. E assim a cruz
realmente é o centro da revelação, de uma revelação que não comunica qualquer
espécie de proposições, até então desconhecidas, mas que nos comunica e
descobre a nós, revelando-nos perante Deus e revelando a Deus no nosso meio.
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)