EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO IV
O AMOR NO MATRIMÓNIO
Matrimónio e virgindade.
A virgindade e o
matrimónio são – e devem ser – modalidades diferentes de amar, porque «o homem não pode viver sem amor. Ele
permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de
sentido, se não lhe for revelado o amor».
O celibato corre o risco
de ser uma cómoda solidão, que dá liberdade para se mover autonomamente, mudar
de local, tarefa e opção, dispor do seu próprio dinheiro, conviver com as mais variadas
pessoas segundo a atracção do momento.
Neste caso, sobressai o
testemunho das pessoas casadas.
Aqueles que foram chamados
à virgindade podem encontrar, nalguns casais de esposos, um sinal claro da
fidelidade generosa e indestrutível de Deus à sua Aliança, que pode estimular
os seus corações a uma disponibilidade mais concreta e oblativa.
Com efeito, há pessoas
casadas que mantêm a sua fidelidade, quando o cônjuge se tornou fisicamente
desagradável ou deixou de satisfazer as suas necessidades; e fazem-no, não
obstante muitas ocasiões os convidarem à infidelidade ou ao abandono. Uma
mulher pode cuidar do marido doente e ali, ao pé da Cruz, volta a oferecer o «sim» do seu amor até à morte.
Em semelhante amor,
manifesta-se de forma esplêndida a dignidade de quem ama, dignidade como
reflexo da caridade, já que é mais próprio da caridade amar do que ser amado.
Uma capacidade de serviço
oblativo e carinhoso pode ser observada também em muitas famílias, com filhos
difíceis e até ingratos.[i]
Isto faz desses pais um
sinal do amor livre e desinteressado de Jesus. Tudo isto se torna, para as
pessoas celibatárias, um convite a viverem a sua dedicação ao Reino com maior
generosidade e disponibilidade.
Hoje, a secularização
ofuscou o valor duma união para toda a vida e debilitou a riqueza da dedicação
matrimonial, pelo que «é preciso
aprofundar os aspectos positivos do amor conjugal».
A transformação do amor.
O alongamento da vida
provocou algo que não era comum noutros tempos: a relação íntima e a mútua
pertença devem ser mantidas durante quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera
a necessidade de renovar repetidas vezes a recíproca escolha.
Talvez o cônjuge já não
esteja apaixonado com um desejo sexual intenso que o atraia para outra pessoa,
mas sente o prazer de lhe pertencer e que esta pessoa lhe pertença, de saber
que não está só, de ter um «cúmplice»
que conhece tudo da sua vida e da sua história e tudo partilha.
É o companheiro no caminho
da vida, com quem se pode enfrentar as dificuldades e gozar das coisas lindas.
Também isto gera uma satisfação, que acompanha a decisão própria do amor conjugal.
Não é possível prometer
que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um
projecto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a
morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade.[ii]
O amor, que nos
prometemos, supera toda a emoção, sentimento ou estado de ânimo, embora possa
incluí-los. É um querer-se bem mais profundo, com uma decisão do coração que
envolve toda a existência.
Assim, no meio de um
conflito não resolvido e ainda que muitos sentimentos confusos girem pelo
coração, mantém-se viva dia-a-dia a decisão de amar, de se pertencer, de
partilhar a vida inteira e continuar a amar-se e perdoar-se. Cada um dos dois
realiza um caminho de crescimento e mudança pessoal.
No curso de tal caminho, o
amor celebra cada passo, cada etapa nova.
Na história de um casal, a
aparência física muda, mas isso não é motivo para que a atracção amorosa
diminua. Um cônjuge enamora-se pela pessoa inteira do outro, com uma identidade
própria, e não apenas pelo corpo, embora este corpo, independentemente do
desgaste do tempo, nunca deixe de expressar de alguma forma aquela identidade
pessoal que cativou o coração.
Quando os outros já não
podem reconhecer a beleza desta identidade, o cônjuge enamorado continua a ser
capaz de a individuar com o instinto do amor, e o carinho não desaparece. Reitera
a sua decisão de lhe pertencer, volta a escolhê-lo, e exprime esta escolha numa
proximidade fiel e cheia de ternura.
A nobreza da sua opção
pelo outro, por ser intensa e profunda, desperta uma nova forma de emoção no
cumprimento desta missão conjugal. Com efeito, «a emoção provocada por outro ser humano como pessoa (...) não tende, de
per si, para o acto conjugal».
Adquire outras expressões
sensíveis, porque o amor «é uma única
realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra
dimensão sobressair mais».
O vínculo encontra novas
modalidades e exige a decisão de reatá-lo repetidamente; e não só para o
conservar, mas para o fazer crescer.
É o caminho de se
construir dia após dia.
Entretanto nada disto é
possível, se não se invoca o Espírito Santo, se não se clama todos os dias
pedindo a sua graça, se não se procura a sua força sobrenatural, se não Lhe
fazemos presente o desejo de que derrame o seu fogo sobre o nosso amor para o
fortalecer, orientar e transformar em cada nova situação.[iii]
(cont)
(revisão da versão
portuguesa por AMA)
[i] Carta enc. Redemptor
hominis (4 de Março de 1979), 10: AAS 71 (1979), 274. 172 Cf. Tomás de Aquino,
Summa theologiae, II-II, q. 27, art. 1.
[ii] Pont. Conselho para
a Família, Família, matrimónio e « uniões de facto» (26 de Julho de 2000), 40.
[iii]
João Paulo II,
Catequese (31 de Outubro de 1984), 6: Insegnamenti 7/2 (1984), 1072;
L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 04/XI/1984), 12. 175 Bento XVI,
Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 8: AAS 98 (2006), 224.