A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIV
CAPÍTULO XXVII
Dos anjos e dos homens pecadores cuja perversidade não pode perturbar a
ordem providencial.
Por conseguinte, os pecadores, sejam eles anjos sejam homens, nada podem fazer
que impeça
as grandes obras do Senhor, procuradas em todas as
suas vontades,[i]
— porque Aquele que providente e omnipotentemente distribui por cada um o que a
cada um convém, sabe muito bem utilizar-se dos bons e dos maus. E por isso (depois
de, em castigo da sua primeira vontade má, o anjo mau ter sido condenado e de
tal forma endurecido ao
ponto de, para o futuro, já não poder ter vontade boa) — porque é que Deus não havia de ter dele feito
bom uso permitindo que o primeiro homem, criado recto, isto é, com vontade boa,
fosse por ele tentado? Este homem tinha sido, efectivamente, criado de tal modo
que, se confiasse na ajuda de Deus, mantendo-se bom, venceria o mau anjo — mas
abandonando Deus, seu criador, e a sua ajuda, devido a uma orgulhosa
complacência em si mesmo, seria vencido;
seria digno de recompensa se conservasse recta a sua boa vontade com a ajuda de
Deus — e de castigo se abandonasse Deus com vontade perversa.
Embora não pudesse confiar na ajuda de Deus sem essa mesma ajuda, nem por isso
perdia a faculdade de renunciar aos benefícios da graça divina pondo em si
mesmo as suas complacências. De facto, assim como não está no nosso poder viver
nesta carne sem o apoio dos alimentos (mas está no nosso poder nela não viver:
é o que fazem os que a si próprios se matam), assim também não estava no poder
do homem viver bem, mesmo no Paraíso, sem a ajuda de Deus; mas estava em seu
poder viver mal, perdendo a felicidade e incorrendo no mais justo dos castigos.
Mas, conquanto Deus não desconhecesse a futura queda do homem, — porque teria
de impedir que o homem fosse tentado pela malícia do anjo mau? É que, realmente,
sem de modo algum duvidar de que o homem seria vencido, previu também que a
posteridade do homem, sustentada pela sua graça, triunfaria do próprio Diabo
para maior glória dos santos. E assim aconteceu: nenhum futuro está oculto a
Deus, nem este força com a sua presciência ninguém a pecar — e mostra, pela experiência
posterior, às criaturas racionais (angélicas e humanas) quanto difere a
presunção própria de cada um da protecção de Deus. Quem se atreve a pensar ou a
afirmar que não esteve no poder de Deus impedir a queda do anjo e do homem?
Preferiu, todavia, não lhes retirar esse poder, e demonstrar assim de quanto
mal era capaz a soberba deles e de quanto bem era capaz a sua graça.
CAPÍTULO XXVIII
Propriedades das duas Cidades — a Terrestre e a Celeste.
Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus — a
terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si — a celeste.
Aquela glorifica-se em si própria — esta no Senhor;
aquela solicita dos homens a glória — a maior glória desta
consiste em ter Deus com o testem unha da sua consciência;
aquela na sua glória levanta a cabeça — esta diz ao seu Deus:
Tu és a minha glória, tu levantas a minha cabeça [ii] ;
aquela nos seus príncipes ou nas nações que subjuga, e dominada
pela paixão de dominar — nesta servem mutuamente na caridade: os chefes dirigindo, os súbditos obedecendo;
aquela ama a sua própria força nos seus potentados — esta diz ao
seu Deus:
Amar-te-ei, Senhor, minha fortaleza [iii];
por isso, naquela, os sábios vivem com o ao homem apraz ao
procurarem os bens do corpo, ou da alma, ou dos dois: e os que puderam conhecer
a Deus
não o glorificaram como Deus, nem lhe prestaram graças, mas
perderam-se nos seus vãos pensamentos e obscureceram o seu coração insensato.
Gabaram-se de serem sábios [iv]
(isto é, exaltando-se na sua sabedoria sob o império do orgulho)
tomaram-se loucos — e substituíram a glória de Deus incorruptível por imagens
representando o homem corruptível, aves, quadrúpedes e serpentes [v],
(porque à adoração de tais ídolos conduziram os povos ou nisso os seguiram)
e veneraram e prestaram culto a criaturas em vez de ao Criador que
é bendito para sempre [vi],
— mas nesta só há uma sabedoria no homem: a piedade que presta ao verdadeiro
Deus o culto que lhe é devido e que espera, com o recompensa na sociedade dos
santos (tanto dos homens com o dos anjos),
que Deus seja tudo em todos [vii].
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[vii] I Corint.,
X V, 28.