03/06/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XIV

CAPÍTULO XXVII

Dos anjos e dos homens pecadores cuja perversidade não pode perturbar a ordem providencial.

Por conseguinte, os pecadores, sejam eles anjos sejam homens, nada podem fazer que impeça

as grandes obras do Senhor, procuradas em todas as
suas vontades,
[i]

— porque Aquele que providente e omnipotentemente distribui por cada um o que a cada um convém, sabe muito bem utilizar-se dos bons e dos maus. E por isso (depois de, em castigo da sua primeira vontade má, o anjo mau ter sido condenado e de tal forma endurecido ao
ponto de, para o futuro, já não poder ter vontade boa) —  porque é que Deus não havia de ter dele feito bom uso permitindo que o primeiro homem, criado recto, isto é, com vontade boa, fosse por ele tentado? Este homem tinha sido, efectivamente, criado de tal modo que, se confiasse na ajuda de Deus, mantendo-se bom, venceria o mau anjo — mas abandonando Deus, seu criador, e a sua ajuda, devido a uma orgulhosa complacência em si  mesmo, seria vencido; seria digno de recompensa se conservasse recta a sua boa vontade com a ajuda de Deus — e de castigo se abandonasse Deus com vontade perversa.
Embora não pudesse confiar na ajuda de Deus sem essa mesma ajuda, nem por isso perdia a faculdade de renunciar aos benefícios da graça divina pondo em si mesmo as suas complacências. De facto, assim como não está no nosso poder viver nesta carne sem o apoio dos alimentos (mas está no nosso poder nela não viver: é o que fazem os que a si próprios se matam), assim também não estava no poder do homem viver bem, mesmo no Paraíso, sem a ajuda de Deus; mas estava em seu poder viver mal, perdendo a felicidade e incorrendo no mais justo dos castigos.

Mas, conquanto Deus não desconhecesse a futura queda do homem, — porque teria de impedir que o homem fosse tentado pela malícia do anjo mau? É que, realmente, sem de modo algum duvidar de que o homem seria vencido, previu também que a posteridade do homem, sustentada pela sua graça, triunfaria do próprio Diabo para maior glória dos santos. E assim aconteceu: nenhum futuro está oculto a Deus, nem este força com a sua presciência ninguém a pecar — e mostra, pela experiência posterior, às criaturas racionais (angélicas e humanas) quanto difere a presunção própria de cada um da protecção de Deus. Quem se atreve a pensar ou a afirmar que não esteve no poder de Deus impedir a queda do anjo e do homem? Preferiu, todavia, não lhes retirar esse poder, e demonstrar assim de quanto mal era capaz a soberba deles e de quanto bem era capaz a sua graça.

CAPÍTULO XXVIII


Propriedades das duas Cidades — a Terrestre e a Celeste.

Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus — a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si — a celeste.

Aquela glorifica-se em si própria — esta no Senhor;

aquela solicita dos homens a glória — a maior glória desta consiste em ter Deus com o testem unha da sua consciência;


aquela na sua glória levanta a cabeça — esta diz ao seu Deus:

Tu és a minha glória, tu levantas a minha cabeça [ii] ;

aquela nos seus príncipes ou nas nações que subjuga, e dominada pela paixão de dominar — nesta servem mutuamente na caridade: os chefes dirigindo, os súbditos obedecendo;

aquela ama a sua própria força nos seus potentados — esta diz ao seu Deus:

Amar-te-ei, Senhor, minha fortaleza [iii];

por isso, naquela, os sábios vivem com o ao homem apraz ao procurarem os bens do corpo, ou da alma, ou dos dois: e os que puderam conhecer a Deus

não o glorificaram como Deus, nem lhe prestaram graças, mas perderam-se nos seus vãos pensamentos e obscureceram o seu coração insensato. Gabaram-se de serem sábios [iv]

(isto é, exaltando-se na sua sabedoria sob o império do orgulho)

tomaram-se loucos e substituíram a glória de Deus incorruptível por imagens representando o homem corruptível, aves, quadrúpedes e serpentes [v],

(porque à adoração de tais ídolos conduziram os povos ou nisso os seguiram)

e veneraram e prestaram culto a criaturas em vez de ao Criador que é bendito para sempre [vi],

— mas nesta só há uma sabedoria no homem: a piedade que presta ao verdadeiro Deus o culto que lhe é devido e que espera, com o recompensa na sociedade dos santos (tanto dos homens com o dos anjos),

que Deus seja tudo em todos [vii].


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)



[i] Salmo CX, 2.
[ii] Salmo III, 4.
[iii] Salmo XVII, 2.
[iv] Rom., I, 21-22.
[v] Rom., I, 23-24.
[vi] Rom., I, 25.
[vii] I Corint., X V, 28.

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