Questão
5: Da assunção das partes da natureza humana
Art.
3 — Se o Filho de Deus assumiu a alma.
O terceiro discute-se assim. Parece
que o Filho de Deus não assumiu a alma.
1. — Pois, João expondo o mistério da Encarnação,
disse: o Verbo se fez carne, sem fazer menção nenhuma da alma. Ora, não diz que
se fez carne porque nela se tivesse convertido, mas por a ter assumido. Logo,
parece que não assumiu a alma.
2. Demais. - A alma é necessária ao
corpo para ser vivificado por ela. Ora, para isso não era necessária ao corpo
de Cristo como parece, pois é do próprio Verbo de Deus que diz a Escritura:
Senhor, em ti está a fonte da vida. Logo, era supérflua a presença da alma onde
estava a do Verbo. Mas, Deus e a natureza não fazem nada em vão, como também o
diz o Filósofo. Logo, parece que o Filho de Deus não assumiu a alma.
3. Demais. — Da união da alma e do
corpo constitui-se uma natureza comum, que é a espécie humana. Ora, em Nosso
Senhor Jesus Cristo não podemos admitir uma espécie comum, como diz Damasceno.
Logo, não assumiu a alma.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Não
ouçamos aqueles que dizem ter sido só o corpo humano a ser assumido pelo Verbo
de Deus, esses ouvem o que foi dito - O Verbo se fez carne - para negarem que
esse homem tivesse a alma ou qualquer outra causa humana, além só da carne.
Como diz Agostinho, foi
primeiro opinião de Ário, e depois, de Apolinário, que o Filho de Deus assumiu
só a carne sem a alma e ensinavam que o Verbo estava unido à carne, como se lhe
fosse a alma. Donde resultava que em Cristo não existiam duas naturezas, mas
uma só, pois, da alma e da carne constitui-se uma só natureza.
Mas esta opinião não pode subsistir,
por três razões.
Primeiro, porque repugna à autoridade
da Escritura, na qual o Senhor faz menção da sua alma. Assim, dizem o
Evangelhos: A minha alma está numa tristeza mortal e: Tenho o poder de pôr a
minha alma. — Mas a isto respondia Apolinário que, nessas palavras, a alma é
tomada metaforicamente, assim, desse modo é que o Antigo Testamento se refere à
alma, quando diz: A minha alma aborrece as vossas calendas e as vossas
solenidades. - Mas, como diz Agostinho, os Evangelistas nas narrações dos
Evangelhos narram que Jesus se admirou, que se encolerizou que se contristou e
teve fome. E isso tudo demonstra que tinha verdadeiramente uma alma, assim como
os factos de comer, de dormir e de se fatigar demonstram que tinha verdadeiramente
um corpo humano. Do contrário, se fossem essas expressões metafóricas, como
lemos coisas semelhantes de Deus, no Antigo Testamento, desapareceria a fé da
narração Evangélica. Pois, é uma coisa a anunciação profética figurada, e outra
o que, com propriedade real, constitui a narração histórica dos Evangelistas.
Segundo, o referido erro contraria a
utilidade da Encarnação, que é a libertação do homem. Eis como a esse respeito
argumenta Agostinho: Por que, tendo assumido a carne, o Filho de Deus deixou de
assumir a alma? Era talvez ou porque, considerando-a inocente, pensou não ter
ela necessidade de remédio, ou tendo-a como estranha a si, não a gratificou com
o benefício da redenção, ou renunciou a curá-la julgando-a de todo incurável,
ou enfim porque a rejeitou como um ser vil e totalmente inútil. Ora, duas
dessas hipóteses implicam uma blasfémia contra Deus, pois, como ser chamado
onipotente se não pôde curar uma alma, de que desesperava? Ou como é o Deus de
todos, se não foi ele mesmo que criou a nossa alma? Das duas outras, uma
desconhece a causa da alma, a outra não lhe leva em conta o mérito. Pois,
podemos crer que conheça a causa da alma quem pretende eximi-la do pecado de
uma transgressão voluntária, embora tenha sido preparada pelo hábito incluso da
razão natural a receber a lei? Ou como teria a ideia da sua nobreza, quem a
representa como desprezível pela sua vileza? Se lhe atenderes à origem, a alma
é a mais preciosa das duas substâncias, se à culpa da transgressão, a sua causa
é a pior, dada a sua inteligência. Ora, eu de um lado conheço a perfeita
sabedoria de Cristo e, de outro, não duvido que seja misericordiosíssimo. A
primeira dessas perfeições impediu-o de desdenhar a melhor substância, a que é
capaz de sabedoria, a segunda, a unir-se à que tinha sido mais profundamente
ferida.
Em terceiro lugar, essa opinião é
contrária à própria verdade da Encarnação. Pois, a carne e as outras partes do
homem especificam-se pela alma. Donde, ausentando-se a alma, já não há ossos
nem carne senão equivocamente, como está claro no Filósofo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— Quando o Evangelho diz — O Verbo se fez carne — carne significa todo o homem,
como se dissesse: O Verbo se fez homem, no sentido em que diz a Escritura: Toda
a carne verá a salvação do nosso Deus. E todo o homem é significado pela carne,
porque, como diz o passo aduzido, pela carne o Filho de Deus se manifestou
visivelmente, sendo por isso que o texto acrescenta: E vimos a sua glória. Ou
então porque, como diz Agostinho, em toda a unidade dessa assunção o principal
é o Verbo, a carne vem em extremo e último lugar. Querendo, pois, o Evangelista
mostrar-nos até que ponto foi Deus, na abjecção da humildade, por amor de nós,
referiu-se ao Verbo e à carne, deixando de parte a alma, inferior, de um lado,
ao Verbo e, de outro, superior à carne. E também era racional que designasse a
carne que, por distar mais do Verbo, parecia menos digna de ser assumida.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O Verbo é a
fonte da vida, como a primeira causa efectiva dela. Mas, a alma é o princípio
da vida do corpo, como forma dele. Ora, a forma é o efeito de um agente. Donde,
da presença do Verbo poderíamos antes concluir que o corpo era animado, assim
como o poderíamos, da presença do fogo, que é quente o corpo que ele atingiu.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Não é
inconveniente, mas antes, necessário dizer-se que Cristo tinha uma natureza
constituída pela alma que veio unir-se ao corpo. Mas Damasceno nega que haja em
Nosso Senhor Jesus Cristo uma espécie comum, como um terceiro ser resultante da
união da divindade à humanidade.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.