A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO XXIV
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Por isso, quando o Senhor soprou dizendo:
Recebei o Espírito Santo.[i]
quis assim dar a entender que o Espírito Santo não é apenas o Espírito do Pai,
mas também o Espírito de seu Filho único. Realmente, o mesmo Espírito é
Espírito do Pai e Espírito do Filho, formando-se com ele a Trindade — Pai, Filho
e Espírito Santo — que não é uma criatura, mas o Criador. Este sopro corporal
saído de uma boca de carne, não é de facto nem a substância nem a natureza do
Espírito Santo, mas antes, como já disse, um sinal destinado a fazer
compreender que o Espírito Santo é comum ao Pai e ao Filho, porque não tem um
cada um, mas ambos um só Espírito. Mas este Espírito sempre foi denominado nas Sagradas Escrituras com a palavra grega πνεύμα. Foi assim que Jesus lhe chamou
na passagem que o designou pelo sopro da sua boca humana, ao confessá-lo aos
seus discípulos. E em nenhum a passagem das divinas palavras o vejo nomeado de
outra maneira. Mas onde se lê:
Deus modelou o homem no pó tirado da terra e soprou ou «inspirou» na sua face um espírito de
vida,[ii]
o grego não diz πνεύμα, como costuma chamar-se ao Espírito Santo, mas πνοήν
aplicado mais vezes à criatura do que ao Criador. Daí preferirem chamar-lhe
alguns latinos, para marcarem as diferenças de sentido, não Spiritus, mas
flatus (sopro). E mesmo esta a palavra grega que se encontra na passagem de
Isaías em que Deus diz:
Eu fiz o sopro todo. [iii]
para significar sem dúvida toda a alma. Assim, a palavra grega πνοή foi
traduzida para latim ora por flatus (sopro) ou por spiritus (espírito),
ora por inspiratio (inspiração) ou aspiratio (aspiração), mesmo
quando se trata de Deus. Mas a palavra πνεύμα traduz-se sempre por Spiritus quer
se trate do homem (do qual diz o Apóstolo
Qual dos homens sabe o que é o homem a não ser o espírito do homem que nele está?[iv]
quer se trate de animal (como está escrito no livro de
Salomão:
Quem sabe se o espírito do homem sobe alto até ao céu e se o espírito
do animal desce baixo até à terra,[v]
quer se trate desse espírito corpóreo que também se chama vento (ventus) (porque
é ao vento que o Salmo se aplica ao cantar:
O fogo, o granizo, a neve, o gelo, o vento da tempestade,[vi]
quer finalmente se trate, não já da criatura, mas do Criador, como aquilo de
que o Senhor falou no Evangelho:
Recebei o Espírito Santo,
ao designá-lo com o o sopro da boca do seu corpo — e quando diz:
Ide, baptizai todos os povos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. [vii]
onde está assinalada, da forma mais perfeita e mais evidente, a própria
Trindade — e nestas palavras:
e em muitas outras passagens das Sagradas Escrituras. Em todos estes
testemunhos das Escrituras lemos não flatus mas spiritus. Também,
quando está escrito inspiravit (inspirou) ou, para falar com mais
propriedade, «insuflavit (insuflou) na sua fronte um espírito de vida»,
— nem mesmo assim seríamos obrigados a entender por tal palavra o Espírito
Criador que na Trindade se chama propriamente Espírito Santo, já que a palavra grega
como disse, é manifesto que se costuma aplicar tanto à criatura como ao
Criador.
Mas ao dizer «espírito», replicam, a Escritura não acrescentaria «de vida» se
não quisesse designar o Espírito Santo; e ao dizer «o homem tornou-se alma», não
teria acrescentado «vivente» se não quisesse significar esta vida da alma que
lhe é divinamente comunicada pelo dom do Espírito Santo. Porque se a alma vive,
continuam, duma vida que lhe é própria, que necessidade há de acrescentar «vivente»
senão para designar a vida que lhe é dada pelo Espírito Santo? Que mais é isto
senão tratar de defender com demasiada diligência conjecturas humanas e
examinar com negligência as Sagradas Escrituras? Sem ir mais longe — custaria muito
ler um pouco mais à frente, no mesmo livro:
Produza a terra a alma vivente [ix]
quando foram criados todos os animais terrestres? E a seguir, passados alguns
capítulos — custaria muito trabalho tom ar atenção ao que está escrito nesse
mesmo livro:
Tudo o que tinha espirito de vida e todo o ser que habitava na terra morreu [x]
para dizer que todos os seres que viviam sobre a terra morreram no dilúvio? Se,
portanto, nós encontramos uma alma vivente e um espírito de vida mesmo nos
animais, segundo a linguagem habitual da Sagrada escritura, se na dita passagem
em que está escrito:
Tudo o que tinha espírito de vida,[xi]
o grego não traz πνεύμα, mas πνοήν porque não diremos nós: que necessidade
havia de acrescentar vivente uma vez que a alma não pode viver se não
vive? O u que necessidade há de acrescentar de vida à palavra espírito?
Mas compreendem os que, pelas palavras alma vivente e espírito de
vida, a Escritura falou à sua m aneira para designar os animais, isto é, os
viventes corporais dotados, graças à alma de um princípio evidente de
sensibilidade corporal. Mas na formação do homem esquecemo-nos de que a
Escritura conserva a sua maneira habitual de falar. Ela quer-nos sugerir dessa
forma que — tendo recebido uma alma racional, não produzida da terra e da água
com o as carnes, mas criada pelo sopro de Deus — o homem não deixou de ser
feito para viver num corpo animal graças à alma que nele vive, à maneira dos
outros animais dos quais disse:
Produza a terra a alma vivente.
Deles disse também que eles possuem o espírito de vida, mas o grego exprimindo com
tal nom e, evidentemente, não o Espírito Santo, mas a alma deles.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)