INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
"Creio
em Jesus Cristo seu Filho Unigénito, Nosso Senhor".
IV. Caminhos da Cristologia
3. Cristo, "o último Homem”.
Digressão: Estruturas do Crístico
1.
O princípio do "para".
O "para" deve ser encarado como princípio
decisivo da existência humana, tornando-se o local exato da manifestação do
divino no mundo. Este facto tem ainda outra conseqüência, a saber: o
ser-todo-outro de Deus, que o homem já é capaz de descobrir, ou ao menos de
suspeitar por si, torna-se um completo ser-outro, uma total incognoscibilidade
de Deus. Significa que o ocultamento de Deus, com que o homem conta, assume a
forma escandalosa de sua palpabilidade e de sua visibilidade como Deus
crucificado. Expresso de outro modo: tem como consequência que Deus, o
primeiro, o "alfa" da criação, surge como o "ómega", como a
última letra do alfabecto da criação, como a mínima criatura na criação. Neste
contexto, Lutero fala do ocultamento de Deus sub contrario, isto é, no
que parece ser o contrário de Deus. Destaca assim a peculiaridade da forma
cristã da teologia negativa, determinada a partir da cruz, frente à teologia
negativa do pensamento filosófico. Já a Filosofia, a reflexão própria do homem
sobre Deus, conduz, à convicção de ser Deus o todo outro, o simplesmente oculto
e incomparável. "Curtas como as vistas das aves noturnas são também as
nossas vistas diante do que é o mais luminoso em si", já afirmava
Aristóteles. De facto, à luz da fé em Jesus Cristo, responderemos: Deus é o
todo diferente, invisível, incognoscível. Mas, quando ele surgiu em cena
realmente assim todo diferente, tão invisível em sua divindade, tão
incognoscível, não se tratava daquela espécie de ser-outro e de estranheza
prevista por nós, e ele, de facto, ficou desconhecido. Contudo – não deveria
precisamente esta circunstância revelá-lo como o realmente todo outro, que põe
abaixo todos os nossos cálculos de ser-outro, revelando-se assim como o
unicamente autêntico todo diferente?
De acordo com isto, através da Bíblia inteira se
pode encontrar continuamente a ideia da dupla maneira de Deus aparecer no
mundo. Deus comprova-se, primeiramente e sem dúvida, na força cósmica. A
grandeza, o Logos do mundo que ultrapassa, envolvendo-a, porém, toda a nossa
imaginacção, aponta para aquele cujo pensamento este mundo é; para aquele,
diante do qual os povos são "como gotas à beira do balde", "como
pó na balança" (Is 40,15). Existe realmente o lembrete do universo
sobre o seu criador. Por mais que nos obstinemos contra os argumentos da
existência de Deus, por mais que a reflexão filosófica objecte contra seus
diversos passos, e com muita razão, é um facto irretorquível que o proto-pensamento
criativo e a sua força criadora transluzem através do mundo e da sua estrutura
ideal.
Mas aí temos apenas um modo de Deus se manifestar
no mundo. O outro sinal, que Deus estabeleceu para si, e que o mostra mais
verdadeiro no que lhe é mais peculiar, ocultando-o tanto mais, é o sinal do
vil, que, medido sob o ponto de vista cósmico-quantitativo, é totalmente
insignificante, quase um puro nada. Aqui deveríamos citar a sequência: terra –
Israel – Nazaré – cruz – Igreja, em que Deus aparenta desaparecer mais e mais
no pequeno, revelando-se exactamente assim como ele mesmo. Eis, primeiro, a
terra, um nada no cosmos, destinada a ser o ponto de actividade divina no
universo. Eis Israel, um nada entre as potências, destinado a ser o ponto do
seu aparecimento na terra. Eis Nazaré, outra vez um nada dentro de Israel,
destinada a tornar-se o ponto de sua vinda definitiva. Eis, enfim, a cruz, da
qual está pendente alguém – uma existência fracassada, cruz destinada a ser o
ponto onde Deus pode ser palpado. Finalmente, eis a Igreja, a criação
problemática da nossa história, pretendendo ser o lugar duradouro da sua revelação.
Sabemos hoje, e até demais, quão pouco, mesmo na Igreja, continua suprimida a
ocultação da proximidade divina. Exactamente onde, no luxo da renascença, a
Igreja julgava poder tornar-se imediata "porta do céu" e "casa
de Deus" voltou ela a ser, e quase mais do que nunca, o incógnito de Deus,
que atrás dela quase não se podia mais encontrar. Desse modo, o que é
insignificante cósmica e mundialmente representa o sinal exacto de Deus em que
se anuncia o todo outro que, diante das nossas expectativas, volta a ser o
completamente incompreensível. O nada cósmico é o verdadeiro tudo, porque o
"para" é o específico de Deus...
4. A lei do supérfluo.
Nas declarações éticas do Novo Testamento existe
uma tensão aparentemente invencível: entre graça e ética, entre perdão total e
não menos completa reivindicação, entre completo ser-agraciado do homem que
recebe tudo gratuitamente, por ser incapaz de produzir alguma coisa, e a não
menos radical obrigacção de doar-se até ao inaudito desafio: "Sede,
portanto, perfeitos, como o vosso Pai no céu é perfeito" (Mt 5,48).
Nesta fascinante polaridade, se procurarmos um termo médio de ligação,
depararemos continuamente, sobretudo na teologia paulina, mas também nos
Sinópticos, com o termo "supérfluo" (perisseuma), no qual se
encontra, entrelaçando-se e interpenetrando-se o que se afirma da graça e do
desejo.
Para visualizar este princípio, destaquemos aquele
tópico central do Sermão da Montanha, que ali se acha como se fora a epígrafe e
a síntese das seis grandes antíteses ("aos antigos foi dito... Eu porém
vos digo..."), mediante o qual Jesus completa a nova redacção da segunda
tábua do Decálogo: O texto reza: "Porque, eu vos digo, se a vossa virtude
não sobrepujar a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos
céus" (Mt 5,20). Jesus declara primeiramente toda a justiça humana
como insuficiente. Quem poderia gabar-se honestamente de ter assimilado
realmente e sem reservas, até ao âmago da própria alma, o sentido de cada
exigência, tendo descido inteiramente até suas derradeiras raízes e, muito
menos ainda, de ter produzido o supérfluo? Certamente, na Igreja há um
"estado de perfeição", no qual as pessoas se comprometem ao
supérfluo, a passar além do que é objecto de uma ordem. Mas, os que integram
tal estado são os últimos a negarem que se encontram sempre no início e se
sentem cheios de falhas. O "estado de perfeição", é na verdade, a
forma mais dramática de representar a perene imperfeição do homem.
Quem não se contentar com esta indicacção, leia os
seguintes versículos do Sermão da Montanha (5,21-48) e sentirá exposto a um
exame de consciência desalentador. Neste texto torna-se claro o que significa
levar a sério as determinações aparentemente tão simples da segunda tábua do
Decálogo, das quais três são ali desenvolvidas: "Não matarás. Não cometerás
adultério. Não jurarás falso". À primeira vista, parece muito fácil
sentir-se justo frente a estas exigências. Afinal, não matamos a ninguém, não
cometemos, adultério, não sentimos o peso de perjúrio algum sobre a
consciência. Mas Jesus lança uma luz forte sobre as profundezas destes
postulados; e então revela-se como o homem participa daqueles crimes, com sua cólera,
a sua vontade de não perdoar, a sua inveja e cobiça. Torna-se claro o quanto o
homem, com a sua aparente justiça, está emaranhado no que se chama a injustiça
do mundo. Lendo com seriedade as palavras do Sermão da Montanha, dá-se o mesmo
que se acontece com alguém que passa da apologética de um partido para a
realidade. O belo preto-e-branco em que se costuma dividir os homens,
transforma-se no pardo de um lusco-fusco geral. Torna-se evidente não existir
entre os homens o preto-e-branco; apesar de todas as gradações distribuídas em
vasta escala, encontram-se todos de algum modo numa luz indefinível. Usando
outra comparação, poderíamos dizer: Reconhecendo ser possível identificar, no
todo, em um plano "macroscópico", as nuances morais dos homens, uma consideração
quase microscópica, micro-moral oferece, também aqui, um quadro diferenciado no
qual as dessemelhanças começam a tornar-se problemáticas; em todo caso, não se
pode mais falar de uma justiça que, além do necessário, apresenta o supérfluo.
Em se tratando do homem, portanto, ninguém estaria
em condições de entrar no reino dos céus, isto é, na região da justiça real e
plena. O reino dos céus estaria condenado a ser pura utopia. De facto, deve
continuar pura utopia, enquanto depender exclusivamente da boa vontade do
homem. Quantas vezes não se ouve dizer: bastaria um pouco de boa vontade para
que tudo no mundo fosse belo e bom. É verdade: um pouco de boa vontade
bastaria, mas a tragédia humana consiste precisamente no facto de faltar ao
homem a indispensável força para criar aquele pouco de boa vontade. Neste caso,
Camus teria razão, vendo o símbolo da humanidade em Sísifo a tentar
incessantemente levar a pedra ao alto, condenado a deixá-la rolar sempre de
novo morro abaixo? No que toca à humana capacidade, a Bíblia mostra-se tão
sóbria como Camus, sem, contudo, se deixar envolver pelo cepticismo. Para ela,
o limite da justiça humana, da humana capacidade em geral, é expressão de o
homem estar à mercê do inquestionável dom da graça, que se lhe oferece sem
medida, abrindo-o ao mesmo tempo, e sem o qual ele permaneceria fechado e
injusto apesar de toda a sua "justiça". Só o homem que aceita o dom
pode encontrar o caminho para si. Assim a percepção da justiça humana torna-se,
simultaneamente, indicação da justiça de Deus, cuja superabundância se chama
Jesus Cristo. Ele é a justiça de Deus que ultrapassa de muito o necessário,
justiça que não calcula, mas que é realmente superabundante, que representa o
"apesar de" do grande amor com que ele sobrepuja o fracasso do homem.
Apesar disto, haveria um mal entendido, se se
quisesse deduzir daí uma desvalorização do homem, afirmando-se que, em tal
caso, tudo daria na mesma e qualquer procura de justiça e bondade diante de
Deus seria uma coisa sem sentido. Muito pelo contrário. Apesar de tudo, e
precisamente por causa do que se disse, fica de pé o desafio de possuir a
justiça em superabundância, já que não se pode realizar a justiça inteira. Mas,
que quer isto dizer? Não há aí um contra-senso? Ora bem, isto quer dizer que
não é cristão quem sempre está a calcular quanto lhe compete fazer, quanto é exactamente
o bastante para apresentar-se como alguém revestido da veste nupcial, com a
ajuda, quiçá, de alguns truques casuísticos. Nem é cristão, mas fariseu, quem
se põe a calcular, onde termina a obrigação e onde se pode conseguir méritos
excedentes, mediante um opus supererogatorium. Ser cristão não significa
fornecer determinada quota obrigatória, e, quiçá, a título de perfeição maior,
até ultrapassar o limite obrigatório. Cristão é quem sabe que, em qualquer
hipótese, vive de dádiva; que, por conseguinte, qualquer justiça só poderá
consistir em também ser doador, semelhante ao mendigo que continua a distribuir
generosamente, grato pelo que recebeu. Não passa de injusto quem for justo
apenas, o calculista que acredita ser capaz de conseguir para si a veste branca
e nela realizar-se completamente. Justiça humana só se realizará na renúncia às
suas pretensões, e no entregar-se à generosidade face ao homem e a Deus.
Trata-se da justiça do "perdoai, como nós perdoamos" – súplica que se
revela como a fórmula clássica da justiça humana cristãmente concebida:
consiste em passar adiante, já que cada qual vive essencialmente do perdão
recebido.
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)