A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XV
CAPÍTULO XV
Será de crer que os homens dos primeiros tempos se tenham abstido do coito
até à idade em que se refere que geraram filhos?
Mas perguntará alguém: será de crer que um homem, capaz de gerar filhos e não
tendo o propósito da continência, se abstenha de relações sexuais durante cem
anos e mais ou, segundo os códices hebreus, não muito menos, ou seja, durante
oitenta, setenta, sessenta anos ou, se não se absteve, não tenha podido gerar
filhos? Esta questão resolve-se de duas maneiras: ou a puberdade foi proporcionalmente tanto mais
tardia quanto maior era a duração da vida, ou — o que m e parece mais de crer —
não se mencionam aqui os primogénitos, mas os que reclamava a ordem de sucessão
até se chegar a Noé, a partir de quem vemos novamente como se chegou até
Abraão, e depois até uma certa época, conforme era preciso designar, pelas gerações citadas, o
curso da gloriosíssima cidade exilada neste mundo e peregrinando para a pátria
do Alto.
O que, na verdade, se não pode negar é que o primeiro de todos, Caim, nasceu da
união do homem e da mulher. Se este homem ao nascer não tivesse sido o primeiro
a juntar-se aos outros dois, Adão não teria dito o que a seu respeito se lê ter
dito:
Adquiri um homem pela graça de Deus [i].
A este seguiu-se Abel, que seu irmão mais velho matou. É ele uma prefiguração
da Cidade de Deus peregrinando. Foi ele o primeiro a mostrar que ela tinha de
suportar injustas perseguições por parte dos ímpios, de certo modo terrestres,
isto é, que amam a sua origem terrestre e se comprazem na sua felicidade
terrestre duma cidade terrestre. Mas não consta de quantos anos era Adão quando
os gerou. Seguem-se então umas genealogias de Caim e outras do filho que Adão
teve como sucessor daquele que o irmão m atara e a quem chamou Set dizendo,
como está escrito:
Deus deu-me outro descendente para o lugar de Abel que Caim matou [ii].
Estas duas séries de genealogias, uma de Set e outra de Caim, sugerem pela sua
própria distinção as duas cidades de que tratam os — um a, a celeste,
peregrinando na Terra, e outra, a terrestre, ansiosa e apegada aos gozos
terrestres, com o se outros não houvesse. Ao enumerar-se a descendência de Caim
desde Adão até à oitava geração, a nenhum se cita com os anos que tinha quando gerou o que se lhe segue na enumeração. Na verdade, o Espírito de Deus não quis marcar as
épocas anteriores ao Dilúvio pelas gerações da Cidade Terrestre, mas sim pelas
da Cidade Celeste, com o se elas fossem mais dignas de memória.
Entretanto, quando Set nasceu, não se omitiram os anos de seu pai, mas este já
tinha gerado outros filhos. E quem se atreveria a afirmar que Caim e Abel foram
os únicos? Com efeito, se se citaram apenas estes por causa das genealogias que
convinha recordar, não se segue que se deva considerá-los com o sendo então os
únicos filhos de Adão. Porque, tendo-se encoberto com silêncio os nomes de
todos os demais, ao ler-se que gerou filhos e filhas - quem ousará determinar o
número da sua descendência se quiser evitar a censura de temeridade? Certam
ente que Adão, divinamente inspirado, pôde dizer, depois de Set ter nascido:
Deus deu-me outro descendente para o lugar de Abel [iii],
porque estava destinado a repetir a santidade daquele e não porque na ordem do tempo
tenha sido o primeiro a nascer depois dele. O que está escrito a seguir:
Viveu Set duzentos e cinco anos. [iv]
(ou, segundo os Hebreus, cento e cinco anos)
— quem poderá, senão de ânimo leve, asseverar que ele foi o seu primogénito?
Justificadamente perguntariam os admirados como é que durante tantos anos se
tinha abstido do conúbio sem propósito de continência, ou, casado, não tinha
tido filhos— já que do mesmo se lê:
Gerou filhos e filhas e foram de novecentos e doze anos os dias
todos de Set que, a seguir, morreu [vi].
Assim aconteceu depois com todos aqueles cujos anos se citam: não se omite que
geraram filhos e filhas. Por isso de modo nenhum se evidencia que o filho
nomeado seja o primogénito; mas, pelo contrário, com o não é de crer que esses
antepassados tenham permanecido impúberes durante tanto tempo, sem mulher e sem
posteridade, é mais de crer que os citados filhos não foram os seus
primogénitos. Mas o escritor da História Sagrada, propondo-se, por uma série de
gerações cuja duração anota, chegar ao nascimento e à vida de Noé (época em que
surgiu o Dilúvio), assinalou, não as que foram as primeiras para os seus pais, mas
as que convinham à ordem da propagação.Vou propor, a título de exemplo com
o qual isto se torne mais claro, um caso a partir do qual ninguém duvidará de
que pode ter acontecido o que digo.
O evangelista Mateus, querendo
transmitir à posteridade a genealogia carnal do Senhor pela linha dos seus antepassados,
começando no pai Abraão e procurando chegar primeiramente a David, diz:
Porque não diz Ismael que foi o que primeiro gerou? E continua:
Porque não diz Esaú que foi o seu primogénito? E porque por eles não podia chegar a David. Prossegue depois:
Jacob gerou Judá e seus irmãos [ix].
Será porque Judá foi o primogénito? Continua:
Judá gerou Farés e Zarat [x].
Nenhum destes gémeos foi o primogénito de Judá que antes deles tivera já três.
Reteve, porém, na ordem das gerações os que lhe permitiam chegar a David e
atingir assim o seu desígnio. Pelo que se pode concluir: que antes do Dilúvio
não se citaram os primogénitos, mas os que tinham que conduzir por sucessivas
gerações ao patriarca Noé para que não nos atormente a questão obscura e
desnecessária da sua puberdade tardia.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)