16/06/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XV

CAPÍTULO XV

Será de crer que os homens dos primeiros tempos se tenham abstido do coito até à idade em que se refere que geraram filhos?

Mas perguntará alguém: será de crer que um homem, capaz de gerar filhos e não tendo o propósito da continência, se abstenha de relações sexuais durante cem anos e mais ou, segundo os códices hebreus, não muito menos, ou seja, durante oitenta, setenta, sessenta anos ou, se não se absteve, não tenha podido gerar filhos? Esta questão resolve-se de duas maneiras: ou a puberdade foi proporcionalmente tanto mais tardia quanto maior era a duração da vida, ou — o que m e parece mais de crer — não se mencionam aqui os primogénitos, mas os que reclamava a ordem de sucessão até se chegar a Noé, a partir de quem vemos novamente como se chegou até Abraão, e depois até uma certa época, conforme era preciso designar, pelas gerações citadas, o curso da gloriosíssima cidade exilada neste mundo e peregrinando para a pátria do Alto.

O que, na verdade, se não pode negar é que o primeiro de todos, Caim, nasceu da união do homem e da mulher. Se este homem ao nascer não tivesse sido o primeiro a juntar-se aos outros dois, Adão não teria dito o que a seu respeito se lê ter dito:

Adquiri um homem pela graça de Deus [i].

A este seguiu-se Abel, que seu irmão mais velho matou. É ele uma prefiguração da Cidade de Deus peregrinando. Foi ele o primeiro a mostrar que ela tinha de suportar injustas perseguições por parte dos ímpios, de certo modo terrestres, isto é, que amam a sua origem terrestre e se comprazem na sua felicidade terrestre duma cidade terrestre. Mas não consta de quantos anos era Adão quando os gerou. Seguem-se então umas genealogias de Caim e outras do filho que Adão teve como sucessor daquele que o irmão m atara e a quem chamou Set dizendo, como está escrito:

Deus deu-me outro descendente para o lugar de Abel que Caim matou [ii].

Estas duas séries de genealogias, uma de Set e outra de Caim, sugerem pela sua própria distinção as duas cidades de que tratam os — um a, a celeste, peregrinando na Terra, e outra, a terrestre, ansiosa e apegada aos gozos terrestres, com o se outros não houvesse. Ao enumerar-se a descendência de Caim desde Adão até à oitava geração, a nenhum se cita com os anos que tinha quando gerou o que se lhe segue na enumeração. Na verdade, o Espírito de Deus não quis marcar as épocas anteriores ao Dilúvio pelas gerações da Cidade Terrestre, mas sim pelas da Cidade Celeste, com o se elas fossem mais dignas de memória.

Entretanto, quando Set nasceu, não se omitiram os anos de seu pai, mas este já tinha gerado outros filhos. E quem se atreveria a afirmar que Caim e Abel foram os únicos? Com efeito, se se citaram apenas estes por causa das genealogias que convinha recordar, não se segue que se deva considerá-los com o sendo então os únicos filhos de Adão. Porque, tendo-se encoberto com silêncio os nomes de todos os demais, ao ler-se que gerou filhos e filhas - quem ousará determinar o número da sua descendência se quiser evitar a censura de temeridade? Certam ente que Adão, divinamente inspirado, pôde dizer, depois de Set ter nascido:

Deus deu-me outro descendente para o lugar de Abel [iii],

porque estava destinado a repetir a santidade daquele e não porque na ordem do tempo tenha sido o primeiro a nascer depois dele. O que está escrito a seguir:

Viveu Set duzentos e cinco anos. [iv]

(ou, segundo os Hebreus, cento e cinco anos)

e gerou Enós [v]

— quem poderá, senão de ânimo leve, asseverar que ele foi o seu primogénito? Justificadamente perguntariam os admirados como é que durante tantos anos se tinha abstido do conúbio sem propósito de continência, ou, casado, não tinha tido filhos— já que do mesmo se lê:

Gerou filhos e filhas e foram de novecentos e doze anos os dias todos de Set que, a seguir, morreu [vi].

Assim aconteceu depois com todos aqueles cujos anos se citam: não se omite que geraram filhos e filhas. Por isso de modo nenhum se evidencia que o filho nomeado seja o primogénito; mas, pelo contrário, com o não é de crer que esses antepassados tenham permanecido impúberes durante tanto tempo, sem mulher e sem posteridade, é mais de crer que os citados filhos não foram os seus primogénitos. Mas o escritor da História Sagrada, propondo-se, por uma série de gerações cuja duração anota, chegar ao nascimento e à vida de Noé (época em que surgiu o Dilúvio), assinalou, não as que foram as primeiras para os seus pais, mas as que convinham à ordem da propagação.
Vou propor, a título de exemplo com o qual isto se torne mais claro, um caso a partir do qual ninguém duvidará de que pode ter acontecido o que digo.
O evangelista Mateus, querendo transmitir à posteridade a genealogia carnal do Senhor pela linha dos seus antepassados, começando no pai Abraão e procurando chegar primeiramente a David, diz:

Abraão gerou Isaac.[vii]

Porque não diz Ismael que foi o que primeiro gerou? E continua:

Isaac gerou Jacob [viii].

Porque não diz Esaú que foi o seu primogénito? E porque por eles não podia chegar a David. Prossegue depois:

Jacob gerou Judá e seus irmãos [ix].

Será porque Judá foi o primogénito? Continua:

Judá gerou Farés e Zarat [x].

Nenhum destes gémeos foi o primogénito de Judá que antes deles tivera já três. Reteve, porém, na ordem das gerações os que lhe permitiam chegar a David e atingir assim o seu desígnio. Pelo que se pode concluir: que antes do Dilúvio não se citaram os primogénitos, mas os que tinham que conduzir por sucessivas gerações ao patriarca Noé para que não nos atormente a questão obscura e desnecessária da sua puberdade tardia.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)



[i] Gen., IV, 1.
[ii] Gen., IV, 25.
[iii] Ibid.
[iv] Gen., V, 6.
[v] Ibid.
[vi] Gen., I, 7.
[vii] Mt., I, 2.
[viii] Ibid.
[ix] Ibid.
[x] Mt. I. 3.

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