27/02/2016

Poesias para a Quaresma

Michal Karcz


Não quis, tendo tempo, fazer 

conta; 

hoje quero fazer conta e 

não há tempo.








Deus pede hoje estrita conta do meu tempo
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas como dar, sem tempo, tanta conta
Eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado e não fiz conta.
Não quis, tendo tempo, fazer conta.
Hoje quero fazer conta e não há tempo.

Oh! Vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo em fazer conta.

Pois aqueles que sem conta gastam tempo,
Quando o tempo chegar de prestar conta,
Chorarão, como eu, se não der tempo.

(antónio das chagas, (1631-1682) - Soneto do Tempo)  


Indice de publicações - Fev 27


nunc coepi – Índice de publicações em Fev 27

São Josemaria – Textos

AMA - Reflexão 32 - Ano Jubilar da Misericórdia

AMA - Comentários ao Evangelho Lc 15 1-3 11-32, Leit Espiritual - Doutrina Social da Igreja

JMA – Quaresma

Bento XVI - Pensamentos espirituais

Doutrina – Demónio

São Tomás de Aquino – Suma Teológica, Suma Teológica - Tratado da Vida de Cristo - Do género de vida que Cristo levou - Quest 42 Art. 1

AT - Salmos – 117

Manuel Franco Dias

Alexandre Zabot, Ciência e Igreja, 


Agenda Sábado

Pequena agenda do cristão


SÁBADO



(Coisas muito simples, curtas, objectivas)


Propósito:
Honrar a Santíssima Virgem.

A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador, porque pôs os olhos na humildade da Sua serva, de hoje em diante me chamarão bem-aventurada todas as gerações. O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas, santo é o Seu nome. O Seu Amor se estende de geração em geração sobre os que O temem. Manifestou o poder do Seu braço, derrubou os poderosos do seu trono e exaltou os humildes, aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias. Acolheu a Israel Seu servo, lembrado da Sua misericórdia, como tinha prometido a Abraão e à sua descendência para sempre.

Lembrar-me:

Santíssima Virgem Mãe de Deus e minha Mãe.

Minha querida Mãe: Hoje queria oferecer-te um presente que te fosse agradável e que, de algum modo, significasse o amor e o carinho que sinto pela tua excelsa pessoa.
Não encontro, pobre de mim, nada mais que isto: O desejo profundo e sincero de me entregar nas tuas mãos de Mãe para que me leves a Teu Divino Filho Jesus. Sim, protegido pelo teu manto protector, guiado pela tua mão providencial, não me desviarei no caminho da salvação.

Pequeno exame:

Cumpri o propósito que me propus ontem?



Reflexões quresmais


Como pedir perdão, Senhor, àqueles que ofendo?

Envolves-me no Teu olhar de compaixão:
Não me pedes tu perdão quando Me ofendes?
Então lembra-te que quando ofendes um dos teus irmãos é a Mim também que ofendes. Vê nesse teu irmão a Minha presença, e assim, ao pedires perdão àquele que ofendeste, é a Mim, também, que pedes perdão.
E não te esqueças que, mesmo que ele não te perdoe, Eu já te perdoei, porque o Meu amor é sempre maior que a tua ofensa.

Em tudo, Senhor, Te fazes presente, para nos levar ao amor e à comunhão.

Peço-Te então:
Ajuda-me, Senhor, a não ofender ninguém, em momento algum e seja porque razão for.
Mas, Senhor, fraco que sou, lembra-me sempre de que quando ofendo alguém, é a Ti mesmo que ofendo, também.
E leva-me a pedir perdão, Senhor, enchendo-me do Teu amor.

Obrigado, Senhor, pelo Teu infinito amor.


Joaquim Mexia Alves, Marinha Grande, 26 de Fevereiro de 2016.

Reflexão no Ano Jubilar da Misericórdia – 3

Próximos do próximo [i]

O Chefe dos assaltantes.


Toda a minha vida tem sido a de um autêntico marginal, dedicando-me a roubar quanto me aparece a jeito.

A princípio, teria talvez escassos dezoito anos, juntava-me a outros rapazes da minha idade, marginais como eu, e assim levava-mos uma vida de sobressaltos sempre em fuga das autoridades e, muitas vezes, alguns dos que assaltávamos reagiam e as coisas corriam mal, para o nosso lado, já se vê.

Um dia as coisas mudaram bastante porque veio ter connosco um sujeito bastante mais velho que nós e que – para encurtar – nos reuniu num bando passando a agir sob as suas ordens e instruções.

O homem era de facto um autêntico facínora que não hesitava em empregar violência para atingir os seus fins.

Chamava-se Barrabás!

Dizia ele que, como Zelote que era, o seu principal alvo era provocar o ocupante romano de modo a mantê-lo ocupado em acções de polícia desviando-o de outras acções mais aparatosas com que tentavam manter a férrea disciplina que impunham ao povo.

Dividiu-nos em grupos de três e quatro e a cada grupo dava instruções sobre o que fazer e onde.
O meu grupo – eu e mais três – tinha sido “destacado” para a via que descia de Jericó para Jerusalém que, segundo ele, tinha numerosos viandantes a maioria dos quais eram gente que comerciava, logo, trazendo consigo ou bens ou o dinheiro produto da sua venda.
E, realmente, a nossa actividade produzia bons resultados e Barrabás estava muito satisfeito connosco pois arrecadava a maior parte dos “proventos” da nossa actividade.

Hoje, porém, as coisas não correram muito bem, ou antes, correram muito mal.

Do nosso esconderijo avistámos um homem sozinho que descia, o jumento que conduzia estava ajoujado de mercadoria. Todo o seu aspecto e a forma como trajava indicavam que seria um homem de posses.
Não se avistando mais ninguém por perto resolvemos assaltá-lo e, foi aqui, que tudo se complicou. O homem era bastante robusto e ofereceu uma resistência feroz e determinada a não se deixar roubar.

Um dos meus companheiros recebeu vários golpes que o deixaram práticamente inanimado e outro recebeu um profundo corte provocado pela adaga que o homem esgrimia com destreza.
Não estive com contemplações e com um bastão de ferro agredi o sujeito prostrando-o no chão poeirento.
Depois… movido pela raiva dei-lhe pontapés, murros, eu sei lá… arranquei-lhe os vestidos deixando-o em farrapos e pondo o meu companheiro em cima do jumento fugimos para o nosso esconderijo para tentar recuperar dos ferimentos recebidos e deitar contas ao espólio arrecadado.
Os outros dois, amparando-se mutuamente, puseram-se a caminho de Jerusalém para procurar tratamento para as suas feridas, eu fiquei ali escondido remoendo a minha raiva pelo que acontecera. Deixara-me dominar pela ira ao atacar de forma tão desumana o desgraçado que nos caíra nas mãos.
Ora um chefe, um verdadeiro chefe, não pode deixar que os seus sentimentos extravasem colocando-se fora de controlo, É fundamental manter a calma em qualquer situação para se impor aos que têm de ver nele capacidade e aptidão para chefiar e comandar.

Ouvi um ruido de cavalgadura e avistei um homem que se aproximava. Já era o terceiro desde que decorrera o assalto. Antes tinham aparecido um sacerdote e um levita que mal olharam para o desgraçado que jazia na vera do caminho, antes estugaram o passo seguindo viajem. [ii]

Porém, este, deteve-se e debruçou-se sobre a vítima, voltando-o de costas, retirou o manto e pôs-lho debaixo da cabeça. Depois dirigiu-se à sua montada e dos alforges retirou um pequeno odre com vinho e uma garrafa com azeite. Com grande cuidado e destreza foi destapando as numerosas feridas e contusões deitando-lhes azeite e vinho [iii] e cobrindo-as com pequenos pedaços de pano que rasgava de um lençol.

O pobre ferido começou a falar e embora eu não pudesse ouvir o que diziam percebi que mostrava gratidão e reconhecimento.

Depois e a muito custo conseguiu coloca-lo sobre a sua cavalgadura e afastaram-se por outro caminho.

Tenho de confessar que estava atónito com o que acabara de presenciar é que, esquecia-me de dizer, o socorrista era um samaritano que, como toda agente sabe, não suportam os judeus.

Fiquei longo tempo ali sentado pensando em tudo aquilo que tanto me impressionara, sobretudo na solicitude e compaixão demonstradas pelo samaritano para com a vítima e não pude deixar de me avaliar a mim mesmo se, acaso, procederia de igual forma.
O meu coração empedernido por anos de violências e desacatos, abusos e esbulhos parece que me estalava no peito e, num impulso irresistível dei um salto para fora do esconderijo e abalei numa corrida desenfreada em direcção Jerusalém.

Mas tive de parar a minha correria, um aglomerado de gente atravancava o caminho.
Escutavam um homem que falava com uma voz tão clara e segura que me percebi logo ser alguém excepcional.
Parecia estar a acabar um longo discurso e ouvi estas palavras finais:

“Quero misericórdia e não sacrifício”. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores». [iv]

Fiquei por ali pensando no que acabara de ouvir e, dentro de mim algo se transformou como se, sem eu compreender bem o que me acontecia, estivesse a ver toda a minha vida num relance, uma vida feita de assaltos, roubos, violências de toda a ordem e percebi, sim, entendi, que tinha de mudar radicalmente.

Retomei a corrida e cheguei ofegante, mal podendo respirar, à escadaria do Templo e, pela primeira vez na minha vida, entrei. Não sabia o que fazer ou o que dizer mas, a verdade, é que caí de joelhos e pus a cabeça no chão.

Então, como se fosse outro que não eu, ouvi-me dizer:

‘Senhor, tem misericórdia de mim que sou um desgraçado, um malfeitor, um miserável!’

Quando saí parecia-me que mal punha os pés no chão de tal forma me sentia outro, mais leve, muito mais leve e voltei pelo mesmo caminho, decidido a encontrar a minha vítima para lhe restituir o que lhe roubara. 




(ama, reflexões no Ano Jubilar da Misericórdia – 3)




[i] Lc 10, 25-27

Nota: Este trecho do Evangelho escrito por São Lucas [i] poderia ser o Evangelho “oficial” do Ano Jubilar da Misericórdia.

De facto, aparte a magistral descrição da parábola proferida por Jesus Cristo, a beleza do texto, a economia das palavras, o ritmo da descrição – características deste Evangelista – põem-nos perante um autêntico quadro ou, melhor, perante um filme que se desenrola aos nossos olhos prendendo-nos a atenção e excitando os nossos sentidos.

São Josemaria recomendou: aconselho-te a que, na tua oração, intervenhas nas passagens do Evangelho, como um personagem mais. [i]

É isso mesmo que me proponho fazer.

Sob o Título: “Próximos do próximo (sugerido por um bom amigo) vou tentar personificar alguns dos personagens da parábola e, também, introduzir-me nela como observador directo.

[ii] Cfr. Lc 10, 31-32
[iii] Cfr. Lc 10, 34
[iv] Cfr. Mt 9

In memoriam


Faz hoje sete anos partiu para o Céu o Manuel Franco Dias - o Senhor Engenheiro - como respeitosamente era chamado.


Tive a honra e o privilégio de cuidar dele nos últimos meses da sua vida, recebendo incontáveis bens e graças.


Tenho saudades dele mas, sei, que não se esquece de mim e continuará repetindo ao Senhor cuja Face contempla, a piedosa mentira que constantemente me dirigia:


 - O António é uma jóia!!!

Universidades da Igreja

Igreja e Ciência

Harmonia entre a Ciência e a Igreja

…/4

Outro aspecto prático destas boas relações entre a Igreja e a Ciência são famosas Universidades criadas e/ou mantidas pela Igreja, onde a ciência é livre para ser desenvolvida.

Além das Universidades, a Igreja ainda mantém institutos de pesquisa, como o Observatório Astronómico do Vaticano, do qual falei um pouco no último artigo.
A Specola Vaticana, como é conhecido o Observatório, é mantido pela Santa Sé e por doações e gerido por padres jesuítas que também são astrónomos.
Além do Observatório Astronómico a Santa Sé mantém uma das mais antigas academias de ciência do mundo.
A Pontifícia Academia de Ciências é constituída por cientistas de renome mundial, muitos deles ganhadores do prémio Nobel.
Juntos discutem temas importantes referentes às grandes questões científicas mundiais, especialmente as que dizem respeito ao ser humano e ao futuro do planeta.
Grande parte do trabalho desenvolvido pela Academia pode ser encontrado no site do Vaticano e lido gratuitamente.

(cont)

alexandre zabot 


(revisão da versão portuguesa por ama)

Evangelho, comentário, L. espiritual


Quaresma
Semana II

Evangelho: Lc 15, 1-3. 11-32

1 Aproximavam-se d'Ele os publicanos e os pecadores para O ouvir. 2 Os fariseus e os escribas murmuravam, dizendo: «Este recebe os pecadores e come com eles». 3 Então propôs-lhes esta parábola: 11 «Um homem tinha dois filhos. 12 O mais novo disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me cabe. O pai repartiu entre eles os bens. 13 Passados poucos dias, juntando tudo o que era seu, o filho mais novo partiu para uma terra distante e lá dissipou os seus bens vivendo dissolutamente. 14 Depois de ter consumido tudo, houve naquele país uma grande fome e ele começou a passar necessidade. 15 Foi pôr-se ao serviço de um habitante daquela terra, que o mandou para os seus campos guardar porcos. 16 «Desejava encher o seu ventre das alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. 17 Tendo entrado em si, disse: Quantos jornaleiros há em casa de meu pai que têm pão em abundância e eu aqui morro de fome! 18 Levantar-me-ei, irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e contra ti, 19 já não sou digno de ser chamado teu filho, trata-me como um dos teus jornaleiros. 20 «Levantou-se e foi ter com o pai. Quando ele estava ainda longe, o pai viu-o, ficou movido de compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e beijou-o. 21 O filho disse-lhe: Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. 22 Porém, o pai disse aos servos: Trazei depressa o vestido mais precioso, vesti-lho, metei-lhe um anel no dedo e os sapatos nos pés. 23 Trazei também um vitelo gordo e matai-o. Comamos e façamos festa, 24 porque este meu filho estava morto, e reviveu; tinha-se perdido, e foi encontrado. E começaram a festa. 25 «Ora o filho mais velho estava no campo. Quando voltou, ao aproximar-se de casa, ouviu a música e os coros. 26 Chamou um dos servos, e perguntou-lhe que era aquilo. 27 Este disse-lhe: Teu irmão voltou e teu pai mandou matar o vitelo gordo, porque o recuperou com saúde. 28 Ele indignou-se, e não queria entrar. Mas o pai, saindo, começou a pedir-lhe. 29 Ele, porém, respondeu ao pai: Há tantos anos que te sirvo, nunca transgredi nenhuma ordem tua e nunca me deste um cabrito para eu me banquetear com os meus amigos, 30 mas logo que veio esse teu filho, que devorou os seus bens com meretrizes, mandaste-lhe matar o vitelo gordo. 31 Seu pai disse-lhe: Filho, tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu. 32 Era, porém, justo que houvesse banquete e festa, porque este teu irmão estava morto e reviveu; tinha-se perdido e foi encontrado».

Comentário:

O filho mais velho da parábola revela-se, talvez, como a personagem “chave” da mesma.
Parece evidente que Jesus contasse esta parábola para ilustrar aos Seus ouvintes, a grandeza da misericórdia do pai, da bondade divina.
Um pai que, não só perdoa como se alegra profundamente com o arrependimento do filho.

Mas… onde estamos nós, de facto retratados?

No Filho que se afasta e depois de se perder reencontra o caminho de casa?
Ter prescindido do convívio com o pai regressa humilhado e contrito?
Mas… realmente, o Pai nunca cessou de o amar e, o reencontro, é a prova disso mesmo.

Mas o filho mais velho deseja ser o mais importante no amor do Pai e, mais, não quer que esse amor seja repartido com o irmão mais novo.

Não percebe que o Pai ama os dois igualmente, não por aquilo que fazem mas pelo que são:

Seus filhos!

(ama, comentário sobre, Lc 15, 1-3.11-32, 2013.03.03)


Leitura espiritual



COMPÊNDIO
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA


PRIMEIRA PARTE



CAPÍTULO I

O DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS
A TODA A HUMANIDADE



III. A PESSOA HUMANA NO DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS


b) A salvação cristã: para todos os homens e do homem todo


38 A salvação que, por iniciativa de Deus Pai, é oferecida em Jesus Cristo e é actualizada e difundida por obra do Espírito Santo, é salvação para todos os homens e do homem todo: é salvação universal e integral.
Diz respeito à pessoa humana em todas as suas dimensões: pessoal e social, espiritual e corpórea, histórica e transcendente.
Começa a realizar-se já na história, porque tudo o que é criado é bom e querido por Deus e porque o Filho de Deus se fez um de nós [i].

O seu cumprimento, porém, encontra-se no futuro que Deus nos reserva, quando formos chamados, com toda a criação [ii], a participar da ressurreição de Cristo e da comunhão eterna de vida com o Pai, na alegria do Espírito Santo.
Esta perspectiva indica precisamente o erro e o engano das visões puramente imanentistas do sentido da história e das pretensões de auto-salvação do homem.

39 A salvação que Deus oferece aos Seus filhos requer a sua livre resposta e adesão.
Nisso consiste a fé, «pela qual o homem se entrega livre e totalmente a Deus» [iii], respondendo ao Amor preveniente e sobre-abundante de Deus [iv] com o amor concreto aos irmãos e com firme esperança, «porque é fiel Aquele cuja promessa aguardamos» [v].
O plano divino de salvação, na verdade, não coloca a criatura humana num estado de mera passividade o de menoridade em relação ao seu Criador, porque a relação com Deus, que Jesus Cristo nos manifesta e no qual nos introduz gratuitamente por obra do Espírito Santo, é uma relação de filiação: a mesma que Jesus vive em relação ao Pai [vi].

40 A universalidade e a integralidade da salvação, doada em Jesus Cristo, tornam incindível o nexo entre a relação que a pessoa é chamada a ter com Deus e a responsabilidade ética para com o próximo, no concreto das situações históricas. Isto intui-se, ainda que confusamente e não sem erros, na universal procura humana de verdade e de sentido, mas torna-se estrutura fundamental da Aliança de Deus com Israel, como testemunham, por exemplo, as tábuas da Lei e a pregação profética.

Tal nexo é expresso com clareza e em perfeita síntese no ensinamento de Jesus Cristo e confirmado definitivamente pelo testemunho supremo do dom da Sua vida, em obediência à vontade do Pai e por amor aos irmãos.
Ao escriba que lhe pergunta:
«Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» [vii], Jesus responde: «O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças. Eis aqui o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Outro mandamento maior do que estes não existe» [viii].

No coração da pessoa humana se entrelaçam indissoluvelmente a relação com Deus, reconhecido como Criador e Pai, fonte e termo da vida e da salvação, e a abertura ao amor concreto pelo homem, que deve ser tratado como um outro “eu”, ainda que seja um inimigo [ix]. Na dimensão interior e espiritual do homem radicam-se, no fim e ao cabo, o empenho pela justiça e pela solidariedade, pela edificação de uma vida social, económica e política conforme com o desígnio de Deus.


c) O discípulo de Cristo qual nova criatura


41 A vida pessoal e social assim como o agir humano no mundo são sempre insidiados pelo pecado, mas Jesus Cristo, «padecendo por nós, não nos deu simplesmente o exemplo para seguirmos os Seus passos, mas rasgou um caminho novo: se o seguirmos, a vida e a morte tornam-se santas e adquirem um sentido diferente» [x].

O discípulo de Cristo adere, na fé e mediante os sacramentos, ao mistério pascal de Jesus, de sorte que o seu homem velho, com as suas más inclinações, é crucificado com Cristo.
Qual nova criatura fica então habilitado na graça a caminhar em «uma vida nova» [xi].
Tal caminho, porém, «vale não apenas para os que crêem em Cristo, mas para todos os homens de boa vontade, no coração dos quais, invisivelmente, opera a graça.
Na verdade, se Cristo morreu por todos e vocação última do homem é realmente uma só, a saber divina, nós devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de sermos associados ao mistério pascal» [xii].

42 A transformação interior da pessoa humana, na sua progressiva conformação a Cristo, é pressuposto essencial de uma real renovação das suas relações com as outras pessoas:

«É preciso, então, apelar às capacidades espirituais e morais da pessoa e à exigência permanente de sua conversão interior, a fim de obter mudanças sociais que estejam realmente a seu serviço. A prioridade reconhecida à conversão do coração não elimina absolutamente, antes impõe, a obrigação de trazer às instituições e às condições de vida, quando estas provocam o pecado, o saneamento conveniente, para que sejam conformes às normas da justiça e favoreçam o bem, em vez de lhe colocar obstáculos» [xiii].

43 Não é possível amar o próximo como a si mesmo e perseverar nesta atitude sem a firme e constante determinação de empenhar-se em prol do bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos [xiv].

Segundo o ensinamento conciliar, «também àqueles que pensam e agem de modo diferente do nosso em matéria social, política e, inclusivamente, religiosa, deve estender-se o respeito e a caridade; quanto nos esforçamos para penetrar intimamente com benevolência e amor, nos seus modos de ver, mais fácil se tornará um diálogo com eles» [xv].

Nesse caminho é necessária a graça, que Deus oferece ao homem para ajudá-lo a superar os falhanços, para arrancá-lo da voragem da mentira e da violência, para sustentá-lo e incentivá-lo a tecer de novo, com espírito sempre renovado e disponível, a rede das relações verdadeiras e sinceras com os seus semelhantes [xvi].

44 Também a relação com o universo criado e as diversas actividades que o homem dedica ao seu cuidado e transformação, quotidianamente ameaçadas pela soberba e amor desordenado de si, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela cruz e ressurreição de Cristo:

«Resgatado por Cristo e tornado nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar, com efeito, as coisas criadas por Deus. Pois de Deus as recebe: vê-as como brotando da Sua mão e como tais as respeita. Dando graças por elas ao Benfeitor, e usando e gozando das criaturas em espírito de pobreza e liberdade, é então que entra deveras na posse do mundo, como quem nada tem e é dono de tudo: com efeito “tudo é vosso: vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” [xvii]» [xviii].


d) Transcendência da salvação e autonomia das realidades terrestres


45 Jesus Cristo é o Filho de Deus humanado no qual e graças ao qual o mundo e o homem haurem a sua autêntica e plena verdade.
O mistério da infinita proximidade de Deus em relação ao homem – realizado na Encarnação de Jesus Cristo, levado até ao abandono na cruz e à morte – mostra que quanto mais o humano é visto à luz do desígnio de Deus e vivido em comunhão com Ele, tanto mais ele é potenciado e libertado na sua identidade e na mesma liberdade que lhe é própria. A participação na vida filial de Cristo, tornada possível pela Encarnação e pelo dom pascal do Espírito, longe de mortificar, tem o efeito de fazer desabrochar a autêntica e autónoma consistência e identidade dos seres humanos, em todas as suas expressões.

Esta perspectiva orienta para uma visão mais correcta das realidades terrestres e da sua autonomia, que é bem sublinhada pelo ensinamento do Concílio Vaticano II:

«Se por autonomia das realidades terrestres se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm as suas leis e os seus valores próprios, que o homem gradualmente deve descobrir, utilizar e organizar, tal exigência de autonomia é plenamente legítima... corresponde à vontade do Criador. Com efeito, é pela virtude da própria criação que todas as coisas estão dotadas de consistência, verdade, bondade, de leis próprias e de uma ordem que o homem deve respeitar, e reconhecer os métodos próprios de cada uma das ciências ou técnicas» [xix].

46 Não há conflituosidade entre Deus e o homem, mas uma relação de amor na qual o mundo e os frutos do agir do homem no mundo são objecto de dom recíproco entre o Pai e os filhos, e dos filhos entre si, em Cristo Jesus: n’Ele e graças a Ele, o mundo e o homem alcançam o seu significado autêntico e originário.
Em uma visão universal do amor de Deus que abraça tudo o que é, o próprio Deus se nos revelou em Cristo como Pai e Doador de vida, e o homem nos é revelado como aquele que, em Cristo, tudo recebe de Deus como dom, em humildade e liberdade, e tudo possui verdadeiramente como seu, quando conhece e vive tudo como coisa de Deus, por Deus originada e a Deus destinada.
A este propósito, o Concílio Vaticano II ensina:

«Se por autonomia do temporal se entende que as coisas criadas não dependem de Deus e que o homem pode usá-las de tal maneira que as não refira ao Criador, não há ninguém que acredite em Deus, que não perceba quão falsas são tais afirmações.
Na verdade, a criatura sem o Criador perde o sentido» [xx].

47 A pessoa humana, em si mesma e na sua vocação, transcende o horizonte do universo criado, da sociedade e da história: o seu fim último é o próprio Deus [xxi], que se revelou aos homens para convidá-los e recebê-los na comunhão com Ele [xxii].

«O homem não se pode doar a um projecto somente humano da realidade, nem a um ideal abstracto ou a falsas utopias. Enquanto pessoa, consegue doar-se a uma outra pessoa ou outras pessoas e, enfim, a Deus, que é o autor do seu ser e o único que pode acolher plenamente o seu dom» [xxiii].

Por isso «alienado é o homem que recusa transcender-se a si próprio e viver a experiência do dom de si e da formação de uma autêntica comunidade humana, orientada para o seu destino último, que é Deus. Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana» [xxiv].

(cont)





[i] Cf. Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 22: AAS 58 (1966) 1043
[ii] cf. Rm 8
[iii] Concílio Vaticano II, Const. dogm. Dei Verbum, 5: AAS 58 (1966) 819.
[iv] cf. 1 Jo 4, 10
[v] Hb 10, 23
[vi] cf. Jo 15-17; Gal 4, 6-7
[vii] Mc 12, 28
[viii] Mc 12, 29-31
[ix] cf. Mt 5, 43-44
[x] Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 22: AAS 58 (1966) 1043.
[xi] Rom 6, 4
[xii] Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 22: AAS 58 (1966) 1043.
[xiii] Catecismo da Igreja Católica, 1888.
[xiv] Cf. João Paulo II, Carta encicl. Sollicitudo rei socialis, 38: AAS 80 (1988) 565-566
[xv]Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 28: AAS 58 (1966) 1048.
[xvi] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1889.
[xvii] 1 Cor 3, 22-23
[xviii] Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 37: AAS 58 (1966) 1055.
[xix] Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 36: AAS 58 (1966) 1054; cf. Id., Decr. Apostolicam actuositatem, 7: AAS 58 (1966) 843-844.
[xx] Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 36: AAS 58 (1966) 1054.
[xxi] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 2244.
[xxii] Cf. Concílio Vaticano II, Const. dogm. Dei verbum, 2: AAS 58 (1966) 818.
[xxiii] João Paulo II, Carta encicl. Centesimus annus, 41: AAS 83 (1991) 844.
[xxiv] João Paulo II, Carta encicl. Centesimus annus, 41: AAS 83 (1991) 844-845.