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Leitura Espiritual
Cristo que passa |
São Josemaria Escrivá
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Jesus Cristo, fundamento da vida cristã
Quis recordar, embora brevemente, alguns
dos aspectos do viver actual de Cristo - Iesus
Christus heri et hodie; ipse et in saecula; Jesus Cristo é sempre o mesmo,
ontem e hoje, e por toda a eternidade - porque aí está o fundamento de toda a
vida cristã.
Se olharmos ao nosso redor e considerarmos
o decurso da história da Humanidade, observaremos progressos, avanços: a
Ciência deu ao homem uma consciência maior do seu poder; a Técnica domina a
Natureza melhor do que em épocas passadas; e permite à Humanidade sonhar com um
nível mais alto de cultura, de vida material, de unidade.
Talvez alguns se sintam levados a matizar
este quadro, recordando que os homens padecem agora injustiças e guerras
maiores ainda do que as passadas.
E não lhes falta razão.
Mas, por cima dessas considerações,
prefiro recordar que, no domínio religioso, o homem continua a ser homem e Deus
continua a ser Deus.
Neste campo, o cume do progresso já se
deu; é Cristo, alfa e ómega, princípio e fim.
No terreno espiritual não há nenhuma nova
época a que chegar.
Já tudo se deu em Cristo, que morreu e
ressuscitou, e vive, e permanece para sempre.
Mas é preciso unirmo-nos a Ele pela fé,
deixando que a sua vida se manifeste em nós, de maneira que se possa dizer que
cada cristão é, não já alter Christus,
mas ipse Christus, o próprio Cristo.
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Instaurare
omnia in Christo,
é o lema que S. Paulo dá aos cristãos de Éfeso: dar forma a tudo segundo o
espírito de Jesus; colocar Cristo na entranha de todas as coisas: Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad
meipsum: quando Eu for levantado sobre a terra, tudo atrairei a mim.
Cristo, com a sua Encarnação, com a sua
vida de trabalho em Nazaré, com a sua pregação e os seus milagres por terras da
Judeia e da Galileia, com a sua morte na Cruz, com a sua Ressurreição, é o
centro da Criação, Primogénito e Senhor de toda a criatura.
A nossa missão de cristãos é proclamar
essa Realeza de Cristo; anunciá-la com a nossa palavra e com as nossas obras.
O Senhor quer os seus em todas as
encruzilhadas da Terra.
A alguns, chama-os ao deserto,
desentendidos das inquietações da sociedade humana, para recordarem aos outros
homens, com o seu testemunho, que Deus existe.
Encomenda a outros o ministério
sacerdotal.
À grande maioria, o Senhor quere-a no
mundo, no meio das ocupações terrenas.
Estes cristãos, portanto, devem levar
Cristo a todos os ambientes em que se desenvolve o trabalho humano: à fábrica,
ao laboratório, ao trabalho do campo, à oficina do artesão, às ruas das grandes
cidades e às veredas da montanha.
Gosto de recordar a este propósito o
episódio da conversa de Cristo com os discípulos de Emaús.
Jesus caminha junto daqueles dois homens
que perderam quase toda a esperança, de modo que a vida começa a parecer-lhes
sem sentido. Compreende a sua dor, penetra nos seus corações, comunica-lhes
algo da vida que Nele habita.
Quando, ao chegar àquela aldeia, Jesus faz
menção de seguir para diante, os dois discípulos retêm-No e quase O forçam a
ficar com eles.
Reconhecem-No depois ao partir o pão: - O
Senhor, exclamam, esteve connosco! Então disseram um para o outro: Não é
verdade que sentíamos abrasar-se-nos o coração dentro de nós enquanto nos
falava no caminho e nos explicava as Escrituras?
Cada cristão deve tornar Cristo presente
entre os homens; deve viver de tal maneira que todos com quem contacte sintam o
bonus odor Christi, o bom odor de
Cristo, deve actuar de forma que, através das acções do discípulo, se possa
descobrir o rosto do Mestre.
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O cristão sabe que está enxertado em
Cristo pelo Baptismo; habilitado a lutar por Cristo pela Confirmação; chamado a
actuar no mundo pela participação que tem na função real, profética e
sacerdotal de Cristo; feito uma só coisa com Cristo pela Eucaristia, Sacramento
da unidade e do amor.
Por isso, tal como Cristo, há-de viver
voltado para os outros homens, olhando com amor para todos e cada um dos que o
rodeiam, para a Humanidade inteira.
A fé leva-nos a reconhecer Cristo como
Deus, a vê-Lo como nosso Salvador, a identificarmo-nos com Ele, actuando como
Ele actuou.
O Ressuscitado, depois de arrancar das
suas dúvidas o Apóstolo Tomé, mostrando-lhe as chagas, exclama: Bem-aventurados
os que, sem me verem, acreditaram.
Aqui - comenta S. Gregório Magno - fala-se
de nós de um modo particular, porque nós possuímos espiritualmente Aquele a
Quem corporalmente não vimos.
Fala-se de nós, mas com a condição de que
as nossas acções se conformem à nossa fé.
Não crê verdadeiramente senão quem, no seu
actuar, põe em prática o que crê.
Por isso, a propósito daqueles que da fé
não possuem mais do que as palavras, diz S. Paulo: professam conhecer Deus mas
negam-no com as obras.
Não é possível separar em Cristo o ser de
Deus-Homem e a sua função de Redentor.
O
Verbo fez-se carne e veio à Terra ut
omnes homines salvi fiant, para salvar todos os homens. Com todas as nossas
misérias e limitações pessoais, nós somos outros Cristos, o próprio Cristo, e
somos também chamados a servir todos os homens.
É necessário que ressoe uma e outra vez
aquele mandamento que continuará a ser novo através dos séculos: Caríssimos -
escreve S. João - não vos escrevo um mandamento novo, mas um mandamento antigo,
que recebestes desde o princípio.
Este mandamento antigo é a palavra divina
que ouvistes.
E, no entanto, falo-vos de um mandamento
novo, que é verdadeiro n'Ele mesmo e em vós porque as trevas já passaram e já
resplandece a verdadeira luz.
Quem diz que está na luz e aborrece o seu
irmão, ainda está nas trevas.
Quem ama o seu irmão permanece na luz e
nele não há ocasião de queda.
Nosso Senhor veio trazer a paz, a boa
nova, a vida a todos os homens.
Não só aos ricos, nem só aos pobres; não
só aos sábios, nem só à gente simples; a todos; aos irmãos, pois somos irmãos,
já que somos filhos de um mesmo Pai, Deus.
Não há, portanto, mais do que uma raça: a
raça dos filhos de Deus. Não há mais que uma cor: a cor dos filhos de Deus.
E não há senão uma língua: a que nos fala
ao coração e à inteligência, sem ruído de palavras, mas dando-nos a conhecer
Deus e fazendo que nos amemos uns aos outros.
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Contemplação da vida de Cristo
É esse amor de Cristo que cada um de nós
deve se esforçar por realizar na sua vida.
Mas para ser ipse Christus é preciso mirar-se Nele. Não basta ter-se uma ideia
geral do espírito que Jesus viveu; é preciso aprender com Ele pormenores e
atitudes.
É preciso contemplar a sua vida, sobretudo
para daí tirar força, luz, serenidade, paz.
Quando se ama alguém, deseja-se conhecer
toda a sua vida, o seu carácter, para nos identificarmos com essa pessoa.
Por isso temos de meditar na vida de
Jesus, desde o Seu nascimento num presépio até à Sua morte e à Sua
Ressurreição.
Nos primeiros anos do meu labor sacerdotal
costumava oferecer exemplares do Evangelho ou livros onde se narra a vida de
Jesus, porque é necessário que a conheçamos bem, que a tenhamos inteira na
mente e no coração, de modo que, em qualquer momento, sem necessidade de nenhum
livro, cerrando os olhos, possamos contemplá-la como um filme; de forma que,
nas mais diversas situações da nossa vida, acudam à memória as palavras e os
actos do Senhor.
Sentir-nos-emos assim metidos na sua vida.
Na verdade, não se trata apenas de pensar em
Jesus e de imaginar aqueles episódios; temos de meter-nos em cheio neles, como
actores; temos de seguir Cristo tão de perto como Santa Maria, sua Mãe; como os
primeiros Doze; como as santas mulheres; como aquelas multidões que se
apertavam ao Seu redor.
Se fizermos assim, se não criarmos
obstáculos, as palavras de Cristo penetrarão até ao fundo da nossa alma e
transformar-nos-ão. Porque a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante
que uma espada de dois gumes; introduz-se até à divisão da alma e do espírito,
até às junturas e medulas; e discerne os pensamentos e intenções do coração.
Se queremos levar os outros homens ao
Senhor, é necessário abrir o Evangelho e contemplar o amor de Cristo.
Podíamos fixar as cenas-cume da Paixão,
porque, como Ele mesmo disse, ninguém tem maior amor do que aquele que dá a
vida pelos seus amigos. Mas também podemos considerar o resto da sua vida, o
seu modo habitual de tratar com quem se cruzava com Ele.
Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem,
procedeu de um modo humano e divino para fazer chegar aos homens a Sua doutrina
de salvação e para lhes manifestar o amor de Deus.
Deus condescende com o homem, assume a
nossa natureza sem reservas, excepto no pecado.
Dá-me uma grande alegria considerar que
Cristo quis ser plenamente homem, com carne como a nossa.
Emociona-me contemplar a maravilha de um
Deus que ama com coração de homem.
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Entre tantas cenas narradas pelos
Evangelistas, detenhamo-nos a considerar algumas, começando pelos relatos do
convívio de Jesus com os Doze.
O Apóstolo João, que verte no seu
Evangelho a experiência de uma vida inteira, narra a primeira conversa com o
encanto daquilo que nunca mais se pode esquecer: - Mestre, onde moras?
Disse-lhe Jesus: Vinde e vede. Foram,
pois, e viram onde morava e ficaram com Ele aquele dia.
Diálogo divino e humano, que transformou a
vida de João e de André, de Pedro, de Tiago e de tantos outros; que preparou os
seus corações para escutarem a palavra imperiosa que Jesus lhes dirigiu junto
ao mar da Galileia: Caminhando Jesus junto ao mar da Galileia, viu dois irmãos,
Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, lançando as redes ao mar, porque eram
pescadores.
E disse-lhes: Segui-Me, e Eu farei de vós
pescadores de homens. Deixando as redes, imediatamente O seguiram.
Nos três anos seguintes Jesus convive com
os seus discípulos, conhece-os, responde às suas perguntas, resolve as suas
dúvidas.
Sim, é o Rabi, o Mestre que fala com
autoridade, o Messias enviado por Deus; mas, ao mesmo tempo, é acessível,
próximo.
Um dia Jesus retira-se para orar.
Os discípulos estavam perto, olhando
talvez para Ele e tentando adivinhar as suas palavras.
Quando regressa, um deles roga-Lhe: - Domine, doce nos orare, sicut docuit et
Ioannes discipulos suos; ensina-nos a orar, como João ensinou aos seus
discípulos.
E Jesus responde-lhes: Quando orardes,
dizei: Pai, santificado seja o Teu nome...
Também com autoridade de Deus e com
carinho humano recebe o Senhor os Apóstolos, quando, assombrados pelos frutos
da sua primeira missão, Lhe comentavam as primícias do seu apostolado: Vinde,
retiremo-nos a um lugar deserto e repousai um pouco.
Uma cena muito similar se repete quase no
final da vida de Jesus na Terra, pouco antes da Ascensão: Ao surgir a manhã,
apresentou-Se Jesus na praia, mas os discípulos não sabiam que era Ele.
Disse-lhes então Jesus: Rapazes, tendes
alguma coisa de comer? Aquele que tinha perguntado como homem, fala depois como
Deus: Lançai a rede à direita do barco e encontrareis.
Lançaram-na, pois, e mal a podiam
arrastar., devido à grande quantidade de peixe.
Então o discípulo predilecto de Jesus
disse a Pedro: É o Senhor.
E Deus espera-os na margem: Logo que
saltaram para terra viram ali umas brasas com peixe em cima, e pão.
Disse-lhes Jesus: Trazei dos peixes que
apanhastes agora. Simão Pedro subiu à barca e puxou a rede para terra, cheia de
cento e cinquenta e três grandes peixe; e, sendo tantos, não se rompeu a rede.
Disse-lhes, Jesus: Vinde comer.
E nenhum dos discípulos se atrevia a
perguntar-Lhe: Quem és Tu?, sabendo que era o Senhor.
Então Jesus aproximou-Se, tomou o pão e
deu-lho, fazendo o mesmo com o peixe.
Esta delicadeza e carinho, manifesta-os
Jesus, não só com um pequeno grupo de discípulos, mas com todos: com as santas
mulheres, com representantes do Sinédrio, com Nicodemos e com publicamos, como
Zaqueu, com doentes e com sãos, com doutores da Lei e com pagãos, com pessoas,
individualmente, e com multidões inteiras.
Narram-nos os Evangelhos que Jesus não
tinha onde reclinar a cabeça, mas contam-nos também que tinha amigos queridos e
de confiança, ansiosos por recebê-Lo em sua casa.
E falam-nos da sua compaixão pelos enfermos,
da sua mágoa pelos que ignoram e erram, da sua indignação perante a hipocrisia.
Jesus chora pela morte de Lázaro, ira-se
com os mercadores que profanam o Templo, deixa que se enterneça o seu coração
com a dor da viúva de Naim.
(cont)