06/08/2014

Jesus, em teu nome procurarei almas

"Duc in altum" – Ao largo! – Repele o pessimismo que te torna cobarde. "Et laxate retia vestra in capturam” – e lança as redes para pescar. Não vês que podes dizer, como Pedro: "In nomine tuo, laxabo rete". – Jesus, em teu nome procurarei almas? (Caminho, 792)

Acompanhemos Jesus nesta pesca divina. Jesus está junto do lago de Genesaré e as pessoas comprimem-se à sua volta, ansiosas por ouvirem a palavra de Deus. Tal como hoje! Não estais a ver? Estão desejando ouvir a mensagem de Deus, embora o dissimulem exteriormente. Talvez alguns se tenham esquecido da doutrina de Cristo; talvez outros, sem culpa sua, nunca a tenham aprendido e olhem para a religião como coisa estranha... Mas convencei-vos de uma realidade sempre actual: chega sempre um momento em que a alma não pode mais; em que não lhe bastam as explicações vulgares; em que não a satisfazem as mentiras dos falsos profetas. E, mesmo que nem então o admitam, essas pessoas sentem fome, desejam saciar a sua inquietação com os ensinamentos do Senhor. (Amigos de Deus, nn. 260)

Temas para meditar 197



Cristão (características)




Alegria e serenidade são os traços que distinguem a fisionomia do cristão.



georges chevrot Jesus e a Samaritana Éfeso 1956 pg. 173

Tratado da lei 76

Questão 105: Da razão de ser dos preceitos judiciais.

Art. 2 — Se os preceitos judiciais relativos ao convívio social foram convenientemente estabelecidos.

O segundo discute-se assim. — Parece que os preceitos judiciais relativos ao convívio social foram inconvenientemente estabelecidos.

1. — Pois, os homens não podem conviver pacificamente, se um se apoderar do pertencente a outro. Ora, isto parece estar permitido na lei, quando diz (Dt 23, 24): Se entrares na vinha de teu próximo, come quantas uvas quiseres. Logo, a lei antiga não cuida convenientemente da paz social.

2. Demais. — Muitos estados e reinos foram destruídos sobretudo por se ter permitido às mulheres o direito de propriedade, como diz o Filósofo. Ora, isto foi estabelecido pela lei antiga (Nm 27, 8): Quando algum homem morrer sem filhos, a herança passará à sua filha. Logo, a lei não cuidou convenientemente do bem do povo.

3. Demais. — A sociedade humana conserva-se principalmente por os homens, comprando e vendendo, comunicarem-se entre si os bens de que precisam, como diz Aristóteles. Ora, a lei antiga tirou o poder de vender, pois, ordenava que a propriedade vendida revertesse ao vendedor no quinquagésimo ano do jubileu, como está claro na Escritura (Lv 25, 28). Logo, neste ponto, a lei preceituou inconvenientemente ao povo judeu.

4. Demais. — As necessidades humanas exigem, antes de tudo, que os homens estejam prontos a fazer concessões mútuas. Ora, essa disposição é eliminada se os credores não restituem o que recebem. Por isso, diz a Escritura (Sr 29, 10): Muitos deixaram de emprestar, não por desumanidade, mas porque temeram ser defraudados sem o merecerem. Ora, a lei permitia isso. Primeiro, porque mandou (Dt 15, 2): Aquele a quem seu amigo ou seu próximo ou seu irmão dever alguma coisa não a poderá repetir, porque é o ano da remissão do Senhor. E noutro lugar (Ex 22, 15) diz, que, presente o dono, se o animal emprestado tiver morrido, não estará obrigado a restituí-lo. Segundo, porque se anula a garantia fundada no penhor, pois, diz a lei (Dt 24, 10): Quando requereres de teu próximo alguma coisa que ele te deve, não entrarás em sua casa para dela levares algum penhor, e ainda (Dt 24, 12-13): Não pernoitará em tua casa o penhor, mas, imediatamente tornarás a dar-lho. Logo, a lei dispôs insuficientemente sobre o mútuo.

5. Demais. — Como a defraudação do depósito leva a um perigo máximo, é mister empregar nisso a máxima cautela. Por isso, diz a Escritura (2 Mc 3, 15): Os sacerdotes invocavam aquele que está do céu dominando tudo, que fez uma lei sobre os depósitos, rogando-lhe que os guardasse salvos para aqueles que os tinham depositado. Ora, nos preceitos da lei antiga estabelece-se uma pequena cautela relativa aos depósitos. Se o depósito for perdido, ficará garantido pelo juramento do depositário. Logo, neste ponto, a lei não dispôs convenientemente.

6. Demais. — Assim como um mercenário aluga o seu trabalho, assim outros alugam a casa ou bens semelhantes. Ora, não era necessário que o locatário pagasse imediatamente o preço da coisa alugada. Logo, também era muito duro o seguinte preceito da lei (Lv 19, 13): Não deterás em teu poder até o dia seguinte a paga do jornaleiro.

7. Demais. — Como frequentemente se tem necessidade do juiz, deve ser fácil o acesso ao mesmo. Logo, a lei estatuiu inconvenientemente, que fossem a um lugar determinado a fim de obter julgamento nas suas questões.

8. Demais. — É possível não só dois, mas ainda três ou mais concordarem em mentir. Logo, inconvenientemente estabelece a lei (Dt 19, 15): tudo passará por constante sobre o depoimento de duas ou três testemunhas.

9. Demais. — A pena deve ser infligida conforme a gravidade da culpa. Por isso diz a lei (Dt 25, 2): O número dos golpes regular-se-á pela qualidade do pecado. Ora, a certas culpas iguais a lei estatuiu penas desiguais: Assim, quando diz (Ex 22, 1): o ladrão restituirá cinco bois por um boi e quatro ovelhas por uma ovelha. Também alguns pecados não muito graves punia com pena grave, assim, quem era colhido enfeixando lenha no sábado era apedrejado (Nm 15, 32 ss). Também o filho insolente, porque cometeu um pequeno delito, i. é, porque passava a vida em comezainas e banquetes, mandava-o lapidar (Dt 21, 18 ss). Logo, as penas da lei foram inconvenientemente estatuídas.

10. Demais. — Diz Agostinho: as leis estabelecem oito géneros de penas, segundo escreve Túlio e são os seguintes: a multa, os ferros, os açoites, o talião, a infâmia, o exílio, a morte, a servidão. Dessas, a lei antiga estatuiu algumas. Assim, a multa, quando o ladrão era condenado a pagar o quíntuplo ou o quádruplo. Os ferros, quando mandava encerrar num cárcere o delinquente. Os açoites, quando determina (Dt 25, 2): Se virem que o delinquente merece açoites, deitá-lo-ão em terra e fá-lo-ão açoitar na sua presença. A infâmia era aplicada contra aquele que, não querendo desposar a mulher do seu irmão defunto, esta lhe tirava o sapato e lhe cuspia na face. (Dt 25, 9) Também aplicava a pena de morte, quando diz (Lv 20, 9): O que amaldiçoar o seu pai ou a sua mãe morra de morte. E enfim, a de talião (Ex 21, 24): Olho por olho, dente por dente. Logo, inconvenientemente, a lei deixava de infligir as outras duas penas — a da escravidão e a do exílio.

11. Demais. — A pena só é devida à culpa. Ora, os brutos não são passíveis de culpa. Logo, inconvenientemente a lei lhe infligia pena, quando diz (Ex 21, 29): O boi, que matar um homem ou uma mulher, será apedrejado, e (Lv 20, 16): A mulher que se ajuntar com qualquer bruto será morta juntamente com ele. Donde se conclui que a lei antiga ordenou inconvenientemente sobre o convívio social dos judeus.

12. Demais. — O Senhor mandou, que o homicídio fosse punido com a morte do homicida. Ora, a morte de um bruto tem muito menos importância que a de um homem. Logo, a pena do homicídio não pode ser suficientemente compensada pela de um bruto. Logo, é inconveniente a seguinte disposição da lei (Dt 21, 1-4): Quando for achado o cadáver de um homem que foi morto, sem que se saiba quem foi o matador, sairão os anciãos da cidade mais vizinha e tomarão da manada uma novilha, que não tenha ainda carregado com o jugo nem fendido a terra como a relha do arado, e levá-lo-ão a um vale áspero e pedregoso, que nunca tivesse sido lavrado nem semeado, e ali cortarão o pescoço à novilha.

Mas, em contrário, a Escritura lembra o seguinte, como benefício (Sl 147, 20): Não fez assim a toda outra nação e não lhes manifestou o seu juízo.

Como diz Agostinho, citando Túlio, um povo é a associação de muitos indivíduos, baseada no consenso jurídico e na utilidade comum. Donde, a noção de povo implica uma comunhão de homens ordenada por justos preceitos legais. Ora, há duas espécies de comunhão entre os homens. Uma fundada na autoridade do príncipe, outra, na vontade própria dos indivíduos. E como cada um pode dispor do que lhe pertence, é necessário que, pela vontade do príncipe, que a justiça se exerça entre os seus súditos e penas sejam infligidas aos malfeitores. Por outro lado, aos indivíduos pertence-lhes o que possuem, e portanto, por autoridade própria, podem dispor disso, uns em relação aos outros, por compra, venda, doação e modos semelhantes.

Ora, sobre uma e outra espécie de comunhão a lei ordenou suficientemente. Assim, estabeleceu juízes (Dt 16, 18): Estabelecerás juízes e magistrados em todas as tuas portas, para que julguem o povo com retidão de justiça. Instituiu também a ordem justa do julgamento (Dt 1, 16-17): Julgai o que for justo, ou ele seja cidadão ou estrangeiro: nenhuma distinção haverá de pessoas. Evitou ainda a ocasião de juízos injustos, proibindo aos juízes aceitarem dádivas (Ex 23, 8, Dt 16, 19). Determinou, além disso, o número duplo ou triplo das testemunhas. E enfim, estabeleceu penas certas pelos diversos delitos, como depois se dirá (ad 10).

Quando à propriedade, é óptimo, como diz o Filósofo, que ela seja exercida separadamente, e o uso dela, em parte, comum, e, em parte, dividido, por vontade dos proprietários.

Ora, estes três modos de possuir foram estabelecidos pela lei antiga. — Pois, primeiro, a propriedade foi dividida entre particulares (Nm 33, 53-54): Eu vos dei a terra para a possuirdes, a qual repartireis entre vós por sorte. Ora, como diz o Filósofo, muitas cidades foram destruídas pelos modos irregulares de propriedade. Por isso a lei estabeleceu tríplice remédio para regular a propriedade. — O primeiro, que fosse dividida igualmente pelo número de homens, por isso se diz: Aos que forem em maior número dareis maior porção, e aos que forem menos, porção mais pequena. — O segundo, que a propriedade não pudesse ser alienada perpetuamente, mas que, depois de certo tempo, revertesse aos seus proprietários para que não se confundissem os lotes possuídos. — O terceiro, para evitar a confusão, de os parentes próximos sucederem aos mortos. No primeiro grau, o filho, no segundo, a filha, no terceiro, os irmãos, no quarto, os tios paternos, no quinto, quaisquer outros parentes próximos. E para conservar ulteriormente a distinção dos lotes, a lei estatuiu que as mulheres herdeiras se casassem com homens das suas tribos.

Quanto ao segundo modo de propriedade a lei instituiu que sob certos aspectos o uso das coisas fosse comum. — Primeiro, quanto ao cuidado delas, preceitua (Dt 22, 1-4): Vendo extraviados o boi ou a ovelha de teu irmão, não passarás de largo, mas conduzi-los-ás a teu irmão, e assim em casos semelhantes. — Segundo, quanto ao fruto. Pois, era permitido em comum a todos entrar licitamente na vinha do amigo e comer dela, contanto que não levasse frutos para fora. E mandava, especialmente, que se deixassem para os pobres as gamelas esquecidas, os frutos e os cachos de uva remanescentes (Lv 19, 9, Dt 24, 19). E também eram repartidos, os frutos nascidos no sétimo ano.

Quanto ao terceiro modo, a lei estatuía a repartição feita pelos proprietários. — Uma, puramente gratuita (Dt 14, 28-29): Todos os três anos separarás outro dízimo, e virão os levitas e o peregrino e o órfão e a viúva e comerão e se fartarão. — Outra, em recompensa da utilidade, como, por compra e venda, locação e condução, mútuo e, ainda, por depósito. E a respeito de tudo isso encontram-se ordenações certas na lei.

Donde fica claro, que a lei antiga ordenou suficientemente sobre as relações sociais do povo judeu.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Como diz o Apóstolo (Rm 13, 8), aquele que ama ao próximo tem cumprido com a lei, porque todos os preceitos da lei, sobretudo os ordenados ao próximo, o foram para o fim de os homens se amarem uns aos outros. Ora, do amor procede ao repartirem entre si os seus bens, conforme a Escritura (1 Jo 3, 17): O que vir a seu irmão ter necessidade e lhe fechar as suas entranhas, como está nele à caridade de Deus? Por isso a lei visava acostumar os homens a repartirem facilmente entre si os seus bens, e também o Apóstolo manda aos ricos deem facilmente e repartam (1 Tm 6, 18). Ora, não reparte facilmente quem não suporta que o próximo tire, sem causar grande detrimento, um pouco dos seus bens. Por isso, a lei ordenou que fosse lícito ao que entrasse na vinha do próximo comer quantas uvas quisesse, sem levar consigo para fora, para que isso não fosse ocasião de causar graves danos, que iria perturbar a paz. Pois, entre disciplinados, ela não se perturba por tirar alguém um pouco dos bens de outrem, o que, ao contrário, confirma a amizade e acostuma os homens a repartir facilmente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A lei determinou que só na falta de filhos varões as mulheres sucedessem nos bens paternos. Pois então era necessário que a sucessão fosse concedida às mulheres, para consolação do pai, a quem seria penoso ver a sua herança passar completamente a estranhos. Mas a lei acrescenta neste ponto a cautela necessária ordenando que as mulheres, sucedendo na herança paterna, casassem com homens da sua tribo, para se não confundirem os lotes das tribos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz o Filósofo, a regulamentação da propriedade contribui muito para a conservação da cidade ou da nação. Por isso, como ele ainda diz, certas nações gentias estatuíram, que ninguém pudesse vender as suas propriedades, senão por manifesta necessidade. Pois, se as vendessem a cada passo, poderia acontecer viesse a propriedade a cair totalmente em mãos de poucos, e então, haveria necessariamente a cidade ou a região de ficar vazia de habitantes. Por isso a lei antiga, a fim de evitar esse perigo, ordenou de modo a satisfazer as necessidades dos homens, permitindo a venda das propriedades durante um certo tempo. Mas simultaneamente evitou o perigo, ordenando que depois desse tempo, a propriedade vendida revertesse ao vendedor. E assim o fez para os lotes se não confundirem, e permanecesse sempre a mesma distinção determinada das tribos. — Mas como os edifícios urbanos não constituíam lotes distintos, a lei permitia que como os bens móveis, pudessem ser vendidos definitivamente. Pois, não era fixo o número das casas da cidade, como era certa a medida dos lotes, que não podia ser aumentada. Ao passo que o podia o número das casas urbanas. As casas, porém que não eram urbanas e que não tinham muros em torno do terreno, não podiam ser vendidas com carácter perpétuo, porque tais casas não eram construídas senão para a cultura e a guarda da propriedade. Por isso e justamente, a lei estabeleceu a mesma disposição para elas que para os lotes.

RESPOSTA À QUARTA. — Como já se disse, a intenção da lei, nos seus preceitos, era levar os homens a acostumarem-se a satisfazer mutuamente as necessidades uns dos outros. Por isso sobretudo fomenta a amizade. E essa facilidade de se proverem uns aos outros ela quis estabelecer, não só no atinente às prestações gratuitas e absolutas, mas ainda ao concedido por mútuo. Porque este contrato é o mais frequente e o mais necessário ao maior número.

Por isso, institui muitas disposições para facilitar essa transação. Primeiramente, determinou que fossem os judeus fáceis em fazer empréstimo, nem de tal se retraíssem por aproximar-se o ano da remissão. — Segundo, não agravassem, aquele a quem concedessem mútuo, com usuras, ou recebendo como penhor coisas absolutamente necessárias à vida, e se as recebessem, que as restituíssem imediatamente. Pois assim se lê na Escritura (Dt 23, 19): Não emprestarás com usura a teu irmão, e (Dt 24, 6): Não receberás em lugar do penhor nem a mó de cima nem a de baixo, porque te deu por penhor a sua própria vida, e ainda (Ex 22, 26): Se receberes do teu próximo em penhor a sua capa, restitua antes do sol-posto — Terceiro, não exigissem o pagamento importunamente. Assim, estatui (Ex 22, 25): Se emprestares algum dinheiro ao necessitado do meu povo que habita contigo, não o apertarás como um exactor. E por isso também ordenava (Dt 24, 10-11): Quando requereres de teu próximo alguma coisa que ele te deve, não entrarás em sua casa para dela levares algum penhor, mas estarás de fora e ele te trará o que tiver. Isso, ou porque a casa, sendo o nosso abrigo mais seguro, é molesto ao dono que lha invadam ou para não permitir ao credor tomasse o penhor que quisesse, mas antes, de modo que o devedor desse como penhor aquilo de que menos precisasse. — Em quarto lugar, instituiu que, no sétimo ano, os débitos fossem completamente perdoados. Pois era provável que os que podiam restituir, comodamente, o fizessem antes do sétimo ano e não defraudasse, voluntariamente, o prestamista. Se porém os devedores fossem absolutamente insolventes, os credores deviam de perdoar-lhes o débito em virtude do mesmo amor por que deviam dar de novo, por causa de indigência.

Quanto aos animais emprestados, a lei estatuiu o seguinte. Se morressem ou se estropiassem, na ausência daquela a quem foram emprestados, e por negligência do mesmo, ele era obrigado à restituição. Se porém morressem ou se estropiassem, apesar da sua presença e do cuidado diligente, não estava obrigado a restituir. E sobretudo, se tivessem sido alugados. Porque, então, como podiam morrer e estropiar-se em poder do mutuante, este, conseguida a conservação do animal, como já tinha tirado lucro do mútuo, não teria mutuado de graça. Isto principalmente devia observar-se quando os animais eram tomados por aluguer. Porque então, o uso deles, sendo pago por um certo preço, nada mais se devia pagar, com a restituição dos mesmos, salvo por algum dano resultante da negligência do prestamista. Se porem os animais não tivessem sido tomados de aluguer, poderia haver uma certa equidade, de modo a pelo menos se pagar tanto quanto pudesse dar de aluguer o uso do animal morto ou estropiado.

RESPOSTA À QUINTA. — O mútuo e o depósito diferem em ser o primeiro feito em benefício do mutuado, enquanto o segundo, em benefício do depositante. Por isso, em certos casos, havia maior obrigação de restituir o mútuo do que o depósito. Pois este podia perder-se de dois modos. Por uma causa inevitável ou natural, p. ex., se o animal depositado morreu ou se estropiou. Ou por uma causa extrínseca, p. ex., se foi tomado por inimigos ou devorado por uma fera. E neste caso, havia obrigação de restituir ao dono o que restava do animal morto. Nos demais casos supra-referidos, não havia nenhuma obrigação de restituir, mas somente a de prestar juramento, para evitar a suspeita de fraude. De outro modo, o depósito podia ser perdido por uma causa evitável, p. ex., o furto. E então, por causa da sua negligência, o depositário tinha obrigação de restituir. Mas, como já dissemos (a. 4), quem recebia um animal em mútuo, estava obrigado a restituí-lo, mesmo que, na sua ausência, o animal tivesse morrido ou ficado estropiado. Assim, respondia por uma negligência menor que a por que respondia o depositário, que era só a do furto.

RESPOSTA À SEXTA. — Os mercenários, que alugavam o seu trabalho, eram pobres e tiravam dele o sustento quotidiano. Por isso a lei sabiamente ordenou que logo se lhes pagasse o salário, para lhes não faltar o sustento. Mas os que alugavam outras coisas eram em geral ricos, e assim não precisavam do preço da locação para o sustento quotidiano. Donde, a situação não é a mesma em ambos os casos.

RESPOSTA À SÉTIMA. — Os juízes são constituídos para resolverem os casos duvidosos de justiça entre os homens. Ora, pode haver dúvida dupla. — Uma, entre pessoas simples. E para resolvê-la a lei ordenava (Dt 16, 18): Estabelecerás juízes e magistrados em todas as tribos, para que julguem o povo em rectidão de justiça. — Mas também, pode haver dúvidas mesmo entre peritos. E, para o evitar, a lei determinou que todos buscassem o lugar principal escolhido por Deus, em que haveria de estar o sumo-sacerdote, para resolver as dúvidas relativas às cerimónias do culto divino, e estabeleceu um juiz sumo do povo, que resolvesse sobre o atinente aos julgamentos entre as partes. Assim também hoje, por apelação ou consulta, as causas dos juízes inferiores são deferidas aos superiores. Por isso diz a lei (Dt 17, 8-9): Se acontecer que penda diante de ti algum negócio difícil e escabroso, e vires que dentro das tuas portas são vários os pareceres dos juízes, levanta-te e sobe ao lugar que o Senhor teu Deus tiver escolhido, e encaminhar-te-ás aos sacerdotes da linhagem da Levi e ao juiz que nesse tempo for. Mas, como esses julgamentos de causas duvidosas não sucediam frequentemente, o povo não ficava com isso onerado.

RESPOSTA À OITAVA. — Os negócios humanos não são susceptíveis de prova demonstrativa e infalível, mas basta uma probabilidade conjectural, como a de que usam os oradores. Donde, embora seja possível duas ou três testemunhas combinarem para mentir, não é contudo fácil nem provável que o façam. Por isso recebesse o testemunho como verdadeiro, e sobretudo se neles não vacilarem e não forem, por outras causas, suspeitas. E assim, porque as testemunhas não se desviavam facilmente da verdade, a lei instituiu que fossem diligentissimamente examinadas, e as falsas punidas gravemente. Havia ainda alguma razão de lhes determinar o número, que é significar a infalível verdade das Pessoas divinas. Estas são às vezes consideradas como duas, porque o Espírito Santo é o nexo entre elas, ora, como três, segundo Agostinho, comentando aquilo da Escritura (Jo 8, 17): E na vossa própria lei está escrito que o testemunho de duas pessoas é verdadeiro.

RESPOSTA À NONA. — Não só pela gravidade da culpa, mas também por outras inflige-se uma pena grave. Primeiro, pela gravidade do pecado, pois, todas as condições sendo iguais, ao maior pecado é devida pena mais grave. Segundo, por causa do costume no pecar, porque os homens não se afastam facilmente de pecados habituais senão por meio de penas graves. Terceiro, por causa da intensa concupiscência ou deleitação no pecado, coisas de que se os homens não apartam facilmente, senão por causa de penas graves. Quarto, pela facilidade em cometer o pecado e perdurar nele, pois tais pecados, quando manifestados, devem ser sobretudo punidos para aterrorizar os outros pecadores.

Quanto à gravidade do pecado, devemos atender a um quádruplo grau, ainda relativamente a um mesmo facto. — O primeiro era quando alguém cometia o pecado involuntariamente. Então, se fosse absolutamente involuntário, havia escusa completa da pena. Por isso, diz a lei, que se uma donzela for violentada no campo, não é ré de morte, porque gritou e não houve alguém que a livrasse. Se porém o pecado fosse de algum modo voluntário, mas cometido por fraqueza, p. ex., quando se peca por paixão, esse pecado ficaria diminuído. E então a pena, conforme a um verdadeiro julgamento, devia diminuir. Salvo, se merecesse ser agravada, por causa do bem comum, a fim de afastar os outros de cometerem tal pecado, como já se disse. — O segundo grau era quando alguém pecava por ignorância. E então de certo modo era reputado réu, por causa da negligência em informar-se, contudo, não era punido pelos juízes, mas expiava o pecado com sacrifícios. Por isso diz a Escritura (Lv 4, 2): Se alguém pecar por ignorância oferecerá uma cabra sem defeito. Mas, isto deve entender-se da ignorância de facto e não, da ignorância do preceito divino, que todos eram obrigados a conhecer. — O terceiro grau era quando alguém pecava por soberba, i. é, por eleição ou por malícia certas. E então era punido conforme a gravidade do delito. — O quarto grau, quando pecava por protérvia e pertinácia. E nesse caso devia absolutamente ser morto como rebelde e infractor da ordem legal.

Ora, conforme estas disposições devemos concluir que, na pena do furto, a lei considerava o que podia frequentemente acontecer. Donde, no furto de coisas fáceis de se guardarem dos ladrões, estes não deviam restituir senão o duplo. Ora, ovelhas não se podem facilmente guardar de serem furtadas, pois, pastando nos campos, acontecia frequentemente que o eram. Por isso a lei impôs pena maior, estabelecendo se restituíssem quatro por uma. Mas já os bois guardam-se mais dificilmente, por viverem largados nos campos e não pastarem em rebanhos, como as ovelhas. Por isso, impôs em tal caso pena ainda maior, mandando restituir cinco bois por um. E isto digo, não fosse o caso em que o animal furtado fosse encontrado vivo em poder do ladrão, pois então, como nos demais furtos, restituía só o duplo, por poder presumir-se que, conservando-o vivo, pensava em restituí-lo. Ou pode dizer-se, segundo a Glosa, que o boi e a vaca têm cinco utilidades: serem imolados, arar, dar a carne, dar leite e ainda fornecer couro para muitos ursos. Por isso, por um boi furtado, o ladrão devia restituir cinco. Também a ovelha tem quatro utilidades: ser imolado, dar carne, leite, e fornecer a lã.

Quanto ao filho contumaz, era morto, não por ter comido e bebido, mas por causa da contumácia e da rebelião, sempre punidas com a morte, como se disse. — O que colhia lenha ao sábado era lapidado, como violador da lei, que mandava observar o sábado em comemoração da criação do mundo, como já dissemos (q. 100, a. 5), por isso era morto como infiel.

RESPOSTA À DÉCIMA. — A lei antiga infligia a pena de morte nos crimes mais graves, i. é, nos pecados contra Deus, no homicídio, no furto de homens, na irreverência para com os pais, no adultério e no incesto. Mas, no furto de outras coisas, estabeleceu a pena da multa. Nos ferimentos e mutilações, a pena de talião, e semelhantemente, no pecado de falso testemunho. Nas outras culpas menores, a de flagelação ou de infâmia.

A pena de escravidão infligiu-a em dois casos. Primeiro, quando, no sétimo ano da remissão, o escravo não queria usar do benefício da lei e sair livre, por isso era-lhe infligida a pena de ficar perpetuamente escravo. Segundo, ao ladrão, quando não tinha com que restituir.

A pena do exílio a lei não a cominou, absolutamente falando, porque, enquanto os demais povos jaziam na corrupção da idolatria, só o povo judeu adorava a Deus. Por isso, se alguém fosse excluído completamente desse povo, correria perigo de cair na idolatria. Donde, a Escritura refere que Davi disse a Saul (1 Sm 26, 19): Malditos são os que me arrojaram hoje, para que eu não habite na herança do Senhor, dizendo: Vai, serve a deuses estrangeiros. Havia porém um exílio particular, e era o seguinte. Quem ferisse, sem o cuidar, o próximo, não podendo provar-se que nutria qualquer ódio contra ele, devia refugiar-se numa das cidades destinadas para tal e aí permanecer até a morte do sumo-sacerdote. E então era-lhe lícito voltar para a casa, porque as iras particulares costumam aplacar-se com calamidade geral do povo, e assim, já os parentes próximos do morto não estavam mais propensos a matar o homicida.

RESPOSTA À UNDÉCIMA. — Mandavam-se matar os animais, não por qualquer culpa deles, mas como pena dos donos, que não os impediram de cometerem as referidas transgressões da lei. Por isso, o dono era sobretudo punido se o boi já era muito avezado a marrar, pois nesse caso podia obviar o perigo mais facilmente, que se o boi se pusesse subitamente a dar marradas. Ou os animais eram mortos para fazer detestar o pecado, e pelo seu aspecto, não incutirem horror nos homens.

RESPOSTA À DUODÉCIMA. — A razão literal da disposição citada estava, como diz o Rabbi Moisés, em o homicida ser frequentemente de alguma cidade próxima. E matava-se a novilha para descobrir o homicídio oculto, o que se fazia por três meios. Um era que os anciãos convocados juravam nada ter omitido para guardar os caminhos. Outros, que o dono da novilha era danificado com a morte da mesma, de modo que se, antes, o homicídio fosse descoberto, o animal não seria morto. O terceiro, que o lugar em que a novilha fosse morta permanecia inculto. Por isso, a fim de evitar um e outro dano, os homens da cidade facilmente indicariam o homicida, se o soubessem, e raramente aconteceria que não se viesse a saber quaisquer palavras ou indícios relativos a ele. — Ou isso fazia-se para incutir o terror do homicídio e fazer detestá-lo. Assim, a morte da novilha, animal útil e robusto, principalmente antes de trabalhar sob o jugo, significava que quem quer que cometesse um homicídio, embora útil e forte, devia ser morto e com morte cruel, significada pela degolação. E que, como vil e abjecto, devia ser excluído do convívio humano. Isso era significado pelo abandono da novilha morta num lugar áspero e inculto, para apodrecer.

Misticamente porém, a novilha do rebanho significa a carne de Cristo, que não sofreu o jugo, não cometeu pecado nem fendeu a terra com o arado, i. é, não se manchou com mácula nenhuma de sedição. O ser morta num vale áspero, significa a desprezada morte de Cristo, que purgou todos os pecados, e mostra que o diabo é o autor do homicídio.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evang.; Coment.; Leit. Esp. (Cong para a Doutrina da Fé - Aborto provocado)

Tempo comum XVIII Semana

Transfiguração

Evangelho: Mt 17, 1-9

Seis dias depois, tomou Jesus consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e levou-os à parte a um monte alto, 2 e transfigurou-Se diante deles. O Seu rosto ficou refulgente como o sol, e as Suas vestes tornaram-se luminosas de brancas que estavam. 3 Eis que lhes apareceram Moisés e Elias falando com Ele. 4 Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: «Senhor, que bom é nós estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas, uma para Ti, uma para Moisés, e outra para Elias». 5 Estando ele ainda a falar, eis que uma nuvem resplandecente os envolveu; e saiu da nuvem uma voz que dizia: «Este é o Meu Filho muito amado em Quem pus toda a Minha complacência; ouvi-O». 6 Ouvindo isto, os discípulos caíram de bruços, e tiveram grande medo. 7 Porém, Jesus aproximou-Se deles, tocou-os e disse-lhes: «Levantai-vos, não temais». 8 Eles, então, levantando os olhos, não viram ninguém, excepto só Jesus. 9 Quando desciam do monte, Jesus fez-lhes a seguinte proibição: «Não digais a ninguém o que vistes, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos».

Comentário:

Sempre a mesma recomendação: «Não temais»!

Perante o inexplicável, a dúvida fundamentada ou não, o temor do que virá a seguir, as consequências do que acontece na vida corrente, tem, sempre, esta mesma recomendação do Senhor: «Não temais»!

Na verdade o que nos diz é: “Eu, sou o Senhor da vida e da morte, do hoje e do amanhã, de mim depende tudo quanto acontece, não há, pois, razão para ter medo porque, Eu, dei a minha vida por vós – todos – como provei com a minha morte na Cruz.

(AMA, Comentário sobre Mt 17, 1-9, 2013.08.06)


Leitura espiritual



Documentos do Magistério

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ
DECLARAÇÃO
sobre o aborto provocado

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IV. RESPOSTA A ALGUMAS OBJECÇÕES

14. A lei divina e a razão natural excluem, portanto, todo o direito a matar directamente um homem inocente. No entanto, se as razões apresentadas para justificar um aborto fossem sempre manifestamente infundadas e destituídas de valor o problema não seria assim tão dramático.

A sua gravidade provém de que em alguns casos, talvez bastante numerosos, ao recusar o aborto se inflige dano pelo que respeita a bens importantes, que é normal terem-se muito a peito e que podem mesmo parecer, algumas vezes, prioritários. Não ignoramos estas grandes dificuldades: pode tratar-se de um grave problema de saúde, ou por vezes mesmo de vida ou de morte, para a mãe; pode ser o encargo que representa mais um filho, sobretudo quando existem boas razões para temer que ele virá a ser anormal ou gravemente defeituoso; pode ser, ainda, o peso de que se revestem, em diversos meios, as considerações de honra e de desonra, de baixar de nível social, etc. Mas deve-se afirmar de modo absoluto que jamais alguma destas razões poderá vir a conferir objectivamente o direito de dispor da vida de outrem, mesmo que esta esteja a começar; e, pelo que diz respeito à infelicidade futura da criança, ninguém, nem mesmo o pai ou a mãe, se podem substituir a ela, embora se encontre ainda no estado de embrião, para escolher, em seu nome, a morte de preferência à vida. Ela própria, na sua idade amadurecida, jamais virá a ter o direito de optar pelo suicídio; e enquanto não está ainda na idade de decidir por si própria menos ainda os seus próprios pais podem escolher para ela a morte. A vida é um bem demasiado fundamental, para poder ser posto assim em confronto com inconvenientes mesmo muito graves [21].

15. O movimento de emancipação da mulher, na medida em que visa essencialmente libertá-la de tudo aquilo que represente discriminação injusta, está perfeitamente fundamentado [22].

Há, de facto, nas diversas formas de cultura, muito que fazer neste ponto; mas, não se pode mudar a natureza, nem subtrair a mulher, o mesmo sucedendo com o homem, aquilo que a natureza deles exige. Aliás, toda e qualquer liberdade, publicamente reconhecida, tem sempre como limites os direitos certos de outrem.

16. E importa dizer a mesma coisa no respeitante à reivindicação da liberdade sexual.

Se sob tal expressão se entendesse o domínio progressivamente alcançado, da razão e do amor verdadeiro, sobre o impulso dos instintos, sem depreciação do prazer, mas tendo-o na devida conta — e semelhante domínio, neste campo, é a única liberdade autêntica — não haveria nada a objectar, até porque uma tal liberdade assim acautelar-se-ia sempre, para não lesar a justiça. Se em contraposição, porém, com tal designação se entender que o homem e a mulher são « livres » para procurarem o prazer sexual até à saciedade, sem terem em consideração lei alguma, nem a ordenação essencial da vida sexual para os seus frutos de fecundidade, [23] então uma tal ideia nada tem de cristão; ela é mesmo indigna do homem. Em qualquer hipótese, ela não fundamenta direito algum a dispor da vida de outrem, ainda que ela se encontre embrionária, ou a suprimi-la sob o pretexto de ela ser incómoda.

17. Os progressos da ciência abrem e continuarão a abrir cada vez mais à técnica, possibilidades de intervenções muito acuradas, cujas consequências, tanto no sentido do bem como no do mal, podem vir a ser muito graves.

Estamos perante conquistas do espírito humano, admiráveis em si mesmas, efectivamente; mas a técnica jamais poderá subtrair-se ao julgamento da moral, porque ela existe em função do homem e deve respeitar as suas finalidades. Da mesma forma que não se pode utilizar a energia nuclear para um fim qualquer, indiscriminadamente, assim também não se está autorizado a manipular a vida humana num sentido qualquer, não importa qual; o progresso da ciência deve estar ao serviço do homem para assegurar um melhor desabrochar das suas capacidades normais, para prevenir ou para curar doenças e, enfim, contribuir para o seu desenvolvimento pleno, o melhor possível. É verdade que a evolução das técnicas torna cada vez mais fácil o aborto precoce, mas a avaliação moral do mesmo não se modifica.

18. Sabe-se depois, qual a gravidade de que pode revestir-se para certas famílias e para alguns países o problema da regulação da natalidade.

Foi por isso mesmo que o último Concílio e, depois, a Encíclica Humanae vitae, de 25 de Julho de 1968, falaram de «paternidade responsável» [24]. O que se deve reafirmar com vigor, em continuidade com o que foi recordado pela Constituição pastoral do Concílio Gaudium et Spes, pela Encíclica Populorum Progressio e por outros documentos pontifícios, é que nunca, sob que pretexto for, o aborto pode ser utilizado, nem por uma família, nem pela autoridade pública, como um meio legítimo para a regulação da natalidade [25]. O lesar os valores morais é sempre, para o bem comum, um mal maior do que quaisquer inconvenientes de ordem económica ou demográfica.

 V. A MORAL E O DIREITO

19. A discussão moral é acompanhada, um pouco em toda a parte, de graves debates jurídicos. Não há país algum cuja legislação não proíba e não castigue o homicídio. Muitos, para além disso, determinaram esta proibição e estas penas no caso especial do aborto provocado. Nos nossos dias, um vasto movimento de opinião demanda uma liberalização desta última interdição. Existe já uma tendência bastante generalizada que intenta conseguir que se restrinja o mais possível toda a legislação repressiva, sobretudo quando ela parece penetrar no domínio da vida privada. Retoma-se aqui, além disto, também a argumentação do pluralismo: se numerosos cidadãos, em particular os fiéis da Igreja católica, condenam o aborto, há muitos outros que o retêm lícito, ao menos como mal menor; porquê, então, impor-lhes que sigam uma opinião que não é a sua, sobretudo naqueles países onde constituam a maioria? Por outro lado, onde ainda existem, as leis que condenam o aborto demonstram-se de difícil aplicação: o delito tornou-se demasiado frequente, para que se possa castigar sempre com rigor, e os poderes públicos acham mais prudente fechar os olhos.
No entanto, conservar uma lei que não se aplica, não se fará nunca, sem que isso prejudique a autoridade de todas as outras leis. E é necessário acrescentar que o aborto clandestino expõe as mulheres que ao mesmo recorrem aos maiores perigos, não apenas para a sua fecundidade futura, mas também muitas vezes para a sua própria vida. Mesmo que o legislador continue a considerar o aborto como um mal, não poderá ele propor-se restringir ao mínimo os seus prejuízos?

20. Estas razões e mais outras, ainda, que se aduzem de diversas partes, não são válidas para a legalização do aborto. É verdade que a lei civil não pode pretender abarcar todo o domínio da moral ou punir todas as faltas: ninguém lhe exige isso. Ela tem muitas vezes de tolerar aquilo que, em última análise, é o mal menor, para assim evitar um outro maior. É no entanto necessário ter em conta o que pode significar uma mudança de legislação. Muitos tomarão como uma autorização aquilo que não é mais, talvez, do que uma renúncia a castigar.
Mais: no caso presente, esta renúncia parece mesmo incluir, pelo menos, que o legislador não considera já o aborto como um crime contra a vida humana, uma vez que, na sua legislação, o homicídio continua sempre a ser gravemente punido. É verdade que a lei não tem que resolver entre opiniões discordantes ou que impor uma em vez de outra. No entanto a vida da criança prevalece sobre toda e qualquer opinião: não se pode apelar pela liberdade de pensamento para a tirar.

21. A função da lei não é a de registar o que se faz; mas sim, a de ajudar a fazer melhor. É função do Estado, em qualquer hipótese; salvaguardar os direitos de cada um e proteger os mais fracos. Ser-lhe-á necessário, para tanto, corrigir muitos erros. A lei não está obrigada a sancionar tudo, mas ela não pode ir contra uma outra lei mais profunda e mais augusta do que toda a lei humana, a lei natural inscrita no homem pelo Criador, como uma norma que a razão discerne e se esforça por formular, que é necessário fazer mesmo esforço para compreender cada vez melhor, mas que é sempre mal contradizer. A lei humana pode renunciar a punir, mas não pode declarar honesto aquilo que porventura fosse contrário ao direito natural, porque uma tal oposição basta para fazer com que uma lei deixe de ser lei.

22. Deve ficar bem claro, em todo o caso, que seja lá o que for que as leis civis venham a estabelecer a este respeito, o homem não pode nunca submeter-se a uma lei intrinsecamente imoral; e esse é o caso precisamente daquela que admitisse em princípio a liceidade do aborto. Ele não pode participar numa campanha de opinião em favor da uma lei de tal género, nem dar-lhe a própria adesão. Ele não poderá, menos ainda, colaborar na sua aplicação. É inadmissível, por exemplo, que médicos ou enfermeiros se venham a encontrar em situações de se verem obrigados a cooperar, de maneira próxima, em abortos e de ter que escolher entre a lei de Deus e a sua situação profissional.

23. O que compete à lei, pelo contrário, é procurar levar por diante uma reforma da sociedade e das condições de vida em todos os ambientes, a começar pelos mais desfavorecidos, a fim de que se torne possível sempre e em toda a parte um acolhimento, digno do homem, a toda criança que vem a este mundo. Ajuda às famílias e às mães solteiras abonos garantidos aos filhos naturais e regulamentação conveniente da adopção: tem de ser promovida toda uma política positiva a fim de que possa haver sempre para o aborto uma alternativa concretamente possível e honrosa.

IV. CONCLUSÃO

24. Seguir a própria consciência, na obediência à lei de Deus, nem sempre é um caminho fácil; isso pode comportar sacrifícios e fardos dos quais importa não desconhecer o peso. É preciso, por vezes, heroísmo a fim de permanecer fiel às suas exigências. No entanto, deve ser proclamado claramente, ao mesmo tempo, que a via do verdadeiro desenvolvimento pleno da pessoa humana passa por esta fidelidade constante a uma consciência mantida na rectidão e na verdade; ademais, hão-de exortar-se todos aqueles que dispõem de meios para isso, a procurarem aliviar os fardos que esmagam ainda tantos e tantos homens e mulheres, tantas e tantas famílias e crianças, postas perante situações humanamente sem saída.

25. A avaliação de um cristão não pode restringir-se aos horizontes da vida aqui neste mundo; ele sabe que na vida presente se prepara uma outra, cuja importância é tal, que é segundo ela que importa julgar [26]. Sob este ponto de vista não existe aqui sobre a terra uma infelicidade que seja absoluta, nem mesmo a dor atroz de ter de criar um filho defeituoso. Tal é a mudança radical de valores anunciada pelo Senhor: «Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!» (Mt. 5, 5). Medir a felicidade pela ausência de sofrimentos e de misérias neste mundo é voltar as costas ao Evangelho.

26. Mas isso não quer dizer que se possa ficar indiferente a esses sofrimentos e a essas misérias. Todo o homem de coração e certamente todos os cristãos devem estar prontos para fazer o possível ao seu alcance para lhes dar remédio. É a lei da caridade, cujo primeiro cuidado deve ser sempre o de instaurar a justiça. Jamais se pode aprovar o aborto, mas é preciso algo mais: procurar sobretudo combater as causas do mesmo. Ora isso comporta uma acção política que constituirá em particular o campo da lei. Mas é preciso, ao mesmo tempo, agir no plano dos costumes, concorrer para tudo aquilo que pode ajudar as famílias, as mães, as crianças. Foram realizados progressos consideráveis pela medicina ao serviço da vida; é de esperar que eles irão ainda mais por diante, de acordo com a vocação do médico, que não é a de suprimir a vida, mas de a conservar e de a favorecer o melhor possível. É igualmente para desejar que se desenvolvam, mediante instituições adequadas para isso, ou na falta destas, pelo impulso da generosidade e da caridade cristã, todas as formas de assistência.

27. Não se actuará eficazmente no plano dos costumes, se não se lutar igualmente no plano das ideias. Não se pode nunca deixar expandir, sem a contradizer, uma maneira de ver, e, mais ainda, de sentir, que considere a fecundidade como uma desgraça. É verdade que nem todas as formas de civilização são igualmente favoráveis às famílias numerosas; estas encontram obstáculos de longe muito maiores numa civilização de tipo industrial e urbano. Assim, a Igreja, nestes últimos tempos, tem insistido na ideia de paternidade responsável, exercício de uma verdadeira prudência, humana e cristã. Esta prudência não seria nunca autêntica se não incluísse a generosidade; ela deve manter-se consciente da grandeza de uma tarefa que é cooperação com a Criador para a transmissão da vida, que dá à comunidade humana novos membros e à Igreja novos filhos. A Igreja de Cristo tem o cuidado fundamental de proteger e favorecer a vida. Ela pensa, obviamente, antes de mais, naquela vida que Cristo veio trazer à terra: «Eu vim para que os homens tenham a vida e a tenham em abundância» (Jo. 10, 10). Mas a vida provém de Deus, a todos os níveis em que ela se manifesta; e a vida corporal é para o homem o começo indispensável. Nesta vida sobre a terra, o pecado introduziu, multiplicou e tornou mais pesados o sofrimento e a morte; no entanto, Jesus Cristo, tomando sobre si o fardo dos mesmos, transformou-os: para quem acredita n'Ele, o sofrimento e a mesma morte tornam-se instrumentos de ressurreição. Por isso, São Paulo pôde dizer: «Eu estimo, efectivamente, que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção alguma com a glória que há-de revelar-se em nós» (Rom. 8, 18); e fazendo uma comparação, pode-se acrescentar ainda com o mesmo Apóstolo: «Realmente, o leve peso da nossa tribulação do momento presente, prepara-nos além de toda e qualquer medida, um peso eterno de glória!» (2 Cor. 4, 17).

O Sumo Pontífice Paulo VI, na Audiência concedida ao infra-escrito Secretário da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, no dia 28 de Junho de 1974, ratificou, confirmou e mandou publicar a presente Declaração sobre o aborto provocado.

Dado em Roma, da Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, a 18 de Novembro, na solenidade da Dedicação das Basílicas dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, no ano do Senhor de 1974.

Francisco Cardeal Seper
Prefeito

Jerónimo Hamer
Arcebispo titular de Lorium
Secretário

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Notas:
[21] O Cardeal Jean Villot, Secretário de Estado, escrevia a 10 de Outubro de 1973, ao Cardeal Döpfner, Arcebispo de Munique, a propósito da protecção da vida humana: « A Igreja não pode reconhecer como moralmente lícitos, para superar uma situação difícil (de necessidade) nem os meios anticoncepcionais, nem, menos ainda, o aborto» (em L'Osservatore Romano, ed. semanal em alemão, de 26 de Outubro de 1973, p. 3).
[22] Encíclica Pacem in terris: A.A.S. 55 (1963), p. 267; Const. Gaudium et spes, n. 29: A.A.S. 58 (1966), pp. 1048-49; e PAULO VI, aloc. Salutiamo... citada na nota 8: A.A.S. 64 . (1972), p. 779.
[23] Const. Gaudium et spes, n. 48: « Por sua natureza, a própria instituição matrimonial e o amor conjugal ordenam-se para a procriação e educação da prole, que constitue como que o seu coroamento ». De modo semelhante no n. 50: « O matrimónio e amor conjugal destinam-se por sua natureza à procriação e educação da prole» (A.A.S. 58 (1966), pp. 1068 e 1070).
[24] Const. Gaudium et spes, nn. 50 e 51 (A.A.S. 58 [1966], pp. 1070-73); e PAULO VI, Encíclica Humanae vitae, n. 10: A.A.S. 60 (1968), p. 487. A «paternidade responsável» supõe o uso apenas dos meios lícitos para a regulação da natalidade. Cfr. a mesma Enc. Humanae vitae, n. 14: ibid., p. 490.
[25] Const. Gaudium et spes, n. 87 (A.A.S. 58 [1966], pp. 1110-11); e PAULO VI, Encíclica Populorum progressio, n. 31; e Discurso na sede das Nações Unidas: A.A.S. 57 (1965), p. 883; João XXIII, Encíclica Mater et Magistra: A.A.S. 53 (1961), pp. 445-448.
[26] O Cardeal Jean Villot, Secretário de Estado, escrevia ao Congresso dos Médicos Católicos que se encerrou a 26 de Maio de 1974, em Barcelona: « Pelo que se refere à vida humana, esta não é algo unívoco; melhor se poderia dizer que é um feixe de vidas. Não se podem reduzir, sem as mutilar gravemente, as zonas do seu ser, que, na sua íntima interdependência e interacção, estão ordenadas umas para as outras: zona corporal, zona afectiva, zona mental e esse âmago da alma onde a vida divina, recebida pela graça, pode desabrochar, mediante os dons do Espírito Santo» (em L'Osservatore Romano, de 29 de Maio de 1974).