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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XII
CAPÍTULO VI
Causa da beatitude dos anjos bons e desgraça dos maus.
Do exposto se conclui que a verdadeira causa da beatitude dos anjos bons está
no facto de estarem unidos ao que é no mais elevado grau. Quando, pelo
contrário, perguntamos qual a causa da desgraça dos anjos maus, ela apresenta-se-nos
precisamente no facto de se terem desviado d’Aquele que no mais elevado grau é, para se voltarem para si
próprios que não possuem o ser em grau supremo. E que outro nome tem este vício
senão o de soberba. Na verdade,
a soberba é a origem de todo o pecado.[i]
Não quiseram reservar para Deus a sua fortaleza. Se se mantivessem unidos ao
que soberanamente é, «seriam»
mais; preferindo-se a Ele, escolheram o que menos é. Foi esta a primeira deficiência, a primeira
indigência, o primeiro vício desta natureza criada, não para ser em grau supremo,
mas para encontrar a sua beatitude no gozo do Ser Supremo. Desviou-se d’Ele;
por conseguinte, sem perder todo o seu ser, viu-o diminuído — e foi este o
princípio da sua desgraça.
Se se procurar a causa eficiente desta vontade má —nada se encontrará. Que é
então que torna a vontade má quando ela própria toma o acto mau? E a vontade má
que produz o acto mau; mas nada produz a vontade má. Porque se alguma causa
existe, terá ela ou não terá um a vontade. Se a tem, não há dúvida de que essa
vontade tem que ser boa ou má. — Se é boa, quem teria a loucura de dizer que um
a vontade boa produz uma má? Se assim fosse, um a vontade boa teria sido a
causa do pecado — e ninguém poderá conceber nada de mais absurdo. Se, porém,
aquilo que se julga que faz a má vontade tem, ele
próprio também , uma vontade má, — eu pergunto quem então o teria feito; e,
para pôr termo à discussão, pergunto qual é a causa da primeira vontade má. E
que esta primeira vontade não é efeito duma vontade má pois que, sendo a
primeira, nenhum a outra a fez. Se um a outra a tivesse precedido para a fazer,
ela seria a primeira, que teria feito a outra.
Se se responder que nada a fez e que, portanto, sempre existiu — então pergunto
se sempre existiu em alguma natureza. É que se nenhum a existiu, então jamais
existiu. Mas se em alguma existiu, — então ela viciava-a, corrompi-a, era-lhe
prejudicial e, consequentemente, privava-a do bem. Assim, a natureza onde
estava a vontade má não podia ser má —. era boa, embora mutável, e o vício
poderia ser-lhe prejudicial. Se, de facto, não chegou a ser prejudicial, não
era um vício e, portanto, não se pode dizer que tivesse um a vontade má. Mas se
chegou a ser prejudicial, foi, de certeza, tirando ou diminuindo um bem. A
vontade má não pôde, portanto, existir sempre em algo onde antes havia um bem
natural que a vontade má poderia destruir pela sua nocividade. Mas se não era eterna,
então eu pergunto quem a produziu.
Só resta um a resposta: a causa da vontade má foi um ser que em si nenhum a
vontade tinha. Nesse caso eu pergunto — se se trata de um ser superior,
inferior ou igual. Se é superior — não há dúvida de que é melhor. Como é então
ele sem vontade, ou melhor, sem vontade boa? Da mesma forma, se é igual: porque
se dois seres têm um a vontade, igualmente boa, um não produz no outro uma
vontade má. Só resta uma conclusão: um ser inferior, totalmente privado de
vontade, é que terá produzido na natureza angélica, a primeira que pecou, uma vontade
má. Mas, seja qual for esse ser, mesmo que seja mais baixo que a mais baixa das
terras, porque é uma natureza e uma essência, é incontestavelmente bom, possui medida
e beleza no seu género e na sua ordem. Como é então que um ser bom produz um a
vontade má? Como é, digo eu, que um bem é causa de um mal? Porque, quando a
vontade abandona o superior e se volta para o inferior, torna-se má — e não
porque o objecto para o qual se volta seja um mal: o facto de se voltar para
ele é que constitui uma perversão. Não é, portanto, o objecto inferior que torna
a vontade má, mas é a própria vontade que se torna má ao desejar esse objecto
inferior de forma desordenada e depravada.
Suponhamos dois homens com as mesmas disposições do corpo e da alma. Ao
contemplarem a beleza de um corpo, um é movido a gozá-lo ilicitamente e o outro
permanece estável numa vontade casta. A que causa atribuir que num a vontade se
torne m á e no outro não? Qual a causa desta vontade má que num se produziu? Não é a mencionada beleza do corpo
pois não produziu a vontade má em ambos, apesar de igualmente exposta aos
olhares de ambos. Será que é a carne do que repara que está em causa? E porque
não a do outro? Será o espírito? E porque não o de ambos? E que supusemos em
ambos as mesmas disposições de corpo e de alma. Deverem os nós dizer que o
primeiro foi tentado por uma sugestão secreta do mau espirito, com o se o consentimento
a esta sugestão e a toda outra insinuação não viesse da própria vontade? Quem seja
o autor deste consentimento, desta vontade má que cede ao mau conselheiro — é
precisam ente o que procuramos encontrar. A mesma tentação a ambos solicita: um
cede e consente; o outro permanece fiel a si mesmo. Que concluir senão que um
não quis e o outro quis renunciar à castidade? E donde provém este querer da
própria vontade pois ambos tinham as mesmas disposições de corpo e de alma? A
mesma beleza surgiu igualmente aos seus olhos; a mesma tentação secreta os
solicitou igualmente. Se se quiser saber o que é que produziu num deles uma vontade
própria má — se pensarmos nisso a sério, nada nos ocorre. Se dissermos, então,
que foi ele próprio quem a produziu — que era ele, então, antes desta vontade
má senão um a natureza boa de que Deus, bem imutável, é o autor? Assim — um
consente e o outro resiste às sugestões do tentador para abusar de um belo
corpo que, em iguais circunstâncias, a ambos se apresentou quando, antes da visão
tentadora, ambos estavam em idênticas disposições de corpo e de alma: dir-se-á
que o primeiro, que antes era bom, fez para si próprio um a vontade má.
Investigue-se porque a fez ele: por ser um a natureza ou por ser uma natureza feita do nada?
A resposta que encontrará será esta: a má vontade não surgiu da natureza como
tal, mas do facto de a natureza ter sido feita do nada. Com efeito, se a
natureza é causa da vontade má — a que outra conclusão somos obrigados a chegar
senão que do bem sai o mal, que o bem é causa do m al, pois uma natureza boa se
transforma em uma vontade má? Qual será, então, a causa de um a natureza boa,
embora mutável, fazer antes de ter má vontade, algo de mau, isto é, essa mesma
vontade má?
CAPÍTULO VII
Não se deve procurar uma causa eficiente da vontade má.
Ninguém procure, pois, a causa eficiente da vontade má, porque essa causa não é
eficiente, mas sim deficiente. A vontade má não é uma eficiência mas uma
deficiência. De facto, separar-se d ’Aquele que é no mais alto grau para se
voltar para o que tem menos ser é começar a ter uma vontade má. Querer,
portanto, descobrir uma causa desta defecção quando ela é, como disse, não
eficiente, mas deficiente, é com o se se quisesse ver as trevas e ouvir o silêncio.
São duas coisas que conhecemos, mas nem uma pelos olhos nem a outra pelos
ouvidos — não na substância, mas na privação da substância. Ninguém, portanto, procure
saber de mim o que sei que não sei, salvo talvez o aprender a ignorar o que é
preciso saber que não se pode saber. Efectivamente, o que se conhece, não pela
sua substância, mas pela sua privação, de certo modo conhece-se, ignorando-o —
se assim podemos falar e compreender — e ignora-se, conhecendo-o. Quando o
golpe de vista do olho corporal recai sobre as figuras corporais, em parte nenhuma
vê as trevas a não ser quando já começa a não ver. Também não pertence a outro
sentido que não seja o do ouvido captar o silêncio, mas só o capta quando já
não ouve. O mesmo acontece no que respeita às formas inteligíveis: o nosso
espírito capta-as compreendendo-as, mas, no que lhes falta, conhece-as ignorando-as.
Efectivamente,
quem compreende o pecado? [ii]
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)