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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO XXVIII
Que convicções cegaram Porfirio ao ponto de não reconhecer a verdadeira
sabedoria que é Cristo.
Atiras os homens para o mais certo dos erros e não te envergonhas de tamanho
mal, tu que te proclamas amante da virtude e da sabedoria. Se as tivesses amado
de verdade e com fidelidade, terias conhecido Cristo, força de Deus e sapiência
de Deus, e não terias recuado, entumecido pelo inchaço duma vã ciência, perante
a sua humildade salutar. Confessas, todavia, que até a alma espiritual pode,
sem as artimanhas teúrgicas e suas teletas, vãos objectos dos teus
laboriosos estudos, ser purificada pela virtude da continência. Dizes até, por
vezes, que as teletas não elevam a alma após a morte, de maneira que,
mesmo para a alma a que chamas «espiritual», parece que elas não têm qualquer
utilidade depois do fim desta vida. Contudo, revolves estas coisas de muitas
formas e repete-las para mais nada, julgo eu, que não seja o de pareceres
conhecedor destas matérias, de agradares às pessoas curiosas destas artimanhas
ilícitas ou de tu mesmo lhes inspirares esta curiosidade. Mas fizeste bem em declarar que estas artimanhas são de recear
devido à ameaça das leis ou aos perigos da sua própria prática. Oxalá que, pelo
menos, te ouçam estes seus desgraçados partidários, que se afastem a teurgia
para não serem por ela absorvidos, que evitem todo aproximar-se dela. Dizes, é
verdade, que a ignorância e os numerosos vícios que dela derivam não são
purificados por (per) qualquer teleta, mas apenas pelo (per),
isto é, pela «mente ou inteligência paterna» que tem consciência da
vontade do Pai. Mas não acreditas que ela é o Cristo que tu desprezas por ter
um corpo recebido de uma mulher e por causa do opróbrio da cruz. Desprezas e
repeles as coisas ínfimas porque te julgas capaz de captar, desde o cume, a
mais alta sabedoria. Ele, Cristo, cumpre o que, com verdade, predisseram os
santos profetas:
Perderei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência
dos prudentes.[i]
Não perde nem reprova neles a sua, a que Ele lhes deu, mas aquela que se
arrogam os que não têm a d’Ele. Por isso, depois de ter rememorado o testemunho
profético, o Apóstolo diz:
Onde está o sábio? Onde está o letrado? Onde está o investigador
deste mundo? Da sabedoria deste mundo não fez Deus loucura? Já que o mundo, pela sua sabedoria, não conheceu Deus na Sabedoria
de Deus, a Deus aprouve salvar os crentes pela loucura que pregamos. Os Judeus
reclamam milagres e os Gregos procuram a sabedoria. Nós, porém, pregamos Cristo
crucificado, escândalo para os Judeus, loucura para os Gentios, mas para os eleitos
—Judeus e Gregos — poder e sabedoria de Deus. Porque a loucura de
Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus ê mais forte do que os
homens.[ii]
Esta é a loucura e a fraqueza que os sábios e os fortes desprezam, apoiados no
que julgam a sua virtude. Mas é a graça que cura os fracos que se não pavoneiam
orgulhosamente da sua falsa beatitude, mas antes humildemente confessam a sua
autêntica miséria.
CAPÍTULO XXIX
A impiedade dos platónicos envergonha-se de confessar a encarnação de N osso
Senhor Jesus Cristo.
Proclamas o Pai e seu Filho, a quem chamas «Intelecto ou Mente Paterna», assim
como o que está no meio dos dois que, julgam os nós, será, na tua maneira de
dizer, o Espírito Santo, e a quem, segundo os vossos hábitos, chamas três
deuses. Nisso, embora usando de termos imprecisos, sabeis de algum modo e com o que através das sombras duma frágil
imaginação, qual o alvo que se deve atingir. Mas a encarnação do Filho imutável
de Deus — pela qual nos salvamos e a qual nos permite chegarmos ao que cremos,
ou, por pouco que seja, compreendemos — não quereis vós reconhecer. Assim,
pois, vedes, em bora de longe e com a vista obnubilada, a pátria onde devemos permanecer;
mas não sois senhores do caminho por onde se deve seguir.
Contudo, confessas a graça, pois dizes que só a poucos foi concedido chegar a
Deus pelo poder da inteligência. Realmente, não dizes: «aprouve a poucos» ou
«poucos quiseram», mas, dizendo «foi concedido», não há dúvida de que confessas
a graça de Deus e não a ciência do homem. Falas ainda da graça em termos mais
claros quando, segundo a opinião de Platão, não duvidas de que é impossível ao
homem chegar à sabedoria perfeita, mas o que falta aos que vivem segundo a
inteligência, pode pela providência e pela graça de Deus completar-se depois
desta vida.
Oh! Se tivesses conhecido a graça de Deus por Jesus Cristo Nosso
Senhor, se tivesses podido ver na encarnação, em que Ele tom ou uma alma e um
corpo de homem, a mais bela das graças! Mas que hei-de fazer? Sei que é em vão
que falo a um morto, pelo menos no que a ti se refere. Mas talvez não seja em
vão que me dirijo, mais do que a ti, aos que te admiram e te amam devido a
certo apego à sabedoria ou à curiosidade pelas artes que não devias ter
estudado. A graça de Deus não podia ser mais graciosamente realçada do que no
Filho único de Deus que, mantendo-se em Si imutável, se revestiu do homem e deu
aos homens pela mediação do homem, o espírito do seu amor, para que, por este
amor, possam os homens chegar a Ele, tão afastado dos mortais pela sua imortalidade,
pela sua imutabilidade dos que mudam, pela sua justiça dos ímpios e pela sua
beatitude dos infelizes. E porque na nossa própria natureza infundiu o desejo
de felicidade e de imortalidade, permanecendo bem-aventurado ao assumir o homem
mortal para nos conferir o que amamos, ensinou-nos pelos seus sofrimentos a
desprezar o que receamos.
Mas, para poderdes aceitar esta verdade, tendes necessidade de humildade,
virtude bem difícil de vencer cabeças como as vossas. Realmente, que é que há
de incrível — sobretudo para vós, cuja doutrina vos convida a voltar-vos para
esta crença — que é que há de incrível — sobretudo para vós, repito, em ouvir-nos
afirmar que Deus assumiu a alma e um corpo de homem? Certamente formais da alma
intelectual, que é sem dúvida humana, uma tão elevada ideia que ela pode, na
vossa opinião, tornar-se consubstanciai àquela Inteligência Paterna em que
reconheceis o Filho de Deus. Que há, pois, de incrível se uma destas almas
intelectuais, duma forma inefável e excepcional foi assumida para a salvação de
muitos. O corpo está unido à alma para constituir o homem total e completo;
sabemo-lo pelo testemunho da nossa natureza, se isto não fosse um facto tanto
da experiência corrente, seria com certeza um facto bastante difícil de crer;
realmente, é mais fácil crer na união do humano com o divino, do mutável com o
imutável, e até de um espírito ou, segundo a vossa maneira de falar, do
incorpóreo com o incorpóreo, do que na união de um corpo com um incorpóreo.
Será que o extraordinário parto de um filho por uma virgem nos repugna? Mas
isso não vos deve espantar; pelo contrário: o facto de um ser admirável vir ao
mundo duma maneira admirável deveria levar-vos a experimentar um sentimento de
piedade. Será que vos recusais a acreditar que este corpo, abandonado com a morte, passado pela ressurreição a
um estado melhor, doravante incorruptível e imortal, Ele o tenha arrebatado para
as alturas? Tendes, sem dúvida, os olhos postos em Porfírio, nos seus livros
acerca do Regresso da alma (De regressu anime), de que já citei muitas
passagens, onde ele repete tantas vezes: «Deve-se fugir de todo o corpo para
que a alma possa manter-se bem-aventurada com Deus». Mas a sua opinião é que
ele devia corrigir, sobretudo porque partilhais com ele tantas ideias incríveis
acerca da alma deste mundo visível, desta imensa massa corporal. Encostados à
autoridade de Platão, chegais mesmo a dizer que o mundo é um ser animado, um
ser vivo, todo felicidade, e até, acrescentais vós, eterno. Como é, então, que
a alma nunca se separará do corpo e nunca deixará de ser feliz, se, para ser
feliz, precisa de evitar todo o corpo? E o Sol e os outros astros, também
reconheceis nos vossos livros que eles são corpos e toda a gente o constata e
concorda convosco sem hesitar. Todavia, acrescentais em nome de uma ciência
mais profunda, parece-vos, que eles são seres vivos felicíssimos e, com esses
corpos, eternos. Mas, então, porque e que, quando vos é exposta a fé cristã,
esqueceis ou fingis ignorar o que costumais sustentar e ensinar? Porque é que,
em nome dessas vossas opiniões que vós próprios desmentis, não quereis ser
cristãos, senão porque Cristo apareceu humildemente e vós sois orgulhosos?
Quais serão as qualidades dos corpos dos santos na ressurreição — os mais
doutos nas Escrituras cristãs podem discuti-lo com grande precisão. Não temos a
menor dúvida de que ele será imortal e de que Cristo mostrou dele o modelo na
ressurreição. Mas quaisquer que sejam as qualidades que tenham os corpos ressuscitados, se por um lado se diz que são
absolutamente incorruptíveis e imortais e que não criarão qualquer obstáculo à
contemplação que fixa a alma a Deus, e, por outro lado, afirmais que há corpos
imortais entre os imortalmente felizes — porque é então que julgais que, para
sermos felizes, devemos fugir de todo o corpo, acreditando encontrar nisto uma
boa razão de fugir à fé cristã? Porque será senão, volto a dizê-lo, porque
Cristo é humilde e vós sois orgulhosos? Será que tendes vergonha de que vos
corrijam? E esse, precisamente, o vício dos orgulhosos. Causa de facto vergonha
aos sábios abandonarem a escola de Platão e fazerem-se discípulos de Cristo
que, pelo seu Espírito, ensinou um pescador a dizer com sabedoria:
No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era
Deus. No princípio estava em Deus. Tudo foi feito por Ele e nada do que foi
feito, foi feito sem Ele. N’Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens; e
a luz brilhou nas trevas e as trevas não o compreenderam.[iii]
É este o princípio do Santo Evangelho que nós chamamos «segundo João». Conforme
ouvimos muitas vezes contar ao santo velho Simpliciano (que posteriormente,
como bispo, presidiu à Igreja de Milão) houve um platónico que dizia dever este
princípio ser escrito em letras de ouro e colocado em todas as igrejas no lugar
mais destacado.
Mas, entre os orgulhosos, Deus, o Doutor por excelência, perdeu todo o crédito
desde que
o Verbo o fez came e habitou entre nós.[iv]
para estes infelizes é pouco estarem doentes; é preciso ainda que eles se
vangloriem da sua doença e se envergonhem dos remédios que os poderiam curar.
Não procedem assim para se elevarem, mas para que, caindo, agravem mais o seu
mal.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)