Tempo comum XII Semana
Evangelho: Mt 7, 15-20
15
«Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós vestidos de ovelhas, mas por
dentro são lobos ferozes. 16 Pelos seus frutos os conhecereis.
Porventura se colhem uvas dos espinhos, ou figos dos abrolhos? 17
Assim toda a árvore boa dá bons frutos, e toda a árvore má dá maus frutos. 18
Não pode uma árvore boa dar maus frutos, nem uma árvore má dar bons frutos. 19
Toda a árvore que não dá bons frutos será cortada e lançada ao fogo. 20
Vós os conhecereis, pois, pelos seus frutos.
Comentário:
Vê-se bem a preocupação de
Jesus Cristo com muitos dos Seus irmãos homens que se hão-de perder por
caminhos de engano e erro. Sabe que o Seu Nome será usado por autênticos lobos
vorazes para atrair outros mais fracos ou incautos. Gente sem escrúpulos que ‘ganha
a vida’ a explorar a debilidade alheia.
É a estes Seus pobres
irmãos que o Senhor dirige o Seu aviso: acautelai-vos, sede prudentes, antes de
comer do fruto, por mais apetitoso que pareça ser, vede bem de que árvore foi
colhido.
(ama, comentário sobre Mt 7, 15-20, 2013.06.26)
Temas
A PAZ NA FAMÍLIA
…/6
CONSTRUIR
A PAZ FAMILIAR
UM
COMBATE PELA PAZ
Na introdução a estas
páginas, transcrevíamos umas palavras de São Paulo que põem à mostra – dizíamos
ali – as cordas da paz. Vamos agora rever e meditar com calma esse texto, que
nos pode ajudar a encontrar os caminhos da paz (cf. Lc 1, 79) pelos quais Deus quer
que andemos.
Como eleitos de Deus,
santos e amados, revesti-vos de entranhada misericórdia, de bondade, humildade,
mansidão, paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se
um tiver contra outro motivo de queixa. Como o Senhor vos perdoou, assim
perdoai também vós. Mas, acima de tudo, revesti-vos do amor, que é o vínculo da
perfeição. Triunfe em vossos corações a paz de Cristo, para a qual fostes
chamados a formar um único corpo. E sede agradecidos (Col 3, 12-15).
Relendo essas linhas,
facilmente podemos observar nelas quatro ideias claras:
Primeira:
São Paulo quer mostrar o
caminho para que a paz “triunfe nos corações”.
Reparemos que ele não diz:
para que a paz “surja”, “permaneça” ou se “assente” em vossos corações, mas
para que “triunfe em vossos corações”. E é que a paz da alma – que transborda
em paz para os outros – é sempre “consequência da guerra”; é uma conquista, resultante
– como dizia Mons. Escrivá – de uma luta íntima “contra tudo o que na vida não for
de Deus: contra a soberba, a sensualidade, o egoísmo, a superficialidade, a
estreiteza de coração” 10.
Segunda ideia:
Essa luta trava-se
praticando virtudes concretas, não bastando sentimentos e boas vontades: é
preciso exercitar a misericórdia, a bondade, a doçura, a mansidão, a paciência,
o perdão.
Terceira ideia:
Essas virtudes constituem
uma força eficaz, apta para produzir a paz, só quando estão bem amarradas, como
um feixe, pela caridade (pelo amor à medida do amor de Cristo), formando assim
um conjunto firme e coeso. Este é exatamente o significado da expressão: o amor
é o vínculo da perfeição.
Quarta ideia:
Essa luta pela paz – e
concretamente pela paz na família – é um dever que decorre da nossa vocação.
Por isso São Paulo começa esse parágrafo afirmando que devemos exercitar as
virtudes que levam à paz justamente por sermos eleitos de Deus, santos –
chamados à santidade – e amados.
Após este olhar geral
sobre as palavras de São Paulo, vamos agora ativar o zoom e fazer uma
aproximação das virtudes mencionadas por ele, juntamente com outras que lhes são
conexas.
UMA ENTRANHADA
MISERICÓRDIA
Que quer dizer
misericórdia na família?
Entenderemos bem essa
virtude, se nos lembramos de que a misericórdia do cristão deve imitar a
misericórdia de Deus: Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso (Lc
6, 36).
Deus é misericordioso
porque vê as nossas misérias – por dizê-lo de um modo humano – “com coração”.
A palavra misericórdia
significa, com efeito, “miséria” que toca o “coração”.
Quer isto dizer que Deus
olha para os nossos pecados, os nossos defeitos, as nossas ofensas – que não
pode aprovar –, não com a dureza de um justiceiro, mas com um olhar
compreensivo, compassivo e sempre predisposto ao perdão.
A pessoa misericordiosa
sabe “olhar com coração”. Mas não fica só nisso.
“O verdadeiro significado
da misericórdia – diz João Paulo II – não consiste apenas no olhar, por mais
penetrante e cheio de compaixão que seja, com que se encara o mal moral, físico
ou material. A misericórdia manifesta-se com a sua fisionomia verdadeira e
própria quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal
existentes no mundo e no homem”. A misericórdia – acrescenta – é um amor “que
não se deixa «vencer pelo mal», mas «vence o mal com o bem» (cf. Rom 12, 21)” 11.
Retenhamos bem essas
ideias:
A virtude da misericórdia
começa por “olhar” o outro, por “vê-lo” com um olhar “penetrante” e “cheio de
compaixão”; e completa-se quando, a partir desse olhar compreensivo, nos
esforçamos por tirar um bem do mal que vemos nos outros.
Duas atitudes que, por si
sós, já seriam um excelente programa para a paz da família.
Mas bem poucos as
conseguem viver na prática.
A IMAGEM IDEAL E A IMAGEM
REAL
Muitos, sem nem darem por
isso, fazem dos outros e, concretamente das pessoas da família, como um espelho
de si mesmos.
Encaram a mulher, o
marido, os filhos, como espelhos em que gostariam de ver-se refletidos: sempre
lhes agradaria contemplar neles os seus gostos, os seus desejos, os seus
sonhos. Os outros só são estimados como projeção de si mesmos.
É preciso virar cento e
oitenta graus esse espelho, é preciso abrir o coração e fazer o que, com
expressão feliz, Gustavo Corção chamava “a descoberta do outro”.
“O marido, cheio de razões
– escreve esse autor –, não admite que a mulher fale de certo modo, tenha tal
tique ou qual mania. Que a sua maneira de andar, de partir o pão, de atender o
telefone, seja a sua maneira. O confronto diário, entra ano sai ano, é
insuportável para cada cônjuge [...]. Cada um se procura a si mesmo na face que
lhe fica em frente e, nos dias piores, fica desvairado, atormentado,
enlouquecido, como homem que visse no seu espelho uma imagem absurda, diferente
da sua, a fazer gestos disparatados e femininos”.
Nesse clima de auto-procura,
continua a dizer Corção, as pessoas “são coisas de mim mesmo que circulam fora
de mim para melhor me servir. O eu fica no centro de um universo escuro, em
volta estão os corpos tributários: este traz-me o café, aquele a carícia”.
Para quebrar esse
curto-circuito perverso, é necessário fazer a “descoberta do outro”.
A descoberta de que o
marido, a mulher, os filhos, são o “outro”, que deve ser compreendido e amado
por si mesmo. A caridade cristã leva, então, a ver nos outros membros da
família o próximo, “esse que amaremos como a nós mesmos [...]. Vivemos esbarrando
no próximo, porque não nos ocorre, na espessura da nossa escuridão, que ele tenha
direito à objetividade, que seja o outro” 12.
Sim. Como custa entender
que o cônjuge, ou o filho, ou a filha, ou os pais, sejam “eles”! No entanto,
esse olhar compreensivo é o primeiro passo do entendimento, da paz, do amor.
Na realidade, qual é a
causa mais profunda das desavenças, das brigas, dos maus humores, dos
desentendimentos familiares? É que temos uma “imagem ideal” da pessoa (o que
desejaríamos que a esposa, o filho, o pai fossem...), mas encontramo-nos a cada
passo com a “imagem real”. Essa imagem real – que é a única que existe –
irrita, decepciona.
O choque com a imagem
real, que parece arrebentar os sonhos ideais, azeda e desgasta o dia-a-dia,
fere a harmonia familiar, que – rachada já por tantas incompreensões – pode
ficar estilhaçada.
O primeiro passo do amor
misericordioso consiste em procurar entender os outros, sabendo que são outros.
Para isso, antes de mais nada é necessário respeitá-los.
Um ser humano é um mundo
que deve ser encarado com um respeito imenso.
Deus faz assim connosco,
dá-nos um enorme valor, embora sejamos – como somos – pobres pecadores: para Ele
valemos o preço do sangue de Jesus Cristo.
“Cada criatura humana –
diz um autor espiritual – é um enigma, uma palavra velada.
Todo o trabalho da
caridade paciente consiste em decifrar esses enigmas e em encontrar o seu
sentido” 13.
Entender exige um acto
consciente, um propósito deliberado de compreender.
Como dizia um conhecido
orientador familiar, “os amantes são aqueles que se amam; os esposos são
aqueles que se empenham em amar-se” 14.
Existe esse ato
deliberado, esse empenho, quando alguém diz: “Eu, a partir de hoje, faço o
propósito de esforçar-me seriamente por entender a minha mulher; eu quero
entender o meu filho”.
OS CANAIS DA COMUNICAÇÃO
Se esse propósito for
sincero, quem o fez logo verá que precisa de lutar contra vários defeitos que
lhe dificultam a compreensão.
Em primeiro lugar, terá de
lutar contra o preconceito.
No lar, os preconceitos
podem ser inúmeros. “Já nos conhecemos!” – dizem uns aos outros; e assim, mal o
marido abre a boca, a mulher, sem se dar ao trabalho de escutá-lo, corta:
“Você já vem de novo com a
mesma história, você não muda”; assim que o pai começa a explicar a dificuldade
que tem de aumentar a mesada, logo o filho o interrompe: “Ah, pai, sempre
podando”...
Antes de ouvir, já se tem
o filme do outro, pronto e revelado, como se as pessoas fossem clichês que não
pudessem mudar.
Como é importante o
“empenho” em entender: “Por que ele ou ela é assim?
Como é mesmo por dentro?
Que lhe acontece?
Que teme?
Que desejaria?
O que o faz sofrer?...”
Não se trata de fazer
“análise”.
Deus nos livre do marido
“analista” da mulher ou vice-versa. Mas trata-se, sim, de abrir o coração à
compreensão.
Para isso, é muito necessário
aprender a bela arte de escutar, que nos permite amplificar os canais da comunicação,
do diálogo compreensivo.
Não pratica certamente
essa arte aquele tipo de marido que, chegando a casa com ar cansado, desaba na
poltrona. A mulher está ansiosa por falar-lhe, e ele, abanando a cabeça como
quem faz uma magnânima concessão a um ser inferior, diz-lhe: – “Vai, fala”. Ela
desabafa enquanto ele olha para o infinito, com inexpressividade de peixe. –
“Já acabou?”, pergunta ele e recolhe-se atrás do jornal.
Pelo contrário, pratica a
arte de escutar aquele que deixa falar o outro: escuta-o com atenção até que
termine; evita acusações ou desqualificações; não se serve de expressões do tipo
“já sei, não precisa dizer-me”; toma cuidado com as interpretações erróneas de palavras,
frases, gestos ou atitudes; sabe pedir amavelmente esclarecimentos; está atento
ao assunto da conversa, sem pular abruptamente para outro; evita expressões
cortantes como “Isso não admito”, “Não aguento esse modo de falar”, “Você não
muda”, etc. 15
Só o respeito, sem preconceitos
nem precipitações, pode levar a “entender” o outro.
E, quando a compreensão
vai crescendo, deixa-se de dizer: “Ele deveria ser assim”, e passasse a dizer:
“Ele é assim; portanto, o que é que eu devo fazer?”
Então, como diz o Papa, a
nossa misericórdia “reavalia, promove e tira o bem de todas as formas de mal”
(ou seja, dos defeitos, das limitações, das más disposições dos outros). É uma
verdade comprovada que, quando procuramos compreender uma pessoa, facilmente
descobrimos qual é a nossa atitude – a palavra, o silêncio – que mais a poderia
ajudar, que poderia fazer-lhe maior bem. Nisso consiste a bondade de que fala
São Paulo no texto que estamos a comentar
Quando cada membro da
família se esforça por entender os outros, todos acabam “entendendo-se” cada
vez mais. Assim garantem a paz.
(cont.)
________________________
Notas:
(10)
Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 73;
(11)
Encíclica Dives in misericordia, n. 4;
(12)
Gustavo Corção, A descoberta do outro, Agir, Rio de Janeiro, 1967, págs.
226-228;
(13)
Um Cartuxo, Silêncio com Deus, Aster, Lisboa, 1956, págs. 141- 142;
(14)
Pedro-Juan Viladrich, A família “soberana”, em L'Osservatore Romano,
26.08.1994, pág. 5;
(15)
cfr. a obra do psiquiatra Enrique Rojas, Remedios para el desamor, Ediciones
TH, Madrid, 1990, págs. 228 e segs.;
Sobre a bondade, cfr. Francisco Faus, O homem bom, Quadrante, São Paulo, 1990.