Questão
96: Do poder da lei humana.
Art.
2 — Se à lei humana pertence coibir todos os vícios.
(Supra,
q. 91, a. 4; q. 93, a. 3, ad 3; infra, a. 3, ad 1; q. 98, a. 1; IIª-IIªª, q.
69, a. 2, ad 1; q. 77, a. 1 ad 1; q. 78, a.1, ad 3; D Malo, q. 13, a. 4. ad
6;Quodl. II, q. 5, a. 2, ad 1, 2; In Iob, cap. XI, lect. I; In Psalm., XVIII).
O segundo discute-se assim. — Parece
que à lei humana pertence coibir todos os vícios.
1. — Pois, diz Isidoro: As leis são
feitas para, sendo temidas, coibirem a audácia. Ora, esta não será
suficientemente coibida, sem que todos os vícios sejam por aquela coibidos.
Logo, a lei humana deve coibi-los a todos.
2. Demais. — A intenção do legislador
é tornar os cidadãos virtuosos. Ora, ninguém pode ser virtuoso se se não coibir
de todos os vícios. Logo, à lei humana pertence coibir de todos eles.
3. Demais. — A lei humana deriva da
lei natural, como já se disse (q. 95, a. 2). Ora, todos os vícios repugnam à
lei natural. Logo, ela deve coibi-los a todos.
Mas, em contrário, diz Agostinho:
Parece-me que esta lei, escrita para governar o povo, permite rectamente tais
coisas e vindica a Providência Divina. Ora, a Providência Divina não vinga
senão os vícios. Logo, se não os coíbe, a lei humana permite, rectamente,
certos vícios.
Como já dissemos (q. 90, a.
1, a. 2), a lei é posta como uma certa regra e medida dos actos humanos. Ora, a
medida deve ser homogénea com o medido, como diz Aristóteles: pois, coisas
diversas têm medidas diversas. Por onde e necessariamente, também as leis hão-de
ser impostas aos homens segundo a condição deles; pois, como Isidoro diz, a lei
deve ser possível, quanto à natureza e quanto aos costumes pátrios. Ora, a
faculdade de agir procede do hábito ou disposição interior; pois, o mesmo não é
possível tanto ao que não tem o hábito da virtude como ao virtuoso, assim como
a mesma coisa não é possível à criança e ao homem feito. E por isso não se
estabelece a mesma lei para as crianças e para os adultos, e muitas coisas
permitidas aquelas são, por lei, punidas ou ainda vituperadas nestes.
Semelhantemente, muitas coisas se permitem ao homem de virtude imperfeita, que
se não tolerariam em homens virtuosos. Ora, a lei humana é feita para a
multidão dos homens, composta na sua maior parte de homens de virtude
imperfeita. Por isso ela não proíbe todos os vícios, de que os virtuosos se
abstêm, mas só os mais graves, dos quais é possível à maior parte da multidão
abster-se. E principalmente os que causam dano a outrem, ou aqueles sem cuja
proibição a sociedade humana não pode subsistir; assim, a lei humana proíbe o
homicídio, o furto e actos semelhantes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— À audácia é próprio atacar os outros. Donde, entra principalmente em o número
dos pecados que causam injúria ao próximo e são proibidos pela lei humana, como
já se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A lei humana
visa dirigir os homens para a virtude, não súbita, mas gradualmente. Por isso
não impõe imediatamente à multidão dos imperfeitos o que só é próprio dos
virtuosos, de modo que se abstenham de todos os vícios. Do contrário, os
imperfeitos, não podendo observar tais preceitos, cairiam em piores males, como
diz a Escritura (Sl 30, 33): Aquele que com força espreme a teta para tirar
leite faz sair desta o sangue; e noutro lugar (Mt 9, 17): Se deitarem vinho
novo, i. é, preceitos da vida perfeita, em odres velhos, i. é, em homens
imperfeitos, vai-se o vinho e perdem-se os odres, i. é, os preceitos são
desprezados e os homens, do desprezo, caem em piores males.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei natural é
uma participação da lei eterna em nós; ao passo que a lei humana é deficiente
em relação à eterna. Pois, diz Agostinho: A lei estabelecida para reger a
cidade permite e deixa impunes, muitos actos, que são vingados pela Providência
Divina. Mas nem por deixar de fazer tudo se lhe há-de reprovar o que faz. Donde,
também a lei humana não pode proibir tudo o que a lei da natureza proíbe.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.