Tempo de Advento
Evangelho:
Lc 7, 19-23
19 João chamou dois e
enviou-os a Jesus a dizer-Lhe: «És Tu o que há-de vir ou devemos esperar
outro?» 20 Tendo ido ter com Ele, disseram-Lhe: «João Baptista
enviou-nos a Ti, para Te perguntar: “És Tu o que há-de vir ou devemos esperar
outro?”». 21 Naquela mesma ocasião Jesus curou muitos de doenças, de
males, de espíritos malignos, e deu vista a muitos cegos. 22 Depois
respondeu-lhes: «Ide referir a João o que vistes e ouvistes: Os cegos vêem, os
coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam,
aos pobres é anunciada a boa nova; 23 e bem-aventurado aquele que
não tiver em Mim ocasião de queda»
Comentário:
A
cura de doenças e males físicos eram um dos sinais descritos nos AT que
assinalavam a chegada do Messias.
Milagres
sempre houve e continua havendo.
Quantas
curas, não só do corpo mas, sobretudo da alma, Jesus opera diariamente em toda
a humanidade!
A
cura da nossa alma, o perdão dos pecados, é um dos sinais da chegada do Messias
ao nosso coração, à nossa vida.
Depois
da Confissão Sacramental, nada mais é como antes, opera-se uma transformação
tão profunda na nossa alma que o ser inteiro é afectado por ela.
(ama,
comentário sobre, Lc 7, 19-23, 2009.11.28)
Leitura espiritual
Existe Deus?
Verdade do cristianismo?
No final do segundo
milénio, e justamente no espaço da sua expansão originária, na Europa, o
cristianismo encontra-se mergulhado numa profunda crise, provinda da crise da
sua pretensão de verdade.
Esta crise tem uma dupla
dimensão: em primeiro lugar, pergunta-se cada vez com maior insistência se, no
fundo, será justo aplicar à religião a noção de verdade; por outras palavras,
se ao homem é dado conhecer a verdade propriamente dita sobre Deus e as coisas
divinas.
O homem contemporâneo reconhece-se muito
melhor na parábola budista do elefante e dos cegos: uma vez, um rei, do Norte
da Índia, reuniu em certo lugar todos os habitantes cegos da cidade.
Depois, fez passar um
elefante diante dos que ali estavam presentes. Deixou que uns tocassem na
cabeça, e disse: “Um elefante é assim”.
Outros puderam tocar na orelha ou no dente, na
tromba, no lombo, no casco, na traseira, nos pelos da cauda.
O rei, em seguida,
perguntou a cada um: “Como é um elefante?”.
E, segundo a parte que
tinham tocado, respondiam:
“É como um cesto
entrançado…”, “é como um vaso…”, “é como a haste de um arado…”;
“É como um armazém…”;
“É como um pilar…”;
“É como uma giesta…”.
Então – continua a
parábola – começaram a discutir, gritando:
“O elefante é assim”,
“não, é assim”, atiraram-se uns aos outros e começaram a lutar, para grande
divertimento do rei.
A disputa entre religiões
surge aos homens de hoje como esta discussão entre cegos de nascença.
Pois, face ao mistério de
Deus, somos cegos de nascença, assim parece.
Para o pensamento actual,
o cristianismo não está de modo algum mais bem situado do que as restantes
religiões; pelo contrário, com a sua pretensão de verdade, parece sofrer de uma
cegueira peculiar em face do limite do nosso conhecimento do divino, e
caracteriza-se por um fanatismo particularmente insensato que, de modo
incorrigível, confunde o todo com a porção apreendida na sua própria
experiência.
Além disso, este
cepticismo generalizado perante a pretensão de verdade em matéria de religião
vê-se apoiado pelas questões que a ciência moderna levantou sobre as origens e
os conteúdos do cristianismo.
A teoria evolucionista
parece ter superado a doutrina da criação;
Os conhecimentos sobre
origem do homem debelaram, aparentemente, a doutrina do pecado original;
A exegese crítica
relativiza a figura de Jesus e questiona a sua consciência filial;
A origem da Igreja em
Jesus afigura-se duvidosa, etc.
O fundamento filosófico do
cristianismo revela-se problemático após o “fim da metafísica” e as suas bases
históricas surgem a uma luz ambígua em virtude dos modernos métodos históricos.
É, pois, fácil reduzir os
conteúdos cristãos a símbolos, não lhes atribuir uma maior verdade do que aos
mitos da história das religiões – vê-los como uma modalidade de experiência
religiosa que, com humildade, se deveria situar ao lado das outras.
Aparentemente, vistas
assim as coisas, poderia continuar a ser-se cristão e prosseguir na utilização
das formas de expressão do cristianismo, cuja pretensão se alterou de modo
radical: a verdade, que era para o homem uma força vinculante e uma promessa
segura, converte-se doravante numa forma de expressão cultural da sensibilidade
religiosa geral, e que se nos afigura óbvia em virtude da nossa origem
europeia.
Ernst Troeltsch, no início
do século XX, fez uma formulação filosófica e teológica desta retirada do
cristianismo da sua pretensão originariamente universal, que apenas se podia
fundar na sua pretensão de verdade.
O cristianismo é, pois,
apenas o lado do rosto de Deus voltado para a Europa.
As “particulares
características ligadas à cultura e às raças”, e “as características das suas
grandes formações religiosas que abarcam um contexto mais amplo” elevam-se à
categoria de instância derradeira:
“Quem se atreveria a
formular juízos de valor verdadeiramente categóricos a tal respeito?
É algo que só o próprio
Deus poderia fazer, ele que está na origem destas diferenças”.
Um cego de nascença sabe
que não nasceu para ser cego e, por conseguinte, não deixará de se interrogar
sobre o porquê da sua cegueira e sobre o modo como dela sair.
Só aparentemente o homem
se resignou ao veredicto de ser cego de nascença frente àquilo que lhe
pertence, à única realidade que, em última instância, conta na nossa vida.
A tentativa titânica de se
apropriar do mundo inteiro, de extrair da nossa vida e para a nossa vida todo o
possível mostra, tal como as explosões de um culto do êxtase, da transgressão e
da destruição de si, que o homem se não contenta com semelhante juízo.
Porque, se não sabe donde
vem e porque existe, não será porventura em todo o seu ser uma criatura
falhada?
O adeus aparentemente
indiferente à verdade sobre Deus e sobre a existência do nosso eu, a aparente
satisfação por não ter já de se ocupar de tudo isto, é um engano.
O homem não pode
resignar-se a ser e a permanecer, quanto ao que é essencial, um cego de
nascença.
O adeus à verdade nunca
pode ser definitivo.
Sendo assim, importa
levantar de novo a questão extemporânea da verdade do cristianismo, por
supérflua e difícil de responder que a muitos se afigure.
Mas como?
A teologia cristã deverá,
sem dúvida, examinar cuidadosamente, sem medo de se expor, as diferentes instâncias
que se levantaram contra a pretensão de verdade do cristianismo no campo da
filosofia, das ciências naturais, da história natural.
Mas, por outro lado,
deverá tentar igualmente obter uma visão geral do problema relativo à
verdadeira essência do cristianismo, da sua posição na história das religiões e
do seu lugar na existência humana. Gostaria de dar um passo nesta direcção,
realçando como, nas suas origens e dentro do cosmos das religiões, o
cristianismo encarou esta sua pretensão.
Que eu saiba, não existe
nenhum texto do cristianismo antigo que arroje tanta luz sobre a questão como a
discussão de Santo Agostinho com a filosofia religiosa do “mais erudito entre
os Romanos”, Marco Terêncio Varrão [i].
Este partilhava a imagem
estóica de Deus e do mundo;
Definiu Deus como animam motu ac ratione mundum gubernantem
(como “a alma que governa o mundo por meio do movimento e da razão”), por
outras palavras: como a alma do mundo que os Gregos chamam kosmos: hunc ipsum mundum
esse deum.
Esta alma do mundo, porém,
não recebe nenhum culto.
Não é objecto de religio.
Por outras palavras:
verdade e religião, conhecimento racional e ordem cultual situam-se em dois
planos de todo diversos.
A ordem cultual, o mundo
concreto da religião, não pertence à ordem da res, da realidade como tal, mas à dos mores – dos costumes.
Não foram os deuses que
criaram o Estado, o Estado é que instituiu os deuses, cuja veneração é
essencial para a ordem do Estado e para o bom comportamento dos cidadãos.
Na sua essência, a
religião é um fenómeno político.
Varrão distingue assim
três tipos de “teologia”, entendendo por teologia a ratio, quae de diis explicatur – a compreensão e a explicação do
divino, poderíamos traduzir.
Tais são a theologia mythica, a theologia civilis e
a theologia naturalis.
Mediante quatro
definições, explica ele, em seguida, que se deve entender por estas
“teologias”.
A primeira definição
refere-se aos três teólogos associados a estas três teologias: os teólogos da
teologia política são os poetas, porque compuseram cantos sobre os deuses e
são, por isso, cantores da divindade.
Os teólogos da teologia
física (natural) são os filósofos, os eruditos, os pensadores, que, indo além
dos hábitos, se interrogam sobre a realidade, sobre a verdade;
Os teólogos da teologia
civil são os “povos”, que decidiram não se aliar aos filósofos (à verdade), mas
aos poetas, às suas visões poéticas, às suas imagens e às suas figuras.
A segunda definição concerne
aos lugares a que na realidade estão associadas as teologias singulares.
À teologia mítica
corresponde o teatro, que tinha efectivamente um carácter religioso, cultual;
segundo a opinião comum, os espectáculos tinham sido instituídos em Roma por
ordem dos deuses.
À teologia política
corresponde a urbs.
O espaço da teologia
natural seria o cosmos.
A terceira definição
designa o conteúdo das três teologias:
A teologia mítica teria
por conteúdo as fábulas sobre os deuses, criadas pelos poetas; a teologia de
Estado, o culto;
A teologia natural
responderia à questão sobre quem são os deuses.
Vale a pena, agora,
prestar maior atenção:
«Se – como em Heraclito –
esses (os deuses) são feitos de fogo ou – como em Pitágoras – de números, ou –
como em Epicuro – de átomos, e outras coisas ainda que os ouvidos podem
suportar mais facilmente dentro dos muros escolares do que fora deles, na praça
pública», depreende-se com absoluta clareza que esta teologia natural é uma
desmitologização, ou melhor uma racionalidade, que perscruta criticamente o que
existe por detrás da aparência mítica e a dissolve mediante o conhecimento
científico-natural.
Culto e conhecimento ficam
entre si separados.
O culto continua
necessário, enquanto for uma questão de utilidade política; o conhecimento tem
um efeito destruidor sobre a religião e não deveria, por isso, trazer-se à
praça pública.
(cont)
joseph
ratzinger (bento xvi)