Páscoa
Evangelho:
Jo 17, 1-11
1 Assim falou
Jesus; depois, levantando os olhos ao céu, disse: «Pai, chegou a hora:
Glorifica o Teu Filho, para que Teu Filho Te glorifique a Ti 2 e, pelo poder
que Lhe deste sobre toda a criatura, dê a vida eterna a todos os que lhe deste.
3 Ora a vida eterna é esta: Que Te conheçam a Ti como o único Deus verdadeiro e
a Jesus Cristo a Quem enviaste. 4 Glorifiquei-Te sobre a terra; acabei a obra
que Me deste a fazer. 5 E agora, Pai, glorifica-Me junto de Ti mesmo, com
aquela glória que tinha em Ti antes que houvesse mundo. 6 «Manifestei o Teu
nome aos homens que Me deste do meio do mundo. Eram Teus e Tu Mos deste; e
guardaram a Tua palavra. 7 Agora sabem que todas as coisas que Me deste vêm de
Ti, 8 porque lhes comuniquei as palavras que Me confiaste; eles as receberam, e
conheceram verdadeiramente que Eu saí de Ti e creram que Me enviaste. 9 «É por
eles que Eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que Me deste, porque são
Teus. 10 Todas as Minhas coisas são Tuas e todas as Tuas coisas são Minhas; e
neles sou glorificado. 11 Já não estou no mundo, mas eles estão no mundo, e Eu
vou para Ti. Pai Santo, guarda em Teu nome aqueles que Me deste para que sejam
um, assim como Nós.
Comentário:
As palavras para comentar este trecho do discurso de
Jesus pecam por exíguas e mal conseguem exprimir quanto nos vai na alma.
Poderíamos dizer que é um discurso poderoso, final, definitivo - e sem dúvida
que é - mas podemos adivinhar perfeitamente o estado de alma do Senhor quando o
pronunciou.
Desta forma estas palavras soam-nos como um testamento cuidadosamente
elaborado onde a principal preocupação é a felicidade futura dos herdeiros e o
amor entranhado que lhes tem.
(ama, comentário sobre Jo 17,
1-11, 2015.05.19)
Leitura espiritual
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
INTRODUÇÃO
“CREIO – AMÉM”
CAPÍTULO PRIMEIRO
Fé no Mundo Hodierno
- Dúvida
e Fé – Situação do homem frente ao problema
"Deus"
…/2
Apesar da roupagem estranha, temos aqui uma
descrição muito precisa da situação do homem face ao problema "Deus".
Ninguém é capaz de servir aos outros o cardápio de Deus e do seu reino, nem o
próprio crente pode servi-lo a si mesmo. Mas, por mais que a descrença se
possa sentir justificada com isso, permanece de pé o horror daquele
"talvez seja verdade". O "talvez" representa o inevitável
ataque ao qual se é incapaz de fugir, no qual se deve experimentar, na recusa,
a irrecusabilidade da fé. Por outras palavras: crente e incrédulo, cada qual a
seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se escondam de si
mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de se eximir
completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé
torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma
de dúvida. Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de
encontrar o definitivo da sua existência somente nesse inevitável embate de
dúvida e fé, de agressão e certeza. Talvez esteja aqui o caminho para
transformar em ponto de encontro, de contacto, a dúvida que preserva a um e a
outro do perigo de se encapsular em si próprio. Ambos estão impedidos de se enrolarem
em si mesmos; o crente é impelido para o que duvida, este para o crente. Para
um temos aí uma participação no destino do descrente, para o outro, a forma pela
qual a fé, apesar de tudo, continua sendo um desafio.
2. O salto da Fé – Ensaio provisório de uma
definição da essência da Fé.
A figura do palhaço incompreendido e dos campesinos
despreocupados não basta para descrever a interdependência da fé e da descrença
nos nossos dias. Contudo, não se pode negar que ela representa, de algum modo,
um problema específico da fé. Pois a questão fundamental de uma introdução ao
cristianismo abrangendo a tarefa de esclarecer o que significa o homem afirmar
"creio" – essa questão fundamental apresenta-se-nos carregada de um
conteúdo temporal muito preciso. Devido à nossa consciência histórica, que se
tornou parcela de nossa autoconsciência e de nossa concepção fundamental do
humano, essa questão só pode ser posta na forma seguinte: que é e que significa
a confissão cristã "creio" nos dias de hoje, dentro das
contingências da nossa existência actual e da nossa posição presente, diante da
realidade no seu conjunto?
Chegamos assim a uma análise do texto que deverá
constituir a directriz, a coluna mestra de todas as nossas considerações, a
saber, do "símbolo apostólico" o qual, a partir da sua origem, quer
ser "introdução ao cristianismo" e resumo do seu conteúdo essencial.
É sintomático o facto de principiar esse texto com a palavra "creio".
Claro está que, de início, abrimos mão de uma análise deste termo dentro do seu
contexto; também deixamos, por ora, de pesquisar porque essa declaração básica
"creio", na sua forma estereotipada, surge em conexão com
determinados conteúdos e se desenvolve dentro de um contexto litúrgico. O
contexto da fórmula litúrgica com o do conteúdo molda o sentido da palavra
"credo", como, vice-versa, a palavra"credo" sustenta e
caracteriza tudo o que se lhe segue e o próprio ambiente litúrgico. Apesar
disso, por ora devemos prescindir de ambos, para enfrentar com maior
radicalismo e analisar muito a fundo que espécie de atitude se intenta quando a
existência cristã se revela, primeiro e antes de tudo, no verbo
"credo" e com isso – o que de modo algum é evidente – demarca o cerne
do crístico como sendo uma "fé". As mais das vezes supomos irreflectidamente
que "religião" e "fé" são uma e mesma coisa, e se misturam,
podendo, por isso, qualquer religião ser definida como "fé". O que,
contudo, só se realiza, de facto, em proporção limitada; muitas vezes as outras
religiões assumem nomes diferentes, colocando assim outros pontos de apoio que
não a fé. O Antigo Testamento, como um todo, não se apresenta sob o conceito de
"fé", mas de "lei". É primariamente uma ordem, um teor de
vida em que, sem dúvida, o acto da fé assume importância crescente. A
religiosidade romana, por sua vez, compreendeu praticamente sob o nome de
"religio" a observância de determinadas formas rituais e de costumes.
Para ela não era decisivo que um acto de fé assentasse sobre elementos
super-naturais; tal acto poderia mesmo faltar por completo, sem que houvesse
infidelidade à religião. Por ser essencialmente um sistema de ritos, a sua exacta
observância era o elemento decisivo acima de tudo. O mesmo poderia
constatar-se, ilustrando toda a história das religiões. Mas essa alusão basta
para esclarecer quão pouco evidente é, em si, o facto de o ser cristão se exprimir
fundamentalmente na palavra "credo", designando a sua posição face à
realidade pela atitude da fé. Com o que, aliás, a nossa pergunta se torna mais
premente: que atitude, afinal, se pretende manifestar por esta palavra? E mais:
por que se torna tão difícil penetrar o nosso "eu" sempre pessoal no
âmago desse "creio"? Por que nos parece sempre, de novo, quase
impossível de transferir o nosso "eu" hodierno – cada qual o seu,
diverso e separado do "eu" dos outros – para a identificação com o
"eu" do "creio" tal como nos vem determinado e moldado por
gerações?
Não nos iludamos: penetrar naquele "eu"
de fórmulas do "credo" assimilar na carne e no sangue do
"eu" pessoal o "eu" esquemático da fórmula constituiu
sempre empresa excitante e aparentemente impossível, em cuja realização, não
raro, ao invés de penetrar o esquema com carne e sangue, o "eu"
acaba transformado em esquema. E se, crentes no nosso tempo, talvez ouçamos com
alguma inveja que na Idade Média todos, sem excepção, eram crentes no nosso
país, seria bom lançar um olhar atrás dos bastidores, olhar possível graças às
conquistas da pesquisa histórica moderna. Ela está em condições de nos ensinar
que, também naquela época, havia a grande massa dos que iam na onda e um número
relativamente restrito dos que, de facto, penetravam até ao âmago da fé. A
história pode mostrar-nos que, para muitos, a fé não passava de um sistema
preexistente de vida, pelo qual a fascinante aventura escondida no seio da
palavra "creio" lhes estava, pelo menos, tão encoberta como patente.
E tudo isso apenas porque entre Deus e homem se abre um abismo infinito; porque
a feitura do homem é tal que os seus olhos só podem ver aquilo que não é Deus,
permanecendo Deus sempre essencialmente invisível, fora do campo visual do
homem. Deus é essencialmente invisível nessa declaração fundamental da fé
bíblica em Deus, em oposição à visibilidade dos deuses é simultaneamente – e
mesmo sobretudo – uma declaração sobre o homem. O homem é o ser vidente, para o
qual o espaço da vida parece demarcado pelo espaço da sua visão e percepção.
Mas Deus jamais aparece e nunca pode aparecer nesse espaço da sua visão e
percepção, determinantes da localização existencial do homem, por mais que tal
espaço seja sempre ampliado. Acredito, o que é importante, que, em princípio,
essa declaração se encontra no Antigo Testamento: Deus não é apenas aquele que,
agora e de facto, se acha fora do campo visual, podendo, contudo, ser percebido,
se fosse possível avançar; não, ele é aquele que se encontra essencialmente fora
deste campo, por mais que nossa área visual se alargue.
Com isso, porém, só se revela um primeiro esboço da
atitude expressa pela palavra "creio". Ela conota um homem que não
considera como o máximo a totalidade das suas capacidades, o ver, o ouvir e o
perceber; que não considera o espaço do seu universo balizado pelo que se encerra
no seu campo visual, auditivo, perceptivo, mas procura uma segunda forma de
acesso à realidade, forma essa que chega a encontrar aí a abertura essencial da
sua concepção do mundo. Sendo assim, a palavra "credo" encerra uma
opção fundamental face à realidade como tal, não conotando apenas a constatação
disso ou daquilo, mas apresentando-se como uma forma fundamental de comportamento
para com o ser, para com a existência, para com o que é próprio da realidade,
para com a sua globalidade. Trata-se de uma opção que considera o invisível, o
absolutamente incapaz de alcançar o campo visual, não como o irreal, mas, pelo
contrário, como o real propriamente dito, que representa o fundamento e a
possibilidade da restante realidade. É a opção de aceitar esse algo que
possibilite a realidade restante a proporcionar ao homem uma existência verdadeiramente
humana, a torná-lo possível como homem e como ser humano. Dito ainda noutros
termos: fé significa o decidir-se por um ponto no âmago da existência humana, o
qual é incapaz de ser alimentado e sustentado pelo que é visível e tangível,
mas que toca a orla do invisível de modo a torná-lo tangível e a revelar-se
como uma necessidade para a existência humana.
Tal atitude certamente só se conseguirá através
daquilo que a linguagem bíblica chama de "volta" ou
"conversão". A tendência natural do homem leva-o ao visível, ao que
se pode pegar e reter como propriedade. Cumpre-lhe voltar-se, internamente,
para ver até que ponto abre mão do que lhe é próprio, ao deixar-se arrastar
assim para fora da sua gravidade natural. Deve converter-se, voltar-se para
conhecer quão cego está ao confiar apenas no que os olhos enxergam. A fé é
impossível sem essa conversão da existência, sem essa ruptura com a tendência
natural. Sim, a fé é a conversão, na qual o homem descobre estar seguindo uma
ilusão ao comprometer-se apenas com o palpável e sensível. E aqui está a razão
mais profunda porque a fé não é demonstrável: é uma volta, uma reviravolta do
ser, e somente quem se volta, a recebe. E, porque a nossa tendência não cessa
de arrastar-nos para outro rumo, a fé permanece sempre nova no seu aspecto de
conversão ou volta, e somente através de uma conversão longa como a vida é que
podemos ter consciência do que vem a ser "eu creio".
A partir daí é compreensível que a fé representa
algo de quase impossível e problemático não apenas hoje e nas condições específicas
da nossa situação moderna, mas, quiçá, de modo um tanto menos claro e
identificável, já representou, sempre, o salto por cima de um abismo infinito,
a saber, da contingência que esmaga o homem: a fé sempre teve algo de ruptura
arriscada e de salto, por representar o desafio de aceitar o invisível como
realidade e fundamento incondicional. Jamais a fé foi uma atitude conatural
consequente do declive da existência humana; ela foi sempre uma decisão
desafiadora da mesma raiz da existência, postulando sempre uma volta, uma
conversão do homem, só possível na escolha.
joseph ratzinger, Tübingen, verão de
1967.
(cont)
Revisão da versão
portuguesa por ama