Questão
54: Da qualidade de Cristo ressuscitado
Art.
2 — Se o corpo de Cristo ressuscitou inteiro.
O segundo discute-se assim. —
Parece que o corpo de Cristo não ressuscitou inteiro.
1. — Pois, a carne e o sangue pertencem
à integridade do corpo humano. Ora, Cristo parece que não os teve,
conforme o Apóstolo: A carne e o sangue
não podem possuir o reino de Deus. Ora, Cristo ressuscitou na glória do
reino de Deus. Logo, parece que não tinha carne nem sangue.
2. Demais. — O sangue é um dos quatro
humores. Se, pois, Cristo teve sangue, pela mesma razão também teve os outros
humores, donde resulta a corrupção aos corpos dos animais. Donde se seguirá,
que o corpo de Cristo era corruptível. O que é inadmissível. Logo, não teve
carne nem sangue.
3. Demais. — O corpo de Cristo ressuscitado
subiu aos céus. Ora, uma parte do seu sangue é reservado como relíquia em
certas Igrejas. Logo, o corpo de Cristo não ressuscitou na integridade de todas
as suas partes.
Mas, em contrário, o Senhor diz, falando
aos discípulos, depois da ressurreição: Um
espírito não tem carne nem ossos como vós vedes que eu tenho.
Como dissemos, o corpo de
Cristo teve, ressuscitado, a mesma natureza, mas uma glória diferente. Donde, tudo
o pertencente à natureza do corpo humano existiu totalmente no corpo de Cristo ressuscitado.
Ora, é manifesto que da natureza do corpo humano fazem parte as carnes, os
ossos, os sangues e atributos semelhantes. Donde, tudo isso existiu no corpo de
Cristo ressuscitado; e também integralmente, sem nenhuma diminuição do
contrário a ressurreição não seria perfeita, se não se reintegrasse tudo o que
se desagregou pela morte. Por isso o Senhor fez aos seus fiéis a seguinte
promessa: Até os mesmos cabelos da vossa
cabeça, todos eles estão contados. E noutro lugar: Não se perderá um cabelo da vossa cabeça. — Quanto a
afirmar que o corpo de Cristo não tinha carne nem ossos nem as demais partes
naturais ao corpo humano, isso constitui o erro de Entíquio, bispo da cidade de
Constantinopla. Dizia ele que o nosso
corpo, na glória da ressurreição, será impalpável e mais subtil que o vento e o
ar. E que o Senhor, depois de ter confirmado o coração dos seus discípulos,
fazendo-os apalpar-lhe o corpo, tornou então subtil tudo o que antes nele podia
ser tocado. Mas essa doutrina Gregório a refuta no mesmo lugar, pois o
corpo de Cristo não sofreu, depois da ressurreição, nenhuma mudança, segundo o
Apóstolo: Tendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre. De modo que o bispo
infiel retratou-se na morte, do que disse. Pois, se é inadmissível que Cristo
tivesse recebido, na sua concepção, um corpo de outra natureza, por exemplo,
celeste, como Valentiniano afirmava, muito mais inadmissível é que, na
ressurreição, reassumisse um corpo de natureza diferente, pois que o corpo
reassumido na ressurreição, para a vida imortal, foi o mesmo que assumiu, na
concepção, para a vida mortal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Carne e sangue, no lugar citado, não se tomam pela natureza deste e daquela,
mas ou pela culpa da carne e do sangue, como diz Gregório; ou pela
corrupção da carne e do sangue, porque, no dizer de Agostinho, não havia aí corrupção nem mortalidade da
carne e do sangue. Ora, a carne, na sua substância, possui o reino de Deus,
conforme o lugar — Um espírito
não tem carne nem ossos como vós vedes que eu tenho. Mas a carne, entendida
como corruptível, não o possui. Por isso imediatamente o Apóstolo acrescentou
as palavras: Nem a corrupção possuirá a
incorruptibilidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz
Agostinho, talvez o tratar-se do sangue
dará a ocasião a um esmerilador mais minucioso de objectar, que se houve sangue
no corpo de Cristo ressuscitado, porque não houve também a pituita, isto é, o
flegma; porque não o fel amarelo, isto é, a bílis e o fel negro ou a
melancolia, cujos quatro humores a ciência médica declara constituídos da
natureza da carne? Acrescente-se-lhes o que se quiser, mas evitando acrescentar
a corrupção — não vá contaminar-se a integridade e a pureza da fé.
Mas Deus pode deixar algumas de suas propriedades a corpos, de natureza
visíveis e palpáveis e privá-los, contudo, de outras, conforme quiser; de sorte
que guardem a sua forma exterior sem nenhuma falha ou corrupção, o movimento
sem a fadiga, o poder de comer sem a necessidade. de nutrir-se.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Todo o sangue
corrido do corpo de Cristo, pertencendo realmente à natureza humana, ressuscitou
com o seu corpo. E o mesmo devemos dizer de todas as partículas realmente
pertencentes á natureza humana em sua integridade. Quanto ao sangue
conservado por certas Igrejas como relíquias, esse não correu do lado de
Cristo; mas é considerado como tendo jorrado milagrosamente de alguma imagem
sua, objecto de qualquer violência.
Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.