A elevação sobrenatural e
o pecado original 2
Com
o relato da transgressão humana do mandato divino de não comer do fruto da
árvore proibida, por instigação da serpente (Gn 3,1-13), a Sagrada Escritura
ensina que no início da história os nossos primeiros pais se rebelaram contra
Deus desobedecendo-Lhe, sucumbindo à tentação de quererem ser como deuses. Como
consequência, receberam o castigo divino, perdendo grande parte dos dons que
lhes tinham sido concedidos (vv. 16-19) e foram expulsos do paraíso (v. 23).
Isto foi interpretado pela tradição cristã como a perda dos dons sobrenaturais
e preternaturais, bem como um dano na própria natureza humana, se bem que não
ficasse essencialmente corrompida. Fruto da desobediência, de se preferirem
antes si próprios em vez de Deus, o homem perde a graça (cf. Catecismo,
398-399) e também a harmonia com a criação e consigo mesmo: o sofrimento e a
morte fazem a sua entrada na história (cf. Catecismo, 399-400).
O
primeiro pecado teve o carácter de uma tentação aceite, pois por detrás da
desobediência humana está a voz da serpente, que representa Satanás, o anjo
caído. A Revelação fala de um pecado anterior, seu e de outros anjos, os quais
– tendo sido criados bons – recusaram irrevogavelmente Deus. Após o pecado
humano, a criação e a história ficam sob o influxo maléfico do «pai da mentira
e homicida desde o princípio» (Jo 8,44). Embora o seu poder não seja infinito,
mas muito inferior ao divino, causa realmente danos muito graves em cada pessoa
e na sociedade, e o facto da permissão divina da actividade diabólica não deixa
de constituir um mistério (cf. Catecismo, 391-395).
O
relato contém também a promessa divina dum Redentor (Gn 3,15). A Redenção
ilumina assim o alcance e a gravidade da queda humana, mostrando a maravilha do
amor de um Deus que não abandona a sua criatura mas que vem ao seu encontro com
a obra salvadora de Jesus. «É preciso conhecer Cristo como fonte da graça para
conhecer Adão como fonte do pecado» (Catecismo, 388). «”O mistério da
iniquidade” (2 Ts 2,7) só se esclarece à luz do “Mistério da piedade” (1 Tm
3,16)» (Catecismo, 385).
A
Igreja entendeu sempre este episódio como um facto histórico – mesmo que nos
tenha sido transmitido em linguagem certamente simbólica (cf. Catecismo, 390)
–, que foi denominado tradicionalmente (a partir de Santo Agostinho) como
“pecado original”, por ter ocorrido nas origens. O pecado não é “originário” –
mesmo que “originante” dos pecados pessoais realizados na história –, mas
entrou no mundo como fruto do mau uso da liberdade exercida pelas criaturas
(primeiro os anjos, depois o homem). O mal moral não pertence, pois, à
estrutura humana, não provém nem da natureza social do homem, nem da sua materialidade,
nem, obviamente, sequer de Deus, ou de um destino inamovível. O realismo
cristão põe o homem diante da sua própria responsabilidade: pode fazer o mal
como fruto da sua liberdade, e o responsável por isso não é outro mas ele
próprio (cf. Catecismo, 387).
Ao
longo da história, a Igreja formulou o dogma do pecado original em contraste
com o optimismo exagerado e o pessimismo existencial (cf. Catecismo, 406). Face
a Pelágio, que afirmava que o homem pode realizar o bem usando apenas as suas
forças naturais, e que a graça é uma mera ajuda externa, minimizando, assim,
quer o alcance do pecado de Adão, quer a redenção de Cristo – reduzidos a um
mero mau ou bom exemplo, respectivamente –, o Concilio de Cartago (418),
seguindo Santo Agostinho, ensinou a prioridade absoluta da graça, pois o homem
depois do pecado ficou debilitado (cf. DS 223.227; cf. também o Concilio II de
Orange, no ano 529: DS 371-372). Contra Lutero, que defendia que depois do
pecado o homem está essencialmente corrompido na sua natureza, que a sua
liberdade fica anulada e que em tudo o que faz há pecado, o Concílio de Trento
(1546) afirmou a relevância ontológica do baptismo, que apaga o pecado
original; embora permaneçam as suas sequelas – entre elas, a concupiscência,
que não se há-de identificar, como fazia Lutero, com o próprio pecado – o homem
é livre nos seus actos e pode merecer com obras boas, apoiadas pela graça (cf.
DS 1511-1515).
Na
base da posição luterana e também de algumas interpretações recentes de Gn 3,
está em jogo uma adequada compreensão da relação entre 1) natureza e história,
2) o plano psicológico-existencial e o plano ontológico, 3) o individual e o
colectivo.
1
Mesmo que haja alguns elementos de carácter mítico no Génesis (entendendo o
conceito de “mito” no seu melhor sentido, ou seja, como palavra-narração que dá
origem e que, portanto, está no fundamento da história posterior), seria um
erro interpretar o relato da queda como uma explicação simbólica da original
condição pecadora humana. Esta interpretação converte em natureza um facto
histórico, mitificando-o e tornando-o inevitável: paradoxalmente, o sentido de
culpa que leva a reconhecer-se “naturalmente” pecador, conduziria a mitigar ou
eliminar a responsabilidade pessoal no pecado, pois o homem não poderia evitar
aquilo para que tende espontaneamente. O correcto, o justo, é afirmar que a
condição pecadora pertence à historicidade do homem e não à sua natureza
originária.
2
Ao terem ficado depois do baptismo algumas sequelas do pecado, o cristão pode
experimentar com violência a tendência para o mal, sentindo-se profundamente
pecador, como ocorre na vida dos santos. No entanto, esta perspectiva
existencial não é a única, nem sequer a mais fundamental, pois o baptismo
apagou realmente o pecado original e fez-nos de facto filhos de Deus (cf.
Catecismo, 405). Ontologicamente, o cristão em graça é justo diante de Deus.
Lutero radicalizou a perspectiva existencial, entendendo toda a realidade a
partir dela, que ficava assim marcada ontologicamente pelo pecado.
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O terceiro ponto conduz à questão da transmissão do pecado original, «um
mistério que não podemos compreender plenamente» (Catecismo, 404). A Bíblia
ensina que os nossos primeiros pais transmitiram o pecado a toda a humanidade.
Os capítulos seguintes do Génesis (cf. Gn 4-11; cf. Catecismo, 401) narram a
progressiva corrupção do género humano; estabelecendo um paralelismo entre Adão
e Cristo, São Paulo afirma: «como pela desobediência de um só homem todos se
tornaram pecadores, também pela obediência de um só (Cristo) todos virão a ser
justos» (Rm 5,19). Este paralelismo ajuda a entender correctamente a
interpretação que costuma dar-se do termo adamáh como de um singular colectivo:
como Cristo é um só e cabeça da Igreja, assim Adão é um só e cabeça da humanidade
5. «Em virtude desta “unidade do género humano”, todos os homens
estão implicados no pecado de Adão, do mesmo modo que todos estão implicados na
justificação de Cristo» (Catecismo, 404).
A
Igreja entende de modo analógico o pecado original dos nossos primeiros pais e
o pecado herdado pela humanidade. «Adão e Eva cometem um pecado pessoal... É um
pecado que vai ser transmitido a toda a humanidade por propagação, quer dizer,
pela transmissão duma natureza humana privada da santidade e da justiça originais.
E é por isso que o pecado original se chama “pecado” por analogia: é um pecado
“contraído” e não “cometido”; um estado e não um acto» (Catecismo, 404). Assim,
«embora próprio de cada um, o pecado original não tem, em qualquer descendente
de Adão, carácter de falta pessoal» (Catecismo, 405) 6.
Para
algumas pessoas é difícil aceitar a ideia de um pecado herdado 7,
sobretudo se se tiver uma visão individualista da pessoa e da liberdade. O que
é que eu tive a ver com o pecado de Adão? Porque é que hei-de pagar as
consequências do pecado de outros? Estas perguntas reflectem uma ausência do
sentido da solidariedade real que existe entre todos os homens enquanto criados
por Deus. Paradoxalmente, esta ausência pode entender-se como uma manifestação
do pecado transmitido a cada um. Quer dizer, o pecado original ofusca a
compreensão daquela profunda fraternidade do género humano que torna possível a
sua transmissão.
Perante
as lamentáveis consequências do pecado e da sua difusão universal pode
perguntar-se: «Mas, porque é que Deus não impediu o primeiro homem de pecar?
São Leão Magno responde: “A graça inefável de Cristo deu-nos bens superiores
aos que a inveja do demónio nos tinha tirado” (serm. 73,4). E São Tomás de
Aquino: “Nada se opõe a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim
mais elevado depois do pecado. Efectivamente, Deus permite que os males
aconteçam para deles retirar um bem maior. Daí as palavras de São Paulo: ‘onde
abundou o pecado, superabundou a graça’” (Rm 5,20). Por isso, na bênção do
círio pascal canta-se: ‘Ó feliz culpa que mereceu tal e tão grande Redentor!’”
(Summa Theologiae, III, 1, 3, ad 3)» (Catecismo, 412).
Catecismo da Igreja Católica, 374-421.
Compêndio do Catecismo da Igreja
Católica, 72-78.
João Paulo II, Creo en Dios Padre.
Catequesis sobre el Credo (I), Palabra, Madrid 1996, 219 seg.
DS, n. 222-231; 370-395; 1510-1516;
4313.
João Paulo II, Memória e Identidade,
Bertrand Editora, Lisboa 2005.
Bento XVI, Homilia, 8-XII-2005.
Joseph Ratzinger, Creación y pecado,
Eunsa, Pamplona 1992.
(Resumos
da Fé cristã: © 2013, Gabinete de Informação do Opus Dei na Internet)
5
Esta é a principal razão de que a Igreja tenha sempre lido o relato da queda
numa óptica de monogenismo (proveniência do género humano a partir de um só
casal). A hipótese contrária, o poligenismo, pareceu impor-se como dado
científico (e inclusive exegético) durante uns anos, mas actualmente, a nível
científico, considera-se mais plausível a descendência biológica de um só casal
(monofiletismo). Do ponto de vista da fé, o poligenismo é problemático, pois
não se vê como possa conciliar-se com a Revelação sobre o pecado original (cf.
Pio XII, Enc. Humani Generis, DS 3897), embora se trate de una questão sobre a
qual ainda cabe investigar e reflectir.
6
Neste sentido, distinguiu-se tradicionalmente entre o pecado original
originante (o pecado pessoal cometido pelos nossos primeiros pais) e o pecado
original originado (o estado de pecado em que nasceram os seus descendentes).
7
Cf. João Paulo II, Audiência geral, 24-IX-1986, 1.