Quaresma
Semana V
Evangelho:
Jo 8, 1-11
1 Jesus foi para o
monte das Oliveiras. 2 Ao romper da manhã, voltou para o templo e todo o povo
foi ter com Ele, e Ele, sentado, os ensinava. 3 Então os escribas e os fariseus
trouxeram-Lhe uma mulher apanhada em adultério; puseram-na no meio, 4 e
disseram-Lhe: «Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante delito de
adultério. 5 Ora Moisés, na Lei, mandou-nos apedrejar tais mulheres. E Tu que
dizes?». 6 Diziam isto para Lhe armarem uma cilada, a fim de O poderem acusar.
Porém, Jesus, inclinando-Se, pôs-Se a escrever com o dedo na terra. 7
Continuando, porém, eles a interrogá-l'O, levantou-Se e disse-lhes: «Aquele de
vós que estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire uma pedra». 8 Depois,
tornando a inclinar-Se, escrevia na terra. 9 Mas eles, ouvindo isto, foram-se
retirando, um após outro, começando pelos mais velhos; e ficou só Jesus com a
mulher diante d'Ele. 10 Então, levantando-Se, disse-lhe: «Mulher, onde estão os
que te acusavam? Ninguém te condenou?». 11 Ela respondeu: «Ninguém, Senhor».
Então Jesus disse: «Nem Eu te condeno; vai e doravante não peques mais».
Comentário:
É interessante verificar que a Lei que os
Escribas e Fariseus tanto fazem por zelar seja tão discriminatória.
De facto para haver adultério é necessário
haver mais que um responsável.
Mas Jesus vem corrigir este critério quando
diz que o adultério - o acto propriamente dito - não é exclusivo porque bastará
o desejo íntimo de outro para o cometer.
Mas, ainda hoje em dia, a sociedade
descrimina de forma absurda – e indecente – as mulheres como sendo as únicas
culpadas das relações adúlteras.
Aos homens é concedido como que um
“estatuto” de defesa automática como se o adultério praticado por estes fosse
menos gravoso quando, muitas vezes, são, até, os principais responsáveis não só
procurando essas relações mas, também, exercendo autênticas perseguições a
mulheres em situação mais fragilizada como sejam, por exemplo, muitas das que
os maridos violentam ou abandonam tornando-se “presas fáceis” desses autênticos
predadores.
(ama,
comentário sobre Jo 8 1-11, 2015.03.23)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO - CONFISSÕES
LIVRO
QUATRO
CAPÍTULO
XIII
O
problema do belo
Então eu ignorava tais
coisas – e por isso amava belezas terrenas. Caminhava para o abismo, dizendo aos
meus amigos: “Será que amamos algo que não é belo? E que é o belo? E que é a
beleza? Que é que nos atrai e apega às coisas que amamos? Pois, com certeza, se
nelas não houvesse certa graça e formosura, não nos atrairiam.
E eu observava e via que
num mesmo corpo uma coisa era o todo, harmonioso e belo, e outra o que lhe era
conveniente, com aptidão de se ajustar de maneira perfeita a alguma coisa como,
por exemplo, a parte do corpo em relação ao conjunto, o calçado em relação ao
pé, e outras similares. Esta consideração brotou na minha alma do íntimo de meu
coração, e escrevi alguns livros sobre o belo e o conveniente, creio que dois
ou três – tu o sabes, Senhor – pois já me esqueci, e não os tenho mais porque
se me extraviaram não sei como.
CAPÍTULO
XIV
Razões
de uma dedicatória
Mas, meu Senhor e meu
Deus, qual o motivo de dedicar esses livros a Hiério, orador de Roma? Não o
conhecia, apreciando-o apenas pela fama de sua doutrina, que era grande, e por alguns
ditos seus, que ouvira, e que me agradaram. Mas gostava dele principalmente porque
ele agradava aos outros, que lhe tributavam grandes elogios, admirados de que
um sírio, educado na eloquência grega, chegasse a orador admirável na latina, e
grande conhecedor de todos os assuntos, ligados à filosofia. Assim, ouve-se
louvar um homem, e, embora ausente, começa-se a amá-lo. Entrará o amor no
coração do que ouve pela boca do que louva? É certo que não, mas o amor de um inflama-se
com amor do outro. Por isso se ama o que é louvado; mas só quando se está
persuadido de que o louvor vem de coração sincero, ou quando o louvor é
inspirado pelo amor.
Assim pois eu amava então
aos homens, pelo juízo dos homens, e não pelo teu, meu Deus, em quem ninguém se
engana. Contudo, por que não o louvava como se louva a um auriga famoso ou a um
caçador afamado pelas aclamações do povo, mas de modo mais distinto e mais ponderado,
tal como eu gostaria de ser louvado?
Certamente, eu não
gostaria de ser louvado e amado como os comediantes, embora eu também os ame e
louve; antes, preferiria mil vezes, permanecer desconhecido a ser louvado dessa
maneira, e mesmo ser odiado a ser amado assim. De que modo convivem em uma alma
gostos tão vários e diversos? Como é que amo noutro o que rejeitaria e
afastaria para longe de mim, sendo ambos homens? Aprecia-se um bom cavalo, sem
que se queira ser um cavalo, se isso fosse possível. Mas de um histrião não se
pode dizer o mesmo, pois tem a mesma natureza que nós. Logo, amo num homem o
que teria horror de ser, embora também eu seja homem?
Grande abismo é o homem,
cujos cabelos tu, Senhor, tens contados; e não se perde um sem que tu o saibas;
e, contudo, mais fáceis de contar são os seus cabelos que as suas paixões e os movimentos
de seu coração.
Mas aquele orador era do
número dos que eu amava a ponto de desejar ser como ele; mas eu andava errante por
causa do meu orgulho e era arrastado por toda espécie de vento, embora em segredo
fosse governado por ti. E como sei, e como te confesso com tanta certeza que o
amava mais por amor dos que o louvavam do que pelos méritos que lhe valiam
esses louvores?
Se em vez de o louvarem
aquelas mesmas pessoas o criticassem, e se me contassem dele as mesmas coisas,
mas com censura e desprezo, certamente não me entusiasmaria por ele; não
obstante, os factos não seriam diferentes e nem outro o homem, mas unicamente
os sentimentos dos narradores.
Eis onde jaz enferma a
alma que ainda não se apoiou na firmeza da verdade. É levada e trazida, atirada
e rechaçada, segundo os sopros das línguas que ventam dos peitos dos que opinam!
E de tal modo a luz lhe é toldada, que não distingue a verdade, apesar de estar
ela à nossa vista.
Para mim era importante
que aquele homem conhecesse as minhas palavras e os meus trabalhos. Se ele os
aprovasse, entusiasmar-me-ia ainda mais por ele; mas se os reprovasse, meu coração
fútil e vazio da tua firmeza, lastimar-se-ia. Contudo, o meu prazer era pensar
e reflectir no problema do belo e do conveniente, assunto do livro que lhe
dedicara, admirando-o na minha imaginação, mesmo que ninguém mais o louvasse.
CAPÍTULO
XV
Os
primeiros livros
Mas não atinava com a
chave das tuas artes em tão grandes obras, ó Deus omnipotente, único criador de
maravilhas. Vagava a minha alma pelas formas corpóreas, e definia o belo como o
que agrada por si mesmo, e o conveniente como o que agrada pela sua acomodação
a outra coisa, e apoiava essa distinção com exemplos tomados dos corpos.
Daqui passei à natureza da
alma, mas o falso conceito que tinha das coisas espirituais não me permitia
perceber a verdade. A própria força da verdade saltava-me aos olhos, mas logo
eu afastava da realidade incorpórea meu espírito inquiridor, voltando-me para
as figuras, as cores e as grandezas materiais. E como não podia ver nada semelhante
na alma, julgava que tampouco seria possível ver a minha alma.
Mas, como eu amava a paz
da virtude, e aborrecia a discórdia do vício, notava naquela certa unidade e
neste certa desunião; parecia-me que residisse nessa unidade a alma racional, a
essência da verdade e do sumo bem. Na desunião, eu via não sei que substância
de vida irracional e a natureza do sumo mal, que não era apenas substância, mas
também verdadeira vida. Todavia não procedia de ti, meu Deus, de quem procedem
todas as coisas. E chamava àquela unidade mónada, como alma sem sexo, e a esta
multiplicidade díada, como a ira nos crimes, a concupiscência nas paixões, sem
saber o que dizia. Ignorava então, ainda não havia aprendido que o mal não é
substância alguma, nem que nosso espírito não é o bem soberano e imutável.
Assim como se cometem
crimes quando o movimento do espírito é vicioso e se atira insolente e
turbulento, e se cometem infâmias quando o afecto da alma, fonte dos prazeres
carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a vida se a
alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela deveria
ser ilustrada por outra luz para participar da verdade, por não ser da mesma
essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás a minha lâmpada; tu, meu
Deus, iluminarás as minhas trevas, e todos participamos da tua plenitude,
porque és a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo, e
porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade.
Eu esforçava-me para me
aproximar de ti, mas tu repelias-me para que experimentasse a morte, pois
resistes aos soberbos. E que maior soberba haveria que afirmar, com inaudita
loucura, que eu era da mesma natureza que tu? Porque, sendo eu mutável, e
reconhecendo-me tal – pois, se queria ser sábio, era para fazer-me de menos
para mais perfeito – preferia, contudo, julgar mutável a ti do que não ser o
que tu és. Eis aqui porque era repelido, e porque resistias à minha soberba
cheia de vento.
Eu não imaginava mais que
formas corpóreas; carne, acusava a carne; espírito errante, não conseguia
voltar para ti, nem em mim, nem nos corpos; não eram sugeridas pela tua
verdade, mas imaginadas pela minha vaidade, de acordo com os corpos. E dizia
aos pequeninos teus fiéis concidadãos, dos quais eu, ignaro, ainda exilado,
dizia-lhes eu, tagarela inepto: “Por quê a alma, criatura de Deus, se engana?” Mas
não queria que dissessem: “É por que Deus se engana?” E defendia antes que a tua
substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que a minha, mutável,
se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada pelo erro.
Teria eu vinte e seis ou
vinte e sete anos quando escrevi essas coisas, revolvendo dentro de mim apenas
imagens corporais, cujo ruído aturdia os ouvidos do meu coração. Eu procurava
aplicá-los – ó doce verdade – à tua melodia interior, quando meditava sobre o
belo e o conveniente. Meu desejo era estar diante de ti, e ouvir a tua voz, e
alegrar-me intensamente com a voz do esposo, mas não o podia, porque o alarido
do meu erro me arrebatava para fora e, sob o peso da minha soberba, caía no
abismo. Pois ainda não davas gozo e alegria a meus ouvidos, nem exultavam os meus
ossos, porque ainda não haviam sido humilhados.
CAPÍTULO
XVI
As
dez categorias de Aristóteles
E que lucro me trazia,
tendo eu vinte anos de idade, mais ou menos, e chegando-me às mãos a obra de
Aristóteles, intitulada As Dez Categorias – que meu mestre, o retórico de
Cartago, e outros, considerados doutos, citavam com grande ênfase e ponderação,
fazendo-me suspirar por ela como por algo grandioso e divino – de que me servia
ler essa obra e compreendê-la sozinho? Falando com outros, que afirmavam ter
conseguido entendê-la só por meio de mestres eruditíssimos, que lha haviam
explicado não apenas com palavras, mas também com figuras pintadas na areia,
nada me souberam dizer que eu já não tivesse entendido em minha leitura particular.
Parecia-me que essa obra
falava com muita clareza das substâncias, como o homem, e das coisas que nelas
se encerram, como a forma do homem; a estatura, quantos pés mede; o parentesco,
de quem é irmão; onde se encontra, quando nasceu; se está de pé, sentado,
calçado ou armado; se faz alguma coisa ou se padece de alguma coisa, e, enfim,
uma infinidade de relações que se contêm nestes nove géneros, dos quais citei
alguns exemplos, ou no próprio género da substância, que são também inumeráveis
os que encerra.
De que me aproveitava tudo
isso, se até me prejudicava? Julgando que naqueles dez predicamentos se achavam
compreendidas, de modo absoluto, todas as coisas, esforçava-me por compreender
também a ti, meu Deus, Ser maravilhosamente simples e imutável, como se fosses subordinado
à tua grandeza e formosura, como se estas estivessem em ti como em seu sujeito,
como se fosses um corpo; a tua grandeza e beleza são porém uma mesma coisa
contigo, ao contrário dos corpos, que
não são grandes ou belos por serem corpos, pois, embora fosses menores e menos
belos, nem por isso deixariam de ser corpos.
Era pois falso o que pensava
de ti, e não verdade; ilusões da minha miséria, e não representação sólida da
tua beleza. Havias ordenado, Senhor, e assim se cumpria em mim a tua vontade,
que a terra me produzisse abrolhos e espinhos, e que eu só conseguisse o meu
pão à custa de trabalho.
De que me aproveitava
também ler e compreender por mim mesmo todos os livros que pude ter nas mãos
sobre as artes chamadas liberais, se eu era então escravo das minhas más inclinações?
Comprazia-me na sua leitura, sem atinar de onde vinha quanto de verdadeiro e
certo achava neles; eu estava de costas para a luz, e o rosto, para os objectos
iluminados, e por isso os meus olhos, que os viam iluminados, não recebiam luz.
Tu sabes, Senhor, meu
Deus, como sem ajuda de mestre, aprendi tudo o que li, quanto às leis da
retórica, da dialéctica, da geometria, da música e da matemática, porque também
a vivacidade da inteligência e a agudeza da intuição são dons teus. Mas não te
oferecia por eles sacrifício algum, e por isso causavam-me mais dano do que proveito.
Insisti em apoderar-me da melhor parte da minha herança, e não guardei em ti a
minha força, mas afastei-me de ti para uma região longínqua, a fim de dissipá-la
entre as meretrizes das minhas paixões.
De que me serviam dons tão
preciosos, se não usava bem deles? Só compreendi que aquelas artes eram tão
difíceis de entender, mesmo para os estudiosos e sábios, quando me esforçava
por as expor: entre eles, o mais destacado era o que me compreendia menos vagarosamente.
Mas qual o fruto disso, se
eu te concebia, Senhor meu Deus, ó Verdade, como um corpo luminoso e infinito,
e eu como uma parcela desse corpo? Que rematada perversidade! Assim era eu; não
me envergonho agora, meu Deus, de confessar as tuas misericórdias para comigo,
e de te invocar, já que não me envergonhei então de proferir ante os homens
tais blasfémias e de ladrar contra ti. De que me aproveitava, repito, a
inteligência ágil para entender aquelas ciências, e para explicar com clareza
tantos livros complicados, sem que ninguém mos houvesse explicado, se errava
monstruosamente na piedade com sacrílega torpeza? E que prejuízo sofriam os teus
pequeninos em serem de menor inteligência, se não se afastavam de ti, para que,
seguros no ninho da tua Igreja, se cobrissem de penas, e lhes alimentassem as
asas da caridade com o sadio alimento da fé?
Ó Deus e Senhor nosso!
Esperemos, ao abrigo das tuas asas; protege-nos, leva-nos! Tu levarás os
pequeninos, e até escarnecidos tu os levarás, a nossa firmeza só é firmeza
quando está em ti; mas quando depende de nós, então é debilidade. O nosso bem
vive sempre em ti, e somos perversos porque nos afastamos de ti. Voltemos já,
Senhor, para não nos aniquilarmos, porque em ti vive nosso bem, sem deficiência
alguma; sem medo de não o encontrar quando voltarmos para nossa origem e,
embora ausentes, nem por isso desaba a nossa casa, a tua eternidade.
(cont)
(Revisão de versão
portuguesa por ama)