Jesus Cristo o Santo de Deus
Capítulo III
ACREDITAS?
A divindade de Cristo no Evangelho de S.
João
3 «Como podeis vós acreditar?»
…/2
Uma
sociedade que se atola cada vez mais na matéria e na desordem moral, será uma
sociedade que acreditará cada vez menos na divindade de Cristo.
Esta, de
facto, torna-se uma reprovação permanente, como uma luz indiscreta.
«O incrédulo
diz: “Se eu tivesse fé, abandonaria os prazeres”; mas eu repondo-lhe: “Terias
fé, se tivesses abandonado os prazeres”» [i].
Pelo
contrário, um grande sustentáculo da fé na divindade de Cristo é a pureza.
«Bem-aventurados
os puros de coração porque verão a Deus» [ii].
Verão a Deus
também em Jesus reconhecendo a Sua divindade.
Existem
decerto ainda outros motivos – alguns culpáveis, outros não – para quem não crê
na divindade de Cristo; mas os que atrás citei, especialmente o da procura da
própria glória, são os mais comuns quando se trata de pessoas que conheceram
Cristo e, porventura, até já creram nele, sobretudo as pessoas doutas.
4.«A obra de Deus é crer naquele que Ele enviou»
A divindade
de Cristo – e, portanto, a universalidade da Sua salvação – é o objectivo
específico e principal do crer, segundo o Novo Testamento. «Crer», sem outras
especificações, significa crer em Cristo. Pode também significar crer em Deus,
mas enquanto é o Deus que enviou o Seu Filho ao mundo.
Jesus
dirigia-se às pessoas que acreditavam já no verdadeiro Deus; toda a Sua
insistência sobre a fé está relacionada com aquele novo acontecimento que era a
Sua vinda ao mundo, o Seu falar em nome de Deus. Numa palavra, o facto de Ele
ser o Filho unigénito de Deus.
Foi,
sobretudo, S. João quem fez da divindade de Cristo e da Sua filiação divina a
finalidade principal do seu evangelho e o tema que tudo unifica. Ele conclui o
seu evangelho dizendo:
«Estas
palavras foram escritas para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de
Deus», e para que, crendo, tenhais a vida em Seu nome» [iii]; e termina
a sua primeira carta quase com as mesmas palavras:
«Escrevo-vos
tudo isto para que saibais que tendes a vida eterna, vós que acreditais no nome
do Filho de Deus». [iv]
Uma rápida
vista de olhos ao Quarto Evangelho, mostra-nos, através do ponto de vista da fé
na divindade de Cristo, como esta constitui a sua urdidura e textura. Crer
n’Aquele que o Pai enviou, é tido como «a obra de Deus», e aquilo que mais
agrada a Deus. Não crer nisto é visto, consequentemente, como «o pecado» por
excelência:
«O
Consolador convencerá o mundo quanto ao pecado», e o pecado é: «não creem em
Mim». [v]
Está traçada claramente uma linha que
distingue a humanidade em duas partes: aqueles que creem e aqueles que não
creem que Jesus é o Filho de Deus. Quem crê n’Ele não é condenado, mas quem não
crê já está condenado; quem crê tem a vida, quem não crê não terá a vida [vi].
Também, à medida que se desenrola a
revelação de Jesus, vê-se concretamente formarem-se dois grupos de pessoas. De
algumas foi dito que «creram n’Ele»
Em Caná, os Seus discípulos acreditaram
n’Ele [vii];
muitos mais, de entre os samaritanos, «creram n’Ele pela Sua palavra« [viii].
Por outro lado, fala-se de pessoas,
particularmente os chefes, que «não creram n’Ele e nota-se que nem os Seus
irmãos «criam n’Ele» [ix].
Mesmo depois da Sua morte, a fé n’Nele
será como a grande pedra de toque no seio da humanidade:
De um lado estarão aqueles que embora
não tenham visto, creram [x]; do
outro lado, estará o mundo que se recusará a crer.
Perante esta distinção, todas as outras
conhecidas anteriormente, passam para segundo plano. O episódio de S. Tomé
aparece como um tácito convite dirigido por S. João ao leitor.
No fim, ele é convidado a fechar o
livro, a ajoelhar e exclamar:
«Meu Senhor e meu Deus!» [xi].
É nesta clara e solene profissão de fé
na divindade de Cristo que se cumpre a finalidade ela qual S. João escreveu o
seu evangelho.
É de ficarmos mesmo estupefactos perante
o cometimento que o Espírito de Jesus permitiu que João levasse a cabo. Ele
abraçou os temas, os símbolos, as esperanças, tudo quanto havia de
religiosamente vivo, tanto no mundo judaico como no helenístico, guiando tudo
para uma única ideia, ou melhor, para uma única pessoa: Jesus Cristo Filho de
Deus, salvador do mundo.
O evangelho de João não se centra sobre
um acontecimento, mas sobre uma pessoa.
Nisto ele é diferente de Paulo, cujo
pensamento, embora também ele dominado por Cristo, tem por centro, mais que a pessoa de Cristo, a Sua obra de
salvação, o Seu mistério pascal.
Ao lermos os livros de certos
estudiosos, seguidores da «Escola de
história das religiões», o mistério cristão não se distingue, senão em coisas
de pouca monta, do mito religioso gnóstico e mandeu [xii], ou
da filosofia religiosa helenística e hermética.
Os confins perdem-se e os paralelismos
multiplicam-se.
A fé cristã, mormente a de S. João, torna-se
uma das variantes desta mitologia cambiante e desta religiosidade difusa.
Mas o que significa isto?
Significa só que se prescinde das coisas
essenciais: da vida e da força histórica que está por detrás dos sistemas e das
representações.
As pessoas vivas são diferentes umas das
outras, mas os esqueletos são todos semelhantes.
Uma vez reduzida a esqueleto, isolado da
vida que produziu, isto é, da Igreja, a mensagem cristã corre o rico de se
confundir com as outras da mesma época.
S. João não nos legou um conjunto de
doutrinas religiosas antigas, mas um poderoso kerigma.
Aprendeu a língua dos homens do seu
tempo para gritar nessa língua, com todas as suas forças, a única verdade que
salva, a Palavra por excelência, o «Verbo».
Ele «reduziu» todas as inteligências à
obediência a Cristo».
O Cristo de S. João é «o herdeiro de
tudo».
É o «Logos total», como Lhe chama S.
Justino, é Aquele que reúne em Si todas as partículas de verdade, espalhadas
aqui e ali, como sementes, entre as pessoas [xiii].
É o Cristo «herdeiro de todo o esforço
humano», o rei que «recebeu tributos de povos desconhecedores de que lhos
enviavam» [xiv].
Um cometimento como este não se leva a cabo
sentado a uma escrevaninha, com o apoio de meia dúzia de livros abertos.
A síntese joanina da fé em
Cristo foi realizada «a fogo», isto é, na oração, vivendo de Cristo, falando
d’Ele.
Quiçá, falando d’Ele com a
Mãe, pois que ela tinha vivido em sua casa, ou somente permanecendo perto dela
e contemplando-a.
Uma coisa é certa,
independentemente da questão do autor do Quarto Evangelho: Maria estava
presente no ambiente em que se formaram as tradições do Quarto Evangelho,
porque «o discípulo de Jesus amava tinha-a levado para sua casa.
Precisamente por causa desta
sua origem especial, o resultado da síntese de João, ainda hoje, não pode ser
compreendido por quem esteja debruçado sobre uma escrevaninha com meia dúzia de
livros abertos para consulta.
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
[i] B. Pascal,
Pensamentos, 240, Br.
[xii] Nota de AMA: seguidor ou praticante
do mandeísmo, religião praticada no Oriente Médio.
[xiii] Cfr. S. Justino, II Aplologia, 10,13.
[xiv]
Ch. Péguy, Eve, in Oeuvres Poétiques,
Paris 1975, pp. 1086,1581.