Leitura espiritual
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A Cidade de Deus |
Vol. 1
LIVRO
III
CAPÍtULO X
Seria
de desejar que o Império Romano crescesse à custa de tantas guerras, quando
poderia manter-se em paz e segurança com o mesmo zelo que tinha havido no reino
de Numa?
Responderão que o Império Romano não poderia
alargar-se até tão distantes e largas paragens nem adquiriria fama por tão
elevada glória se não fossem as guerras que continuadamente se foram sucedendo.
Bela razão, não há dúvida! Porque é que o império, para ser grande tem que ser
agitado? Não será melhor para os corpos humanos uma estatura pequena com saúde
do que uma gigantesca corpulência com permanentes achaques e, depois de a
atingir, não encontrar repouso, mas ser molestado por males tanto maiores quanto
maiores são os membros? Ora que mal haveria, ou melhor, como seria bom que se
mantivessem os tempos a que se refere Salústio ao dizer em resumo: No princípio os reis [i] (de
facto foi este o primeiro nome da autoridade na terra) eram diferentes: uns exercitavam o espírito, outros os corpos. Naquela
época a vida do homem desenvolvia-se sem cupidez, contentando-se cada um com o
que possuía [ii].
Será que, para dilatar tanto o Império, era
preciso que acontecesse o que Vergílio lamenta quando diz:
Pouco a pouco uma época pior
e descolorida foi chegando, e chegou a fúria das guerras e a paixão da posse [iii].
Claro que os Romanos têm uma boa defesa por
terem empreendido e conduzido tão grandes guerras: eram obrigados, pois que
inimigos sobre eles injustamente irrompiam , a resistir, não por avidez da
conquista de glória humana, mas por necessidade de defesa da vida e da
liberdade. Pois seja assim. De facto, o próprio Salústio escreve.
Quando o estado se desenvolveu sob o ponto de vista da
legislação, dos costumes, do território, e pareceu bastante próspero e
florescente — a sua opulência, como acontece às coisas humanas, provocou a
inveja. Por isso os reis e povos vizinhos começaram com guerras; poucos dos
seus amigos foram em seu auxílio porque os outros, atingidos pelo medo,
afastaram-se do perigo. Mas os Romanos, sempre atentos, tanto na paz como na
guerra, movem-se rapidamente, preparam-se, animam-se uns aos outros, correm ao
encontro do inimigo, protegem com as armas a liberdade, a pátria e a família. Uma
vez afastado corajosamente o perigo, correm em auxílio dos seus aliados e
amigos e celebram alianças, mais prestando do que recebendo benefícios [iv].
Roma com estes métodos cresceu com dignidade.
Mas, quando reinava Numa, para que tão longa paz houvesse, acaso os povos
faziam excursões injustas, incitando-os à guerra? Ou antes, porque nada disto
aconteceu, é que se pôde conservar aquela paz? Se de facto Roma era então
inquietada por guerras, mas às armas não opunha armas — que meios utilizou para
que os seus inimigos, sem terem sido vencidos em combate nem aterrados em
ofensiva guerreira, se mantivessem calmos? Roma devia ter usado sempre destes
processos e reinaria sempre na paz, mantendo fechadas as portas de Jano. Se
isso não esteve ao seu alcance, é porque Roma não conservou a paz enquanto os
deuses o quiseram, mas sim enquanto os vizinhos preferiram não a provocar com
nenhum ataque. A não ser que, acaso, tais deuses tenham ousado vender ao homem
o que depende do querer ou do não querer de outro homem! É de facto
interessante saber até que ponto é permitido a estes demónios amedrontarem ou
excitarem as mentes, já de si corrompidas com os vícios que lhes são próprios.
Mas, se isso lhes fosse sempre possível sem tomarem outras decisões, movidos
frequentemente por uma força superior e oculta contrária às pretensões dos
deuses, teriam sempre à sua disposição o poder de concederem períodos de paz ou
de vitórias na guerra, realidades que dependem quase sempre das paixões
humanas. A maior parte das vezes, todavia, estes acontecimentos produzem-se
contra a sua vontade, como o asseguram, não as fábulas mentirosas, que apenas
insinuam ou significam algo de verdadeiro, mas sim a própria história de Roma.
CAPÍTULO
XI
As
lágrimas da estátua de Apoio Cumano revelaram, julgou-se, a derrota dos Gregos
a quem ele não pôde prestar ajuda.
Não se sabe por que outro motivo esse Apoio
de Cumas tivesse chorado durante quatro dias quando decorria a guerra contra os
Aqueus e o rei Aristonico. Aterrados com este prodígio os arúspices julgaram
que a sua imagem devia ser lançada ao mar. Mas os velhos cumanos opuseram-se e
contaram que um prodígio semelhante ocorrera com a mesma imagem quando da
guerra contra Antíoco e Perseu e testemunharam que, por essa guerra ter chegado
ao fim com felicidade para os Romanos, um senato-consulto ordenou que se
mandassem presentes ao mesmo Apoio. Chamaram-se então outros arúspices tidos
por mais hábeis. Estes responderam que as lágrimas da imagem de Apoio eram
favoráveis aos Romanos, visto Cumas ser uma colónia grega, e que, chorando,
Apoio anunciava o luto e a derrota nas terras donde o tinham feito vir, isto é,
da própria Grécia. Em breve foi anunciado que o rei Aristonico tinha sido
vencido e aprisionado. É evidente que Apolo não queria esta derrota, dela se
doía e até o mostrava com as lágrimas da sua imagem de pedra. Daqui se conclui
que não é por vezes sem justeza, que em seus poemas, lendários sem dúvida, mas
próximos da verdade, os poetas descrevem os costumes dos demónios. Assim, em
Vergílio, Diana lamenta a sorte de Camila e Hércules chora Palas que vai
morrer. É por isso que talvez Numa Pompílio, gozando de longa paz sem saber nem
procurar saber a quem a devia, perguntava durante os seus lazeres, a que deuses
confiaria o cuidado de vigiarem pela salvação dos Romanos e do seu reino. Mas,
julgando que o verdadeiro, supremo e omnipotente Deus não curava das coisas
terrestres, recordou-se de que os deuses troianos trazidos por Eneias não
tinham podido salvar por muito tempo nem o reino de Tróia nem o de Lavínio
fundado pelo próprio Eneias, e julgou que devia procurar outros protectores,
que juntou aos anteriores, quer aos que já tinham passado para Roma com Rómulo,
quer aos que haviam de passar quando Alba foi destruída, para deles fazer os
custódios dos fugitivos ou os auxiliares dos inválidos.
CAPÍTULO
XII
Quantos
deuses acrescentaram os Romanos contra a Constituição de Numa, cuja multidão
em nada os ajudou.
Todavia, Roma não se dignou contentar-se com
esses cultos tão numerosos que Pompílio aí havia constituído. Efectivamente
ainda não tinha o principal templo do próprio Júpiter. Foi o rei Tarquínio quem
construiu o Capitólio. Esculápio veio do Epidauro para Roma para exercer
gloriosamente, na mais nobre das cidades, a sua arte como médico habilíssimo.
Também a mãe dos deuses chegou não sei donde de Pessinunte. Era de facto
indigno que seu filho já presidisse na colina do Capitólio e ela ficasse
escondida num lugar ignorado. Pois, se ela era a mãe de todos os deuses, não só
seguiu alguns dos seus filhos para Roma, como também precedeu outros que haviam
de segui- -la. Sem dúvida que me surpreende que ela tenha gerado Cinocéfalo que
veio do Egipto muito mais tarde. Se também dela nasceu a deusa Febre, o seu
bisneto Esculápio o dirá. Mas de quem quer que ela tenha nascido, penso que os
deuses estrangeiros não ousarão classificar de baixo nascimento uma deusa
cidadã romana. Portanto, Roma, posta sob a protecção de tantos deuses (quem os
poderá enumerar — indígenas e estrangeiros, celestes e terrestes, infernais e
marinhos, deuses das fontes e dos rios, e, como diz Varrão, certos e incertos,
e em todos os géneros de deuses, machos e fêmeas como os animais?), posta,
portanto, sob a protecção de tantos deuses, Roma não poderia ter sido sacudida
nem castigada por tão grandes e horríveis catástrofes, das quais, que muitas
são, vou rememorar algumas, poucas. Realmente, com grande fumarada congregou,
como a sinal dado, um tão exagerado número de deuses para a sua protecção.
Instituindo e sustentando-lhes templos e altares, sacrifícios e sacerdotes,
ofendia o verdadeiro Deus supremo, único a quem são legitimamente devidas estas
homenagens. Com certeza que a sua vida seria mais feliz com menos deuses, mas,
quanto mais crescia, mais ela julgava que devia admitir, tal como um grande
navio reclama mais marinheiros, perdendo a esperança, julgo eu, de que esse
reduzido número de deuses, sob os quais a sua vida foi melhor, em comparação
com a sua queda posterior, pudesse constituir uma ajuda eficaz para a sua
grandeza. Efectivamente já sob os reis, à excepção de Numa Pompílio de quem
acabo de falar, que desgraça tamanha não ocasionou aquela luta de rivalidades
que obrigou a dar a morte ao irmão de Rómulo!
CAPÍTULO
XIII
Com
que direito, por que tratado obtiveram os Romanos as primeiras mulheres em
casamento.
Como é que nem Juno que, com o seu Júpiter,
já
favorecia, os Romanos, senhores da terra, povo togado [v]
nem a própria Vénus pôde ajudar os seus
enéadas [vi] para
que merecessem casamentos segundo o bom e legítimo costume? Como é que desta
falta resultou calamidade tamanha que tiveram de, com dolo, as raptar e,
seguidamente, foram coagidos a lutar com os sogros de modo que as míseras das
mulheres, ainda não reconciliadas com os maridos em consequência daquele
ultraje, já «recebiam em dote o sangue dos pais»? É certo que os Romanos, neste
conflito, venceram os seus vizinhos. Mas à custa de quantas e quão graves
feridas de parte a parte, de quantas mortes dos seus chegados e vizinhos
conseguiram estas vitórias?
Por causa de um só sogro, César, e de seu
genro, Pompeio, quando a filha de César, mulher de Pompeio, estava já morta,
com que profundo e justo sentimento de dor exclama Lucano:
Nós cantamos as guerras, piores que as civis, travadas
nas planuras de Ematia, e o direito concedido pelo crime [vii].
Pois os Romanos venceram e, com as mãos
ensanguentadas da carnificina dos sogros, arrancaram às suas filhas miseráveis
abraços sem que elas ousassem chorar os pais assassinados para não ofenderem
os maridos vencedores, elas que, enquanto eles combatiam, não sabiam por quem
oferecer votos.
Não foi Vénus mas Belona quem presenteou os
Romanos com tais núpcias; ou talvez Alecto, aquela fúria infernal que, quando
Juno já lhes era favorável causou mais danos do que quando era excitada pelos
pedidos de Juno contra Eneias. Andrómaca foi mais feliz quando a aprisionaram
do que aquelas mulheres quando casaram com os Romanos. Depois de ter recebido
dela abraços, embora de escrava, Pirro nenhum troiano matou; mas os Romanos
chacinaram em combate os sogros cujas filhas abraçavam no leito. Aquela
(Andrómaca) submetida ao vencedor, mal pôde chorar — mas não temeu a morte dos
seus. Estas, ligadas aos combatentes, receavam a morte de seus pais quando
viram os maridos partirem para a batalha; e quando voltaram choravam-nos sem
poderem exprimir nem temor nem dor. Na realidade, por causa da morte dos
concidadãos e vizinhos, dos irmãos e dos pais, ou sofriam piedosamente ou se
alegravam cruelmente com a vitória dos maridos. Acresce a isto que, segundo as
alternativas da guerra, umas perderam os maridos às mãos dos pais, outras os
pais e os maridos às mãos uns dos outros. Nem também entre os Romanos foram
pequenas aquelas provas. Os Sabinos vieram visitar a sua cidade que, para se
proteger, teve de fechar as portas. Abertas estas com arteirice e tendo entrado
os inimigos nas muralhas, trava-se um atroz e criminoso combate no forum mesmo
entre genros e sogros. Os raptores viam-se superados e fugiam atabalhoadamente
para as suas casas, prejudicando assim gravemente as suas anteriores vitórias,
já de si vergonhosas e deploráveis. Então Rómulo, desesperando da coragem dos
seus, pediu a Júpiter para os deter na
fuga. Esta circunstância valeu a Júpiter o cognome de Stator. Mas não
seria o fim de tamanho mal se aquelas raptadas não tivessem vindo, com os
cabelos desgrenhados atirar- -se aos pés dos pais e não tivessem apaziguado a
justíssima ira não pela vitória do amor, mas por súplicas piedosas. Depois,
Rómulo, que não suportava o irmão como comparte, teve que aceitar como
associado Tito Tácio rei dos Sabinos. Mas até quando o toleraria aquele que não
suportava o irmão gémeo? Daí que, depois do seu assassínio para se tornar um
deus maior, ficou sozinho no trono. Que contratos de casamento são esses, que
fermentos de guerra, que pactos de fraternidade e de afinidade, de aliança e de
divindade são estes? Em que se tornou, no fim de contas, a vida da cidade sob a
tutela de tantos deuses? Vês quantas coisas poderia expor agora sobre este
caso, se a nossa intenção não fosse a de prosseguir o nosso assunto sem
demoras.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[ii]
diversi
pars ingenium, alii corpus exercebant; etiam turn vita hominum sine cupiditate
agitabatur, sua cuique satis placebant. Salustio, Catilina, VI, 3-5
[iii]
Deterior
donec paulatim ac decolor aetas, Et belli rabies et amor successit habendi?
Vergílio, Eneida, VIII, 326-327.
[iv]
Postquam
res corum legibus, moribus, agris aucta, satis prospera, satisque pollens
videbatur, sicute pleraque mortalium habentur, invidia ex opulentia orta est.
Igitur reges populique fmitimi bello temptare; paucis ex amiás auxilio esse:
tiam ceteri metu perculsi a periculis aberant. A t Romani domi militiaeque
intenti festinare, parare, alius alium hortari, hostibus obviam ire;
libertatem, patriam, parentesque armis tegere. Post ubi pericula virtute
propulerant, sodis at que amicis auxilia portabant magisque dandis quam
acdpiendis benejiciis parabant. Salústio, Catilina, VI, 3-5.
[v]
...
Fovebat Romanos rerum dominos gentemque togatam. Vergílio, Eneida, I, 280-281.
[vi]
Assim
como aos descendentes de Luso se chama Lusíadas, também aos descendentes de
Eneias se chama Enéadas.
[vii]
Bella
per Emathios plusquam civilia campos Jusque datum sceleri canimus Lucano,
Farsália, I, 1-2.