12/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual


A Cidade de Deus 


Vol. 1

LIVRO III

CAPÍtULO X

Seria de desejar que o Império Romano crescesse à custa de tantas guerras, quando poderia manter-se em paz e segurança com o mesmo zelo que tinha havido no reino de Numa?

Responderão que o Império Romano não poderia alargar-se até tão distantes e largas paragens nem adquiriria fama por tão elevada glória se não fossem as guerras que continuadamente se foram sucedendo. Bela razão, não há dúvida! Porque é que o império, para ser grande tem que ser agitado? Não será melhor para os corpos humanos uma estatura pequena com saúde do que uma gigantesca corpulência com permanentes achaques e, depois de a atingir, não encontrar repouso, mas ser molestado por males tanto maiores quanto maiores são os membros? Ora que mal haveria, ou melhor, como seria bom que se mantivessem os tempos a que se refere Salústio ao dizer em resumo: No princípio os reis [i] (de facto foi este o primeiro nome da autoridade na terra) eram diferentes: uns exercitavam o espírito, outros os cor­pos. Naquela época a vida do homem desenvolvia-se sem cupidez, contentando-se cada um com o que possuía [ii].

Será que, para dilatar tanto o Império, era preciso que acontecesse o que Vergílio lamenta quando diz:

Pouco a pouco uma época pior e descolorida foi chegando, e chegou a fúria das guerras e a paixão da posse  [iii].

Claro que os Romanos têm uma boa defesa por terem empreendido e conduzido tão grandes guerras: eram obrigados, pois que inimigos sobre eles injustamente irrompiam , a resistir, não por avidez da conquista de glória humana, mas por necessidade de defesa da vida e da liberdade. Pois seja assim. De facto, o próprio Salústio escreve.

Quando o estado se desenvolveu sob o ponto de vista da legislação, dos costumes, do território, e pareceu bastante próspero e florescente — a sua opulência, como acontece às coisas humanas, provocou a inveja. Por isso os reis e povos vizinhos começaram com guerras; poucos dos seus amigos foram em seu auxílio porque os outros, atingidos pelo medo, afastaram-se do perigo. Mas os Romanos, sempre atentos, tanto na paz como na guerra, movem-se rapidamente, preparam-se, animam-se uns aos outros, correm ao encontro do inimigo, protegem com as armas a liberdade, a pátria e a família. Uma vez afastado corajosamente o perigo, correm em auxílio dos seus aliados e amigos e celebram alianças, mais prestando do que recebendo benefícios [iv].

Roma com estes métodos cresceu com dignidade. Mas, quando reinava Numa, para que tão longa paz houvesse, acaso os povos faziam excursões injustas, incitando-os à guerra? Ou antes, porque nada disto aconteceu, é que se pôde conservar aquela paz? Se de facto Roma era então inquietada por guerras, mas às armas não opunha armas — que meios utilizou para que os seus inimigos, sem terem sido vencidos em combate nem aterrados em ofensiva guerreira, se mantivessem calmos? Roma devia ter usado sempre destes processos e reinaria sempre na paz, mantendo fechadas as portas de Jano. Se isso não esteve ao seu alcance, é porque Roma não conservou a paz enquanto os deuses o quiseram, mas sim enquanto os vizinhos preferiram não a provocar com nenhum ataque. A não ser que, acaso, tais deuses tenham ousado vender ao homem o que depende do querer ou do não querer de outro homem! É de facto interessante saber até que ponto é permitido a estes demónios amedrontarem ou excitarem as mentes, já de si corrompidas com os vícios que lhes são próprios. Mas, se isso lhes fosse sempre possível sem tomarem outras decisões, movidos frequentemente por uma força superior e oculta contrária às pretensões dos deuses, teriam sempre à sua disposição o poder de concederem períodos de paz ou de vitórias na guerra, realidades que dependem quase sempre das paixões humanas. A maior parte das ve­zes, todavia, estes acontecimentos produzem-se contra a sua vontade, como o asseguram, não as fábulas mentirosas, que apenas insinuam ou significam algo de verdadeiro, mas sim a própria história de Roma.

CAPÍTULO XI

As lágrimas da estátua de Apoio Cumano revelaram, julgou-se, a derrota dos Gregos a quem ele não pôde prestar ajuda.

Não se sabe por que outro motivo esse Apoio de Cumas tivesse chorado durante quatro dias quando decorria a guerra contra os Aqueus e o rei Aristonico. Aterrados com este prodígio os arúspices julgaram que a sua imagem devia ser lançada ao mar. Mas os velhos cumanos opuseram-se e contaram que um prodígio semelhante ocorrera com a mesma imagem quando da guerra contra Antíoco e Perseu e testemunharam que, por essa guerra ter chegado ao fim com felicidade para os Romanos, um senato-consulto ordenou que se mandassem presentes ao mesmo Apoio. Chamaram-se então outros arúspices tidos por mais hábeis. Estes responderam que as lágrimas da imagem de Apoio eram favoráveis aos Romanos, visto Cumas ser uma colónia grega, e que, chorando, Apoio anunciava o luto e a derrota nas terras donde o tinham feito vir, isto é, da própria Grécia. Em breve foi anunciado que o rei Aristonico tinha sido vencido e aprisionado. É evidente que Apolo não queria esta derrota, dela se doía e até o mostrava com as lágrimas da sua imagem de pedra. Daqui se conclui que não é por vezes sem justeza, que em seus poemas, lendários sem dúvida, mas próximos da verdade, os poetas descrevem os costumes dos demónios. Assim, em Vergílio, Diana lamenta a sorte de Camila e Hércules chora Palas que vai morrer. É por isso que talvez Numa Pompílio, gozando de longa paz sem saber nem procurar saber a quem a devia, perguntava durante os seus lazeres, a que deuses confiaria o cuidado de vigiarem pela salvação dos Romanos e do seu reino. Mas, julgando que o verdadeiro, supremo e omnipotente Deus não curava das coisas terrestres, recordou-se de que os deuses troianos trazidos por Eneias não tinham podido salvar por muito tempo nem o reino de Tróia nem o de Lavínio fundado pelo próprio Eneias, e julgou que devia procurar outros protectores, que juntou aos anteriores, quer aos que já tinham passado para Roma com Rómulo, quer aos que haviam de passar quando Alba foi destruída, para deles fazer os custódios dos fugitivos ou os auxiliares dos inválidos.

CAPÍTULO XII

Quantos deuses acrescentaram os Romanos contra a Constitui­ção de Numa, cuja multidão em nada os ajudou.

Todavia, Roma não se dignou contentar-se com esses cultos tão numerosos que Pompílio aí havia constituído. Efectivamente ainda não tinha o principal templo do próprio Júpiter. Foi o rei Tarquínio quem construiu o Capitó­lio. Esculápio veio do Epidauro para Roma para exercer gloriosamente, na mais nobre das cidades, a sua arte como médico habilíssimo. Também a mãe dos deuses chegou não sei donde de Pessinunte. Era de facto indigno que seu filho já presidisse na colina do Capitólio e ela ficasse escondida num lugar ignorado. Pois, se ela era a mãe de todos os deuses, não só seguiu alguns dos seus filhos para Roma, como também precedeu outros que haviam de segui- -la. Sem dúvida que me surpreende que ela tenha gerado Cinocéfalo que veio do Egipto muito mais tarde. Se também dela nasceu a deusa Febre, o seu bisneto Esculápio o dirá. Mas de quem quer que ela tenha nascido, penso que os deuses estrangeiros não ousarão classificar de baixo nascimento uma deusa cidadã romana. Portanto, Roma, posta sob a protecção de tantos deuses (quem os poderá enumerar — indígenas e estrangeiros, celestes e terrestes, infernais e marinhos, deuses das fontes e dos rios, e, como diz Varrão, certos e incertos, e em todos os géneros de deuses, machos e fêmeas como os animais?), posta, portanto, sob a protecção de tantos deuses, Roma não poderia ter sido sacudida nem castigada por tão grandes e horríveis catástrofes, das quais, que muitas são, vou rememorar algumas, poucas. Realmente, com grande fumarada congregou, como a sinal dado, um tão exagerado número de deuses para a sua protecção. Instituindo e sustentando-lhes templos e altares, sacrifícios e sacerdotes, ofendia o verdadeiro Deus supremo, único a quem são legitimamente devidas estas homenagens. Com certeza que a sua vida seria mais feliz com menos deuses, mas, quanto mais crescia, mais ela julgava que devia admitir, tal como um grande navio reclama mais marinheiros, perdendo a esperança, julgo eu, de que esse reduzido número de deuses, sob os quais a sua vida foi melhor, em comparação com a sua queda posterior, pudesse constituir uma ajuda eficaz para a sua grandeza. Efectivamente já sob os reis, à excepção de Numa Pom­pílio de quem acabo de falar, que desgraça tamanha não ocasionou aquela luta de rivalidades que obrigou a dar a morte ao irmão de Rómulo!

CAPÍTULO XIII

Com que direito, por que tratado obtiveram os Romanos as primeiras mulheres em casamento.

Como é que nem Juno que, com o seu Júpiter, já
favorecia, os Romanos, senhores da terra, povo togado [v]

nem a própria Vénus pôde ajudar os seus enéadas [vi] para que merecessem casamentos segundo o bom e legítimo costume? Como é que desta falta resultou calamidade tamanha que tiveram de, com dolo, as raptar e, seguidamente, foram coagidos a lutar com os sogros de modo que as míseras das mulheres, ainda não reconciliadas com os maridos em consequência daquele ultraje, já «recebiam em dote o sangue dos pais»? É certo que os Romanos, neste conflito, venceram os seus vizinhos. Mas à custa de quantas e quão graves feridas de parte a parte, de quantas mortes dos seus chegados e vizinhos conseguiram estas vitórias?

Por causa de um só sogro, César, e de seu genro, Pompeio, quando a filha de César, mulher de Pompeio, estava já morta, com que profundo e justo sentimento de dor exclama Lucano:

Nós cantamos as guerras, piores que as civis, travadas nas planuras de Ematia, e o direito concedido pelo crime [vii].

Pois os Romanos venceram e, com as mãos ensanguentadas da carnificina dos sogros, arrancaram às suas filhas miseráveis abraços sem que elas ousassem chorar os pais assassinados para não ofende­rem os maridos vencedores, elas que, enquanto eles combatiam, não sabiam por quem oferecer votos.

Não foi Vénus mas Belona quem presenteou os Romanos com tais núpcias; ou talvez Alecto, aquela fúria infernal que, quando Juno já lhes era favorável causou mais danos do que quando era excitada pelos pedidos de Juno contra Eneias. Andrómaca foi mais feliz quando a aprisionaram do que aquelas mulheres quando casaram com os Romanos. Depois de ter recebido dela abraços, embora de escrava, Pirro nenhum troiano matou; mas os Romanos chacinaram em combate os sogros cujas filhas abraçavam no leito. Aquela (Andrómaca) submetida ao vencedor, mal pôde chorar — mas não temeu a morte dos seus. Estas, ligadas aos combatentes, receavam a morte de seus pais quando viram os maridos partirem para a batalha; e quando voltaram choravam-nos sem poderem exprimir nem temor nem dor. Na realidade, por causa da morte dos concidadãos e vizinhos, dos irmãos e dos pais, ou sofriam piedosamente ou se alegravam cruelmente com a vitória dos maridos. Acresce a isto que, segundo as alternativas da guerra, umas perderam os maridos às mãos dos pais, outras os pais e os maridos às mãos uns dos outros. Nem também entre os Romanos foram pequenas aquelas provas. Os Sabinos vieram visitar a sua cidade que, para se proteger, teve de fechar as portas. Abertas estas com arteirice e tendo entrado os inimigos nas muralhas, trava-se um atroz e criminoso combate no forum mesmo entre genros e sogros. Os raptores viam-se superados e fugiam atabalhoadamente para as suas casas, prejudicando assim gravemente as suas anteriores vitórias, já de si vergonhosas e deploráveis. Então Rómulo, desesperando da coragem dos seus, pediu a Júpiter para os deter na  fuga. Esta circunstância valeu a Júpiter o cognome de Stator. Mas não seria o fim de tamanho mal se aquelas raptadas não tivessem vindo, com os cabelos desgrenhados atirar- -se aos pés dos pais e não tivessem apaziguado a justíssima ira não pela vitória do amor, mas por súplicas piedosas. Depois, Rómulo, que não suportava o irmão como comparte, teve que aceitar como associado Tito Tácio rei dos Sabinos. Mas até quando o toleraria aquele que não suportava o irmão gémeo? Daí que, depois do seu assassínio para se tornar um deus maior, ficou sozinho no trono. Que contratos de casamento são esses, que fermentos de guerra, que pactos de fraternidade e de afinidade, de aliança e de divindade são estes? Em que se tornou, no fim de contas, a vida da cidade sob a tutela de tantos deuses? Vês quantas coisas poderia expor agora sobre este caso, se a nossa intenção não fosse a de prosseguir o nosso assunto sem demoras.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Igitur initio reges
[ii] diversi pars ingenium, alii corpus exercebant; etiam turn vita hominum sine cupiditate agitabatur, sua cuique satis placebant. Salustio, Catilina, VI, 3-5
[iii] Deterior donec paulatim ac decolor aetas, Et belli rabies et amor successit habendi? Vergílio, Eneida, VIII, 326-327.
[iv] Postquam res corum legibus, moribus, agris aucta, satis prospera, satisque pollens videbatur, sicute pleraque mortalium habentur, invidia ex opulentia orta est. Igitur reges populique fmitimi bello temptare; paucis ex amiás auxilio esse: tiam ceteri metu perculsi a periculis aberant. A t Romani domi militiaeque intenti festinare, parare, alius alium hortari, hostibus obviam ire; libertatem, patriam, parentesque armis tegere. Post ubi pericula virtute propulerant, sodis at que amicis auxilia portabant magisque dandis quam acdpiendis benejiciis parabant. Salústio, Catilina, VI, 3-5.
[v] ... Fovebat Romanos rerum dominos gentemque togatam. Vergílio, Eneida, I, 280-281.
[vi] Assim como aos descendentes de Luso se chama Lusíadas, também aos descendentes de Eneias se chama Enéadas.
[vii] Bella per Emathios plusquam civilia campos Jusque datum sceleri canimus Lucano, Farsália, I, 1-2.

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