Vol. 1
LIVRO
VIII
CAPÍTULO VII
Os platónicos devem ser
considerados muito superiores aos outros filósofos em lógica ou filosofia
racional.
Quanto
à doutrina tratada na segunda parte, a que chamam lógica, isto é, racional,
longe de mim a ideia de lhes serem comparáveis aqueles que puseram nos sentidos
corporais o discernimento da verdade e pretenderam medir pelas suas regras
inseguras e falazes tudo o que ao pensamento respeita. É o caso de Epicuro e
quejandos; e até os próprios estóicos que possuídos de um ardente amor por esta
habilidade na discussão que se chama dialéctica, julgaram que ela devia ser
deduzida das sensações do corpo. É a partir daí, afirmam eles, que o espírito
concebe as noções [i] das
coisas que se explicam por meio de definições; é a partir daí que se
desenvolvem e se encadeiam todas as regras da arte de aprender e de ensinar. [ii]
Costumo
admirar-me muito sempre que os ouço afirmar que só os sábios são belos. Com que
sentidos do corpo terão visto essa beleza? Mas aqueles que merecidamente
colocamos acima dos outros, distinguiram o que o espírito contempla daquilo que
os sentidos atingem, sem nada tirarem aos sentidos das suas aptidões, sem nada
lhes concederem além delas. A luz dos espíritos, para todo o conhecimento a
adquirir, é, disseram eles, este mesmo Deus por quem todas as coisas foram
feitas.
CAPÍTULO VIII
Também na filosofia moral os
platónicos têm a primazia.
Resta
a parte moral, a Ética que trata do Bem supremo: a ele referimos tudo o que
fazemos; apetecemo-lo não por outro, mas por si mesmo, pela sua posse termina
toda a busca posterior de felicidade. E por isso que também se chama fim porque
é para ele que queremos os outros bens, mas àquele queremo-lo por si mesmo.
Este
bem beatífico, uns dizem que vem ao homem do corpo, outros da alma e outros dos
dois conjuntamente. Como viam que o homem é formado de corpo e alma, julgavam
que quer o corpo, quer a alma, quer os dois conjuntamente é que podiam ser a
origem do seu bem, dum bem definitivo, princípio da felicidade ao qual se
reportava tudo o que faziam — e não tiveram que buscar outra coisa a que
referi-lo.
Aqueles,
pois, que, diz-se, acrescentaram uma terceira categoria de bens chamados
extrínsecos, como a honra, a glória, o dinheiro e outros que tais, não se
propunham de forma alguma fazer deles um bem final, isto é, desejável por si
próprio, mas sim um bem desejado na mira de outro; e assim este género de bens
seria bom para os bons e mau para os maus. Desta forma este bem do homem que
uns exigem da alma, outros do corpo, outros do corpo e da alma, todos eles
pensaram que haveria que procurá-lo unicamente no homem. Os que o esperavam do
corpo, esperavam-no da parte menos nobre; os que o esperavam da alma,
esperavam-no da parte melhor; os que o esperavam do corpo e alma conjuntamente,
esperavam-no do homem todo. Mas quer seja duma parte ou do todo, é apenas do
homem que o esperam. Estas diferenças, embora sejam três, não deram origem a
três, mas a muitos sistemas ou seitas filosóficas — porque acerca do bem do
corpo, acerca do bem da alma, acerca do bem dos dois conjuntamente, diversos
filósofos emitiram diversas opiniões.
Cedam,
portanto, todos estes filósofos que disseram que feliz não é o homem que goza
do seu corpo, que feliz não é o que goza da sua alma, mas feliz é o que goza de
Deus — não como o espírito goza do seu corpo ou de si próprio, nem como um amigo
goza de um amigo, mas como o olhar goza da luz (se é que entre estas coisas
alguma semelhança pode existir): qual seja a sua natureza, ver-se-á em outro
lugar na medida em que, com a ajuda de Deus, nos for possível. Basta por agora
recordar que, segundo Platão, o bem supremo consiste em viver conforme a
virtude — o que só pode ser alcançado por quem tem o conhecimento de Deus e
procura imitá-lo: não há outra causa que possa tomá-lo feliz. Também não hesita
em dizer que filosofar é amar a Deus, cuja natureza é incorpórea. Donde se
segue que o desejoso de sabedoria (que o mesmo é que dizer: o filósofo) só se
toma feliz quando começa a gozar de Deus. Certamente que se não é feliz pelo
simples facto de que se goza do que se ama, (muitos de facto são infelizes por
amarem o que não deviam amar e mais infelizes ainda por dele gozarem). Todavia
ninguém é feliz se não goza do que ama. Mesmo aqueles que amam o que não deve
ser amado não se julgam felizes por amarem, mas por gozarem. Portanto, quem
goza daquele que ama e ama o verdadeiro e supremo bem — quem senão o mais
desgraçado negará que esse é feliz? A esse verdadeiro e supremo bem dá Platão o
nome de Deus. Por isso é que diz que filósofo é o que ama a Deus; e porque a
filosofia tende para a vida feliz, é gozando de Deus que quem o ama é feliz.
CAPÍTULO IX
Da filosofia que mais se
aproxima da verdade da fé cristã.
Portanto,
quaisquer que sejam eles, os filósofos que reconhecem no verdadeiro Deus
Supremo o autor das coisas criadas, a luz dos nossos conhecimentos, o bem para
que tendem as nossas acções, aquele que é para nós o princípio da natureza, a
verdade da doutrina, a felicidade da vida:
quer se chamem mais exactamente platónicos ou
se dê não importa que nome à sua escola,
quer se pense que os mais notáveis mestres da
escola jónica, como Platão e os que bem o compreenderam, foram os únicos a
pensar assim,
quer se encontre esta doutrina na escola
itálica devido a Pitágoras, aos pitagóricos, talvez a outros mestres da mesma
região que partilharam as suas ideias, quer sejam quaisquer outros havidos por
sábios e filósofos, de outros povos (líbios do Atlântico, egípcios, indianos,
persas, caldeus, citas, gauleses, hispanos e outros mais) que tenham aprendido
e ensinado estas doutrinas,
— a todos colocamos acima dos outros e
reconhecemos que estão mais próximo de nós.
CAPÍTULO X
Excelência da religião
Cristã entre as disciplinas religiosas.
Um
cristão instruído apenas nas letras eclesiásticas, talvez ignore o nome dos
platónicos e não saiba que em língua grega houve duas correntes filosóficas — a
jónica e a itálica. Não é, porém, tão surdo para as coisas humanas que
desconheça que os filósofos se dedicam ao estudo e à prática da sabedoria.
Todavia acautela-se dos que filosofam em conformidade com os elementos deste
mundo, e não em conformidade com Deus por quem o mundo foi feito. É que ele
está avisado pelo preceito apostólico a que presta atenção com fé:
Acautelai-vos, não vos deixeis enganar pelas
vãs seduções duma filosofia conforme aos elementos do mundo [iii].
Mas
para que não se pense que todos são assim, ouve também o que de alguns diz o
Apóstolo:
Porque
o que de Deus se pode conhecer está patente. O próprio Deus o manifestou. Desde
que o Mundo existe, as suas perfeições invisíveis tomaram-se visíveis ao
espírito por meio das suas obras, bem como o seu eterno poder e a sua divindade [iv].
Dirigindo-se
aos atenienses, depois de ter dito de Deus aquela extraordinária palavra que
por bem poucos pode ser compreendida,
é
nele que vivemos, nos movemos e somos [v],
acrescenta:
Como
o disseram alguns dos vossos [vi].
Com
certeza que o cristão também sabe que deles se deve acautelar em assuntos em
que se enganam. Efectivamente, onde está referido que
Por
meio das coisas criadas Deus revelou as suas perfeições invisíveis, acessíveis
à inteligência [vii],
também
está referido que não prestaram ao próprio Deus o seu legítimo culto, rendendo
a outros seres que não o mereciam as honras divinas que só a Ele são devidas:
Realmente,
embora tenham conhecido Deus, não o glorificaram como Deus e não lhe deram
graças, mas perderam-se nos seus pensamentos e o seu coração insensato se
obnubilou. Apelidando-se a si próprios de sábios tomaram-se loucos e
substituíram a glória de Deus incorruptível por imagens de homens corruptíveis,
aves, quadrúpedes e répteis.
Alude
neste passo aos romanos, gregos e egípcios que se gloriam com o nome de sábios.
Mais tarde com eles discutiremos acerca deste assunto. Mas se se trata do Deus único,
autor desta universalidade, d’Aquele que, pela sua incorporeidade não só está
acima de todos os corpos, mas também, pela sua incorruptibilidade, está acima
de todas as almas — ele, nosso princípio, nossa luz, nosso bem, — na medida em
que connosco estão de acordo sobre estes pontos preferimo-los aos demais.
Um
cristão pode desconhecer as obras literárias desses filósofos; pode não saber
usar, nas suas discussões, de termos que não aprendeu; pode não saber chamar:
natural com os latinos, ou física, com os gregos, a esta parte da filosofia que
trata do estudo da natureza; racional ou lógica à outra em que se procura a
maneira de atingir a verdade; moral ou ética àquela em que se trata dos
costumes, dos fins bons a atingir, dos fins maus a evitar. Mas o que este
Cristão não ignora é que é do único, verdadeiro e perfeito Deus que recebemos a
natureza, pela qual fomos feitos à sua imagem; doutrina, pela qual o conhecemos
a Ele e nos conhecemos a nós; e a graça, pela qual nos tornamos felizes,
unindo-nos a Ele.
É
esta a razão pela qual os preferimos aos demais — porque, ao passo que os
outros gastaram o seu talento e os seus esforços na busca das causas das
coisas, dos métodos do conhecimento e das regras da vida, estes, uma vez
conhecido Deus, ficaram a saber onde encontrar a causa realizadora do universo,
a luz para descobrir a verdade, a fonte onde se bebe a verdade. Os que estão de
acordo connosco são os que têm semelhante concepção de Deus, quer eles sejam
platónicos, quer eles sejam quaisquer outros filósofos de qualquer nação. Mas
pareceu-nos preferível tratar destas questões com os platónicos porque as suas
obras são mais conhecidas. Realmente os gregos, cuja língua sobressai entre os
povos, fizeram delas os maiores encómios, e os latinos, movidos pela sua
excelência e glória, aprenderam-nas mais gostosamente e traduziram-nas para a
nossa língua, assegurando-lhes assim maior brilho e fama.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i]
Segundo
os estóicos as chamadas noções comuns ou inatas, tais como Bem, Justo, Belo,
têm a sua origem nos sentidos e não em origem diferente dos sentidos. Resultam
tais noções de raciocínios espontâneos a partir da percepção das coisas
concretas. Assim a noção de Bem resulta da comparação, feita pela razão, das
coisas percebidas imediatamente como boas.
[ii] Cícero,
De Finitibus, III, X , 33.
[iv] Rom.,
I, 19 e segs..
[v] Act.
Apost., XVII, 28.
[vii] Rom.,
I, 21 e segs..