Jesus Cristo o Santo de Deus
CAPÍTULO II
JESUS CRISTO, O HOMEM NOVO
A Fé na humanidade de Cristo, hoje
1. Cristo, o «homem
perfeito».
Durante
a vida terrena de Jesus e também depois da Páscoa, ninguém jamais pensou pôr em
dúvida a realidade da humanidade de Cristo, isto é, o facto de que Ele fosse
verdadeiramente um homem como os outros.
Não
conheciam porventura a Sua Mãe, a sua idade, a Sua naturalidade, os familiares
e a Sua profissão?
Aquilo
que Lhe era contestado não era a Sua humanidade, mas a Sua divindade.
A
acusação dos judeus era:
«Tu,
que és homem, fazes-te Deus» [i].
Por
isso quando fala da humanidade de Jesus, o Novo Testamento mostra-se mais
interessado pela santidade que pela verdade ou realidade dessa divindade.
Ainda
não tinha passado um século sobre a morte de Jesus e já essa situação se tinha
alterado radicalmente.
Já
pelas cartas de S. João se vem a saber que havia alguns que negavam que Cristo
tivesse vindo «na carne» [ii].
Uma
das maiores preocupações da Stº Inácio de Antioquia, nas suas cartas, é a de
demonstrar a verdade da humanidade de
Jesus e das acções por Ele efectuadas:
Que
Ele nasceu verdadeiramente, que sofreu e morreu verdadeiramente, e não «somente
em aparência, como dizem alguns sem Deus e sem fé» [iii].
Trata-se,
em suma, da heresia do docetismo que
nega a realidade da encarnação e a verdade do corpo humano de Cristo.
Tertuliano
resume deste modo as várias formas que tal heresia apresentava no seu tempo:
«Marcião,
para poder negar a carne de Cristo, negou também o Seu nascimento.
Valentim
admitiu uma e outra coisa, tanto a carne como o nascimento, mas explicava-os à
sua maneira.
De
facto defendia como pertencente à ordem da aparência (to dokein), e não da realidade, não só a Sua carne como a Sua
própria concepção, a gestação, o ter nascido da Virgem e tudo o resto» [iv]
«Devemos,
portanto – concluía – ocupar-nos com a humanidade do Senhor, já que a Sua
divindade não sofre contestação.
É
a Sua humanidade que é posta em causa, bem como a sua verdade e qualidade».
Trata-se,
para este autor, de um facto tão vital para a fé, que exclamava assim para um
herético:
«Poupa
aquela que é a única esperança para todo o mundo (Parce unicae spei totius orbis).
Porque
queres tu destruir o necessário escândalo da fé?
Aquilo
que julgas “indigni” de Deus, é para
mim a salvação» [v].
No
Novo Testamento, as atenções estavam todas voltadas para a novidade da humanidade de Cristo (para Cristo homem «novo» e «novo»
Adão); agora, estão todas voltadas para a verdade,
ou consistência ontológica, dessa humanidade.
A
afirmação mais comum, neste novo contexto, é que Jesus foi um «homem perfeito»
(teleios anthroppos), entendendo-se
«perfeito» não no sentido moral de «santo», de «sem pecado» [vi] mas sim no sentido metafísico de «completo» de realmente
existente.
O
que é que provocou, em tão breve espaço de tempo, uma tal alteração de
perspectiva?
Foi
simplesmente o facto de que a fé cristã já então se defrontava com novos
horizontes culturais e teve de fazer frente aos desafios próprios dessa nova
cultura, que era a cultura helénica.
De
facto, eram muitos os factores que contribuíam para tornar inaceitável, nessa
nova cultura, o anúncio de Deus vindo ao mundo de forma carnal.
Antes
de mais, um factor teológico:
Como
podia Deus, que é imutável e impassível, submeter-se a um nascimento, a um
crescimento e sobretudo ao sofrimento da cruz?
Um
factor cosmológico:
A
matéria é o reino de um Deus inferior (o Demiurgo) e é incapaz de conseguir a
salvação; como se podia então atribuir a Deus um corpo material?
Um
factor antropológico:
É
a alma que constitui o homem verdadeiro, que é de natureza celeste e divina; o
corpo (soma) é mais o túmulo (sema) que o companheiro da alma; porque
razão o Salvador, que veio libertar a alma prisioneira da matéria, deveria Ele
próprio sepultar-se num corpo?
E
por fim, um factor cristológico:
Como
podia Cristo ser o «homem sem pecado» se Ele teve contactos com a matéria que é
má em si mesma?
Como
poderia pertencer ao mundo de Deus se pertence ao mundo sensível o qual é
incompatível com aquele? [vii]
A
Igreja teve de conquistar, se assim se pode dizer, palmo a palmo, a sua fé na
humanidade de Cristo.
Uma
conquista que só se concluiu no século VII, na luta contra a heresia
monotelita, conquistou a certeza da existência, em Cristo, também de uma
vontade e liberdade humanas.
Cristo,
portanto, teve um corpo e este corpo era dotado de uma alma e esta alma era
livre!
Ele
foi, por isso, verdadeiramente (em tudo semelhante a nós».
Todas
estas conquistas, excepto a última, que foi obtida mais tarde, entraram na definição
dogmática de Calcedónia, onde se lê que Cristo é «perfeito na divindade e
perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, resultante de uma
alma racional e de um corpo, consubstancial ao Pai quanto è divindade e
consubstancial aos homens quanto à humanidade, feito em tudo semelhante a nós,
excepto no pecado» [viii].
Assim
se formou o dogma de Cristo «verdadeiro homem», que permaneceu operante e
inalterável até aos nossos dias.
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
[iii] Stº Inácio de Antioquia, Ad. Trall., 9-10
[iv] Tertuliano, De carne Christi, 1,2ss. (CC 2,873).
[v] Tertuliano, De carne Christi, 5,3. (CC 2,8881).
[vii] Fr. J. Davies, «The origins of docetism», im Studia
Patristíca, VI (TuV, 87, Berlim, 1962, p. 13-15.
[viii] Denzinger-Schönmetzer, Enchiridon Symbolorum, Herder, 1967, n.
391.