07/01/2018

Leitura espiritual

Jesus Cristo o Santo de Deus

CAPÍTULO II

JESUS CRISTO, O HOMEM NOVO

A Fé na humanidade de Cristo, hoje

1.   Cristo, o «homem perfeito».

Durante a vida terrena de Jesus e também depois da Páscoa, ninguém jamais pensou pôr em dúvida a realidade da humanidade de Cristo, isto é, o facto de que Ele fosse verdadeiramente um homem como os outros.
Não conheciam porventura a Sua Mãe, a sua idade, a Sua naturalidade, os familiares e a Sua profissão?
Aquilo que Lhe era contestado não era a Sua humanidade, mas a Sua divindade.
A acusação dos judeus era:
«Tu, que és homem, fazes-te Deus» [i].
Por isso quando fala da humanidade de Jesus, o Novo Testamento mostra-se mais interessado pela santidade que pela verdade ou realidade dessa divindade.

Ainda não tinha passado um século sobre a morte de Jesus e já essa situação se tinha alterado radicalmente.
Já pelas cartas de S. João se vem a saber que havia alguns que negavam que Cristo tivesse vindo «na carne» [ii].
Uma das maiores preocupações da Stº Inácio de Antioquia, nas suas cartas, é a de demonstrar a verdade da humanidade de Jesus e das acções por Ele efectuadas:
Que Ele nasceu verdadeiramente, que sofreu e morreu verdadeiramente, e não «somente em aparência, como dizem alguns sem Deus e sem fé» [iii].

Trata-se, em suma, da heresia do docetismo que nega a realidade da encarnação e a verdade do corpo humano de Cristo.

Tertuliano resume deste modo as várias formas que tal heresia apresentava no seu tempo:
«Marcião, para poder negar a carne de Cristo, negou também o Seu nascimento.
Valentim admitiu uma e outra coisa, tanto a carne como o nascimento, mas explicava-os à sua maneira.
De facto defendia como pertencente à ordem da aparência (to dokein), e não da realidade, não só a Sua carne como a Sua própria concepção, a gestação, o ter nascido da Virgem e tudo o resto» [iv]
«Devemos, portanto – concluía – ocupar-nos com a humanidade do Senhor, já que a Sua divindade não sofre contestação.
É a Sua humanidade que é posta em causa, bem como a sua verdade e qualidade».
Trata-se, para este autor, de um facto tão vital para a fé, que exclamava assim para um herético:
«Poupa aquela que é a única esperança para todo o mundo (Parce unicae spei totius orbis).
Porque queres tu destruir o necessário escândalo da fé?
Aquilo que julgas “indigni” de Deus, é para mim a salvação» [v].

No Novo Testamento, as atenções estavam todas voltadas para a novidade da humanidade de Cristo (para Cristo homem «novo» e «novo» Adão); agora, estão todas voltadas para a verdade, ou consistência ontológica, dessa humanidade.
A afirmação mais comum, neste novo contexto, é que Jesus foi um «homem perfeito» (teleios anthroppos), entendendo-se «perfeito» não no sentido moral de «santo», de «sem pecado» [vi] mas sim no sentido metafísico de «completo» de realmente existente.

O que é que provocou, em tão breve espaço de tempo, uma tal alteração de perspectiva?
Foi simplesmente o facto de que a fé cristã já então se defrontava com novos horizontes culturais e teve de fazer frente aos desafios próprios dessa nova cultura, que era a cultura helénica.
De facto, eram muitos os factores que contribuíam para tornar inaceitável, nessa nova cultura, o anúncio de Deus vindo ao mundo de forma carnal.
Antes de mais, um factor teológico:
Como podia Deus, que é imutável e impassível, submeter-se a um nascimento, a um crescimento e sobretudo ao sofrimento da cruz?
Um factor cosmológico:
A matéria é o reino de um Deus inferior (o Demiurgo) e é incapaz de conseguir a salvação; como se podia então atribuir a Deus um corpo material?
Um factor antropológico:
É a alma que constitui o homem verdadeiro, que é de natureza celeste e divina; o corpo (soma) é mais o túmulo (sema) que o companheiro da alma; porque razão o Salvador, que veio libertar a alma prisioneira da matéria, deveria Ele próprio sepultar-se num corpo?
E por fim, um factor cristológico:
Como podia Cristo ser o «homem sem pecado» se Ele teve contactos com a matéria que é má em si mesma?
Como poderia pertencer ao mundo de Deus se pertence ao mundo sensível o qual é incompatível com aquele? [vii]

A Igreja teve de conquistar, se assim se pode dizer, palmo a palmo, a sua fé na humanidade de Cristo.
Uma conquista que só se concluiu no século VII, na luta contra a heresia monotelita, conquistou a certeza da existência, em Cristo, também de uma vontade e liberdade humanas.
Cristo, portanto, teve um corpo e este corpo era dotado de uma alma e esta alma era livre!
Ele foi, por isso, verdadeiramente (em tudo semelhante a nós».

Todas estas conquistas, excepto a última, que foi obtida mais tarde, entraram na definição dogmática de Calcedónia, onde se lê que Cristo é «perfeito na divindade e perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, resultante de uma alma racional e de um corpo, consubstancial ao Pai quanto è divindade e consubstancial aos homens quanto à humanidade, feito em tudo semelhante a nós, excepto no pecado» [viii].

Assim se formou o dogma de Cristo «verdadeiro homem», que permaneceu operante e inalterável até aos nossos dias.

(cont)

rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.





[i] Jo 10,33.
[ii] 1Jo 4,2-3; 2Jo 7.
[iii] Stº Inácio de Antioquia, Ad. Trall., 9-10
[iv] Tertuliano, De carne Christi, 1,2ss. (CC 2,873).
[v] Tertuliano, De carne Christi, 5,3. (CC 2,8881).
[vi] Ef 4,13.
[vii] Fr. J. Davies, «The origins of docetism», im Studia Patristíca, VI (TuV, 87, Berlim, 1962, p. 13-15.
[viii] Denzinger-Schönmetzer, Enchiridon Symbolorum, Herder, 1967, n. 391.

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