A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIV
CAPÍTULO XIV
A soberba do transgressor foi mais grave do que a transgressão.
Mas pior e mais condenável é a soberba que até nos pecados manifestos procura a
escapatória duma justificação. Foi assim que procederam os primeiros homens,
dos quais a mulher disse:
serpente enganou-me e eu comi.[i]
e o homem disse:
A mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e
eu comi.[ii]
Em momento nenhum se ouve aqui um pedido de perdão, em momento nenhum se ouve
uma solicitação de remédio. Embora não neguem como Caim o que cometeram,
todavia, a soberba procura lançar sobre o outro o mal que fez — sobre a
serpente a soberba da mulher, sobre a mulher a soberba do homem. Mas a
justificação é antes uma acusação quando é manifesta a violação do mandamento
divino. Nem deixaram de a cometer — a mulher porque a cometeu enganada pela serpente
e o homem por a mulher lho pedir, como se se devesse preferir fosse o que fosse
a Deus em quem se deve crer, a quem se deve obedecer.
CAPÍTULO XV
Justiça da sanção infligida aos primeiros homens devido à sua desobediência.
Deus legislador — que o tinha criado, que o tinha feito à sua imagem, que o
tinha posto a presidir a todos os restantes seres animados, que o tinha colocado
no Paraíso, que o tinha cumulado de saúde e de todos os bens, que não o tinha
sobrecarregado com preceitos numerosos, pesados ou difíceis mas apenas com um
tão simples e tão breve para garantir uma salutar obediência (com o qual
lembrava a esta criatura — de quem mais não esperava que um serviço livre — que
Ele é que era o Senhor) — este Deus foi desprezado pelo homem. A consequência
foi uma justa condenação. E essa condenação foi tal que o homem, — que mesmo na sua carne seria espiritual caso guardasse o mandamento — tornou
carnal o próprio espírito e ele, que, devido à sua soberba, em si mesmo tinha
posto as suas complacências, a si mesmo foi entregue pela justiça de Deus. Em
vez, porém, de se tornar senhor de si próprio e de adquirir a liberdade que
desejava, entrou em discórdia consigo mesmo e sofreu uma dura e miserável servidão
às ordens daquele a quem, ao pecar, obedecera. De livre vontade morreu no seu
espírito — contra vontade morreu no seu corpo. Desertou da vida eterna e foi
condenado à morte eterna — a não ser que desta seja libertado pela graça.
Se alguém considera excessiva ou injusta esta condenação, com certeza que não
sabe apreciar quão grande fora a iniquidade ao pecar quando tão grande era a
facilidade de não pecar. Assim com o com justiça se proclama a grande
obediência de Abraão, porque era tão difícil a ordem de matar o filho — assim a
desobediência no Paraíso foi tanto maior quanto menor era a dificuldade em obedecer.
E assim como a obediência do segundo Adão foi tanto mais admirável porque se
fez obediente até à morte — assim a desobediência do primeiro Adão foi tanto
mais detestável porque se fez desobediente até à morte. Quando a pena decretada
para a desobediência era grande e fácil a ordem do Criador — quem poderá
descrever suficientemente a gravidade do mal que houve ao desobedecer numa
coisa tão fácil a uma ordem de uma tão grande potestade e sob a ameaça de
tamanho castigo?
Enfim e para o dizer em poucas palavras — que pena foi imposta neste pecado à
desobediência senão a desobediência? Realmente, que mais é a miséria do homem
do que desobediência dele próprio a ele próprio? Porque ele não quis o que
podia, já não pode o que quer. Claro que no Paraíso nem tudo podia antes do
pecado, mas o que não podia não queria: podia, portanto, tudo o que queria. Agora,
porém, como vemos nos seus descendentes
o homem tomou-se semelhante ao vazio,[iii]
como o testemunha a Sagrada Escritura. Quem poderá, efectivamente, enumerar
tudo o que ele quer e não pode, ao desobedecer a si próprio, à sua vontade, à
sua própria alma e até à sua própria carne que lhe é inferior? Na verdade, é
contra vontade que muitas vezes o espírito se perturba, a carne dói, envelhece e morre. Sofremos tantas coisas que não
seríamos forçados a sofrer se a nossa natureza obedecesse à nossa vontade de
todas as formas e em todas as suas partes. Também a carne sofre de algo que a não
deixa obedecer. Que interessa saber porque é que a nossa carne (que nos fora
submissa por mercê da justiça de Deus Soberano a quem não quisemos servir como
súbditos) se nos torna molesta quando nos não obedece, se nós, quando não
obedecemos a Deus, é a nós e não a Deus que nos tornamos molestos? Deus não
necessita do nosso serviço como nós necessitamos do serviço do corpo. Por isso '
castigo nosso o que recebemos e não castigo d’Ele o que fazemos.
Quanto às dores que se dizem da carne, são elas da alma que as sente na carne e
procedem da carne. Na verdade, que é que pode sofrer ou desejar a carne por si
só, sem a alma? O que se diz desejar ou sofrer a carne — é o próprio homem,
como já expusemos, ou algo da alma que recebe da carne uma impressão penosa
(dela lhe provém o sofrimento), ou agradável (dela nascendo o prazer). Mas a dor da carne mais não
é que um a repugnância da alma proveniente da carne, uma espécie de
discordância com a paixão corporal — como a dor da alma chamada tristeza é uma
discordância com o que nos acontece contra vontade. Mas a tristeza é, na maior
parte das vezes, precedida pelo medo que, também ele, está na alma e não na carne, ao passo que a dor da carne
jamais é precedida por medo algum da carne, que o corpo experimentaria antes da
dor.
O prazer, porém, é precedido de uma certa apetência sentida na carne como
desejo seu — tais como a fome, a sede e isso a que, nos órgãos genitais,
geralmente se chama libido, embora este seja o nome genérico de todo o desejo.
Na verdade, conforme os antigos a definiram, a cólera mais não é que um desejo (libido) de vingança — embora, por vezes, sem se experimentar o menor sentimento de vingança, o homem
se irrite contra objectos inanimados: irritado atira com o estilete ou quebra a
pena porque escreveu mal. Esta cólera tão disparatada é uma espécie de desejo (libido)
de vingança e, nem sei como hei-de dizer, como que um a sombra de retribuição:
que sofra o mal quem o mal pratica. Há, portanto, um desejo (libido) e vingança a que se chama ira, um desejo de ter dinheiro que se chama avareza,
um desejo de vencer de qualquer maneira que se chama obstinação, um desejo de
glória a que se chama jactância. São muitos e variados os desejos (libidines)
— alguns deles têm nome próprio, outros não. Quem é que, na verdade, poderá
facilmente dizer que nome tem o desejo de dominar que as guerras civis
testemunham ter tamanho valor na alma dos tiranos?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)