03/03/2017

Leitura espiritual

Civita Dei
A CIDADE DE DEUS

Vol. 1

LIVRO VIII

CAPÍTULO XXV

O que pode haver de comum nos santos anjos e nos homens.

De forma nenhuma se deve, portanto, procurar a benevolência e a beneficência dos deuses bons, ou melhor, dos anjos bons, pela pretensa mediação dos demónios, mas pela imitação da boa vontade dos anjos, pela qual estamos com eles, com eles vivemos e com eles adoramos o Deus que eles adoram, embora não os possamos ver com os nossos olhos carnais.

É na medida em que a dissemelhança da nossa vontade e a fragilidade da nossa débil natureza nos torna miseráveis que nós deles estamos afastados, não pelo lugar do corpo mas pelo mérito da vida. O que nos impede de nos unirmos a eles não é o facto de habitarmos na terra numa condição carnal, é o gosto do nosso coração impuro pelos bens terrenos. Quando sararmos para sermos tais quais eles são, então aproximar-nos-emos deles pela fé, se acreditarmos que pela sua assistência, Aquele que fez a felicidade deles fará a nossa.

CAPÍTULO XXVI

Toda a religião dos pagãos se reduz ao culto dos homens mortos.

Bom é que se preste a devida atenção à maneira como o dito egípcio se exprime quando se lamenta por estar a chegar o tempo em que do Egipto desaparecerão estas instituições, obras, como ele confessa, de homens perdidos nos seus graves erros, incrédulos e cheios de aversão pelo culto da religião divina. Entre outras coisas diz ele:

Então esta terra, santíssima sede de santuários e de templos, ficará toda cheia de sepulcros e de mortos [i],
como se, caso não desaparecesse aquele culto, os homens não tivessem que morrer ou tivessem que ser sepultados em lugar diferente da terra. Com certeza que, à medida que forem passando os tempos e os dias, irá aumentando também o número dos sepulcros porque irá aumentando o número dos mortos.

Mas o que parece entristecê-lo é que aos templos e aos santuários dos ídolos iriam suceder os monumentos dos nossos mártires, de maneira que, ao lerem isto os que são animados duma mentalidade oposta e hostil à nossa, pensarão que adoramos os mortos nos túmulos como os pagãos adoravam os deuses nos templos. A cegueira dos ímpios é tão grande que, a bem dizer, chegam a chocar contra as montanhas, recusando-se a ver o que salta aos olhos. Não reparam que em todos os escritos pagãos não se encontram, ou dificilmente se encontram, deuses que não tenham sido homens que, uma vez falecidos, se tomaram objecto de honras divinas. Ponho de parte a afirmação de Varrão, ou seja: que todos os mortos são por eles considerados deuses — os deuses manes. Prova-o com os ritos sagrados oferecidos a quase todos os mortos, nomeadamente com os jogos fúnebres, sinal máximo, para ele, da sua divindade, pois estes jogos são ordinariamente reservados aos deuses.

O próprio Hermes, de quem agora se trata, no mesmo livro em que parece prever o futuro, exclama pesaroso:

Então esta terra, santíssima de santuários e de templos, ficará toda cheia de sepulcros e de mortos [ii],
testemunhando assim que os deuses do Egipto mais não são que homens mortos. Com efeito, depois de ter declarado que os seus antepassados cometeram graves erros acerca da noção dos deuses e, incrédulos, sem consideração pelo culto e pela religião divina, inventaram a arte de fabricar deuses, acrescenta:

A esta inventada arte, juntaram uma virtude apropriada tirada da natureza do mundo; misturaram-na com aquela mas, como não podiam fazer almas, evocaram almas de demónios ou de anjos, infundindo-as nas imagens santas e nos mistérios divinos para que, mercê dessas almas, os ídolos tivessem o poder de praticar o bem e o mal [iii].

Continua a seguir, como que a querer provar isto com exemplos:

Teu avô, ó Asclépio, foi o primeiro inventor da medicina. Dedicaram-lhe um templo no monte da Líbia, perto da Praia dos Crocodilos. E lá que repousa o homem que ele foi, isto é, o seu corpo. Porém o resto dele, ou antes ele todo — se é que o homem todo está no sentimento da vida — , voltou ao Céu numa condição melhor, e agora, com a sua divindade, presta aos homens enfermos os socorros que costumava prestar com a arte da medicina [iv].
Ei-lo pois a afirmar que um morto é adorado como um deus no próprio lugar onde tinha a sua sepultura. Mas engana-se e engana-nos ao dizer que ele voltou ao Céu. Acrescenta ainda o seguinte:

Hermes, o avô de quem eu tenho o nome, não assiste e não cura, na cidade em que habita (a) e que traz o seu nome, todos os mortais que de toda a parte até ele acorrem [v].
Realmente Hermes «o antigo», ou seja, Mercúrio, que ele afirma ser seu avô, reside, ao que se diz, em Hermópolis, cidade que dele tirou o nome. Aí estão, pois, dois deuses — Esculápio e Mercúrio — que, na sua opinião, foram homens. Acerca de Esculápio, gregos e latinos pensam o mesmo. Quanto a Mercúrio muitos pensam que ele não foi um mortal, embora o nosso Hermes afirme que ele foi seu avô. Mas na realidade este é um e aquele é outro, embora tenham o mesmo nome. Não insisto se um é distinto do outro. O certo é que este, como Esculápio, de homem se tornou deus, segundo o testemunho de seu neto Trismegisto, varão de tão grande autoridade entre os seus.

Acrescenta ainda:

Quanto a ísis, esposa de Osíris, sabemos quanto de bem ela fa z se está propícia, e quanto pode prejudicar se está irada [vi].
Depois, para mostrar que são deste género os deuses feitos pelos homens com a dita arte (dá assim a entender que os demónios, na sua opinião, provêm de almas de mortos que foram encerradas em estátuas, mercê da dita arte inventada por homens presos a graves erros, incrédulos e irreligiosos — pois esses que tais deuses faziam, almas é que não podiam fazer), depois de ter dito acerca de ísis o que já referi:

Quanto ela pode prejudicar se está irada6, acrescenta logo a seguir: Na verdade os deuses da terra e do mundo facilmente se irritam, pois são formados e compostos pelos homens de uma dupla natureza [vii].
Diz ele ex utraque natura (duma dupla natureza), ou seja, de alma e corpo, sendo a alma o demónio, e o corpo o ídolo. E prossegue:

Daí resulta que os ídolos são chamados pelos egípcios «santos animais» e que as diversas cidades honram as almas daqueles que foram divinizados em vida, chegando a viver sob as suas leis e a tomar o seu nome [viii].

Onde estão as fúnebres lamentações de Hermes pela terra do Egipto, sede santíssima de santuários e de templos que um dia ficará toda cheia de sepulcros e de mortos? Realmente, o espírito falacioso, que a Hermes inspirava estas lamentações, foi obrigado a confessar, por seu intermédio, que esta terra estava já repleta de sepulcros e de mortos adorados pelos egípcios como deuses. Mas, por seu intermédio, era a dor dos demónios que se expressava: lamentavam estes a eminência das suas penas junto das «memórias» dos santos mártires. E que será em muitos destes sítios que eles sofrerão torturas, farão confissões e serão expulsos dos corpos dos possessos.

CAPÍTULO XXVII

Maneira de os cristãos honrarem os mártires.

E, todavia, nós não instituímos para estes mesmos mártires nem templos, nem sacerdócio, nem ritos sagrados, nem sacrifícios porque, para nós, eles não são deuses: o Deus deles é o nosso Deus. E certo que veneramos as suas «memórias» como santos homens de Deus, que até à morte combateram pela verdade para fazerem conhecer a verdadeira religião, provando a falsidade, a mentira do paganismo. Se antes deles homens houve que partilharam de tais sentimentos, por medo esses homens tais sentimentos reprimiam.

Quem dentre os fiéis já alguma vez ouviu um sacerdote, de pé, diante do altar, mesmo diante de um altar construído para a glória e o culto de Deus sobre o corpo de um santo mártir, dizer nas suas orações: «ofereço-te este sacrifício ó Pedro, ó Paulo, ó Cipriano» pois é diante das suas «memórias» que o sacrifício é oferecido ao Deus que fez os homens e os mártires, associando-os aos seus santos anjos na glória celeste? É também nessa solenidade que nós rendemos graças ao verdadeiro Deus pela sua vitória e nos exortamos pela renovação da sua memória a partilharmos das suas coroas e das suas palmas \ invocando a protecção de Deus.

Todas as homenagens trazidas pelos fiéis aos túmulos dos mártires são, portanto, testemunhos prestados à sua memória — não são ritos nem sacrifícios oferecidos aos mortos como se deuses fossem.

Alguns transportam para lá mesmo alimentos — o que não fazem os melhores cristãos e, na maior parte das terras não há esse costume. Aliás, os que o fazem, depois de colocarem os alimentos sobre o túmulo e de recitarem as suas orações, levam-nos para os comerem ou mesmo para os distribuírem pelos indigentes, desejando apenas santificá-los pelos méritos dos mártires em nome do Senhor dos mártires. Mas quem conhece o único sacrifício dos cristãos que também lá é oferecido, sabe que não se trata de sacrifícios oferecidos aos mártires.

Nós não veneramos os nossos mártires nem com honras divinas nem com crimes humanos como fazem os pagãos com os seus deuses. Nós não lhes oferecemos sacrifícios nem transformamos as torpezas em cerimónias sagradas. Pelo contrário, acerca de ísis, esposa de Osíris, deusa do Egipto, e acerca dos seus antepassados que, segundo consta das suas escrituras, foram todos reis (esta Isis quando oferecia um sacrifício aos seus antepassados encontrou um feixe de cevada e apresentou as espigas ao rei, seu marido, e a Mercúrio, conselheiro deste rei — donde pretenderem que ela e Ceres são a mesma), acerca de Isis e dos seus antepassados leiam os que quiserem e puderem, e nisso meditem os que já leram, quantas e quão grandes são as maldades destes (contadas não por poetas, mas constantes dos seus livros religiosos) que Alexandre relatou por escrito a sua mãe Olimpíada de acordo com as revelações do sacerdote Leão — e verão a favor de que homens, depois de mortos, e de que factos foi instituído culto como se deuses fossem!

Não ousem comparar, seja no que for, tais deuses, mesmo que os tomem por deuses, aos nossos santos mártires que, mesmo assim, não tomamos por deuses. Nós não instituímos sacerdotes em sua honra, nós não lhes oferecemos sacrifícios — o que seria inconveniente, abusivo, ilícito, pois só a Deus estão reservados. Nem nos divertimos com os seus crimes nem com esses jogos torpes com que celebram as infâmias dos seus deuses — quer eles as tenham cometido quando eram homens, quer as tenham inventado, se as não cometeram, para agrado dos maléficos demónios. Não foi a um demónio deste género que Sócrates teve como Deus, se é que algum teve! Mas com certeza, querendo sobressair nessa arte, foram eles que proporcionaram um deus semelhante a um homem inocente e alheio àquela arte de fabricar deuses.

Para quê mais? Ninguém duvida, por muito pouco esperto que seja, de que estes espíritos não devem ser venerados, tendo em mira a vida bem-aventurada que virá depois da morte. Mas dirão talvez: todos os deuses são bons, mas, quanto aos demónios, uns são bons outros são maus. Aos considerados bons é que se deve prestar culto para se chegar à vida eternamente feliz.

No próximo livro veremos quanto vale esta opinião

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Asclepius, XXVIV , ed. Festugière-Nock, p. 327.
[ii] Id. Ib., XXXVII, p. 348.
[iii] Id. Ib., XXXVIII, p. 347-348.
[iv] Id. Ib., XXVII, p. 347.
[v] Id. Ib., XXXVIII, p. 347-348.
[vi] Id. Ib., XXVII, p. 346.
[vii] Asclepius, XXXVII, ed. cit. p. 348.
[viii] Id. Ib., p. 348.

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