05/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XIII

CAPÍTULO IV

Porque é que os que são absolvidos dos seus pecados pela graça da regeneração, não são libertados da morte que é a pena do pecado?

Se porventura alguém perguntar porque é que essa primeira morte, se ela é a pena do pecado, há-de ferir aqueles cujo pecado foi abolido pela graça, poderei responder com o na minha obra De baptismo parvulorum (sobre o baptismo das crianças) onde esta questão já foi tratada e resolvida. Esta experiência da separação da alma e do corpo, diz-se aí, é mantida depois da supressão dos laços do pecado porque, se a imortalidade corporal se seguisse imediatamente ao sacramento da regeneração, a fé ficaria debilitada: é que não há fé senão quando se aguarda na esperança o que na realidade ainda se não vê. Foi com o vigor e o esforço da fé que, pelo menos em épocas passadas, se teve de vencer o medo da própria morte — o que se nota principalmente nos santos mártires. Para eles não teria havido nem vitória nem glória em com bater (porque todo o com bate lhes seria impossível) se, tornados santos pelo banho da regeneração, ficassem doravante incapazes de morrer. Quem não correria com as crianças para a graça do baptismo de Cristo com a intenção sobretudo de escapar à morte? Assim a fé já não se sujeitaria à prova da expectativa duma recompensa invisível. Já não haveria mesmo fé ao buscar-se e receber-se imediatamente a recompensa do acto.


Agora, porém, a pena do pecado converteu-se, por uma graça maior e mais maravilhosa do Salvador, em obra de justiça. Foi dito outrora ao homem:

Se pecares, morrerás,
[i]

— agora, diz-se ao mártir: «morre para que não peques».

Outrora foi dito:

Se transgredirdes os meus mandamentos, morrereis,
[ii]

— agora diz-se: «se recusardes a morte, transgredireis os meus mandamentos». O que então havia que temer para não pecar, deve agora aceitar-se por medo de pecar. E assim, graças à inefável misericórdia de Deus, a própria pena dos vícios se transforma em arma de virtude e o suplício do pecador se converte em recompensa do justo. Outrora mereceu-se a morte, pecando — agora cumpre-se a justiça, morrendo. Isto verifica-se nos santos mártires a quem o perseguidor propõe a alternativa: ou renegar a fé ou suportar a morte. Mas os justos preferem sofrer pela fé o que os primeiros pecadores sofreram por não terem acreditado. Estes não morreriam se não tivessem pecado

— aqueles pecarão se não morrerem. Portanto, estes morrem porque pecaram

— aqueles não pecam porque morrem. Por culpa destes se chegou à pena — por pena daqueles se evita a culpa. Não é que a  morte se tenha convertido num bem que antes fora um mal — mas Deus concedeu à fé uma graça tamanha que, por ela, a morte, que é o contrário da vida, tornou-se num meio de passar à vida.

CAPÍTULO V

Assim como os iníquos fazem mau uso da lei que é boa, assim os justos fazem bom uso da morte que é má.

O Apóstolo, ao pretender mostrar quão nocivo é o pecado sem a ajuda da graça, não hesitou em apresentar a própria lei, pela qual o pecado é proibido, com o a força do pecado. Diz ele:

0 pecado é o aguilhão da morte; mas a força do pecado
é a lei.
[iii]

Pura verdade! De facto, a proibição aviva o desejo dum acto ilícito quando se não ama suficientemente a justiça para lhe encontrar um encanto que vença o desejo de pecar. Mas, para chegar a ser amada e a deleitar, a verdadeira justiça precisa da graça divina. E, para que se não tome a lei com o um mal por ter sido chamada «força do pecado», o Apóstolo, voltando à questão noutra passagem, diz:

Assim a lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom. Então o que é bom tomou-se morte para mim? De maneira nenhuma! Mas o pecado, para mostrar que era pecado, por meio do que era bom produziu em mim a morte e assim o pecado tomou-se pecaminoso acima da medida por meio do mandamento.[iv]

Disse acima da medida (super modum) porque a prevaricação aumenta quando, acrescentando o desejo de pecar, se despreza a própria lei. Porque é que julgámos que devíamos isto rememorar? Porque assim como a lei não é um mal quando aumenta o desejo dos que pecam, assim também a morte não é um bem quando aumenta a glória dos que sofrem. Assim com o a lei, quando é posta de lado pela iniquidade, faz prevaricadores — assim também a morte, quando se aceita pela verdade, faz mártires. Por isso é que a lei é efectivamente boa, porque é a proibição do pecado — e a morte é má porque é o salário do pecado. Mas assim com o a injustiça usa mal, não apenas dos males, mas também dos bens, — da mesma forma a justiça usa bem, não só dos bens, mas também dos males. Daí resulta que os maus usam mal da lei, embora ela seja boa — e que os bons morrem bem, embora a morte seja um mal.


CAPÍTULO VI

Do mal geral da morte pelo qual se desfaz a união da alma e do corpo.

No que respeita à morte corporal, isto é, à separação da alma do corpo, quando a sofrem aqueles a quem chamamos moribundos, para ninguém é boa. A própria força que separa o que estava unido e ligado no ser vivo, produz nele, enquanto a sua acção perdura, um sentimento de repulsa e contra a natureza até que se extinga a sensibilidade que resultava precisam ente da união da carne e da alma. Por vezes um único choque do corpo ou um rapto da alma vem interromper todo este sofrimento, impedindo de o sentir a rapidez. Mas, seja o que for o que nos moribundos faz desaparecer a sensibilidade, se isso for piedosa e santamente suportado, aumentará o mérito da paciência, mas não perde o nome de pena. Se a morte, que desde o primeiro homem, sem interrupção, se propaga, é indubitavelmente uma pena para aquele que nasce, desde que suportada em nome da piedade e da justiça toma-se glória para o que renasce. E essa morte, retribuição do pecado, obtém por vezes a remissão total da sua dívida.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Gen., II, 17.
[ii] Ibid.
[iii] I Corint., XV, 56.
[iv] Rom., VII, 12-13.

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