12/04/2016

Evangelho, comentário, L. espiritual


Páscoa

Evangelho: Jo 6, 30-35

30 Mas eles disseram-Lhe: «Que milagre fazes Tu, para que o vejamos e acreditemos em Ti? Que fazes Tu? 31 Nossos pais comeram o maná no deserto, segundo está escrito: “Deu-lhes a comer o pão do céu”». 32 Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: Moisés não vos deu o pão do céu, mas Meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do céu. 33 Porque o Pão de Deus é Aquele que desceu do céu e dá a vida ao mundo». 34 Então disseram-Lhe: «Senhor, dá-nos sempre desse pão». 35 Jesus respondeu-lhes: «Eu sou o pão da vida; aquele que vem a Mim não terá jamais fome, e aquele que crê em Mim não terá jamais sede.

Comentário:

«O Pão da Vida»!

Que extraordinário alimento, concreto, verdadeiro, sublime.

Porque alimenta de facto a nossa vida interior!
Porque é a própria Verdade!
Porque não existe outro que se lhe compare!

Sem ele não vivemos, sem o receber não nos convertemos, ainda que por breves momentos, no próprio Jesus Cristo que Se nos oferece.


(ama, comentário sobre Jo 6, 30-35, 2015.04.21)


Leitura espiritual



SANTO AGOSTINHO – CONFISSÕES

LIVRO DÉCIMO

CAPÍTULO XVI

A memória do esquecimento

E quando falo do esquecimento, e reconheço do que falo, como poderia eu reconhecê-lo se dele não me lembrasse? Não falo do som da palavra, mas da realidade que ela exprime. Se eu a tivesse esquecido, não seria capaz de reconhecer o significado de tal som. Por isso, quando me lembro da memória é por ela própria que se me apresenta; mas quando me lembro do esquecimento, este e a memória estão presentes simultaneamente: a memória, com que me recordo, e o esquecimento, de que me recordo.


Mas, que é o esquecimento, senão falta de memória? E como pode ele estar presente na minha lembrança. Se a sua lembrança significa não lembrar? Mas se nos lembramos, o que guardamos na memória, e se nos é impossível reconhecer o que significa a palavra esquecimento, quando a ouvimos, a não ser que dele nos lembremos, logo a memória é a que retém o esquecimento. Ele está na memória, pois de contrário, nós o esqueceríamos; mas, ele presente, nós esquecemo-nos. Segue-se que ele não está presente na memória por si mesmo, quando nos lembramos dele, mas pela sua imagem. De contrário, o esquecimento não faria com que nos lembrássemos, mas com que nos esquecêssemos. Mas, enfim, quem poderá descobrir, quem poderá compreender o modo como isto se realiza?

Mas, Senhor, esgota-me esta busca e é, portanto, sobre mim mesmo que me canso; tornei-me para mim mesmo uma terra de dificuldades e árduos labores. Por que não exploro agora as regiões do firmamento, nem meço as distâncias dos astros, nem busco as leis do equilíbrio da terra. Sou eu que me lembro, eu, o meu espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim quanto o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que eu próprio? No entanto, é-me impossível compreender a natureza da minha memória, sem a qual nem poderia pronunciar meu próprio nome.

Que direi então, desde que tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diria talvez que não está na minha memória o que recordo? Ou talvez direi que o esquecimento está na minha memória, para que não o esqueça? Ambas as hipóteses são grandes absurdos. Vejamos uma terceira hipótese: poderei eu afirmar que a minha memória retém a imagem do esquecimento, e não o esquecimento em si, quando dele me lembro? Com que fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para que se grave na memória a imagem de um objecto, é necessário que este esteja presente antes, de onde emana a imagem a ser gravada? É assim que me lembro de Cartago, e assim de todos os outros lugares por onde passei; assim me lembro do rosto dos homens que vi e das coisas que os meus sentidos me deram a conhecer; assim me lembro ainda da dor física, coisas cujas imagens a memória fixou quando estavam presentes, para que eu as pudesse contemplar e repassar em espírito, quando eu as evocasse na sua ausência.

Se, pois, é a imagem do esquecimento que está na memória, e não ele próprio, é evidente que nalgum momento esteve presente para que a sua imagem fosse fixada. Mas, se estava presente, como podia gravar na memória a sua imagem, se o esquecimento apaga com a sua presença tudo o que lá está impresso? Contudo, seja qual for o mecanismo desse fenómeno, e por mais incompreensível e inexplicável que seja, estou certo de que me lembro do esquecimento, que apaga da memória, todas as nossas lembranças.

CAPÍTULO XVII

Deus e a memória

Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, na sua complexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me na minha memória, nos seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afectos da alma, que a memória conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na memória esteja também no espírito. Percorro em todas as direcções este mundo interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem lhe encontrar os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal!

Que hei-de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se chama memória? Ultrapassá-la-ei para chegar a ti, doce luz? Que dizes?

Subindo em espírito a ti, que estás acima de mim, ultrapassarei também esta minha força, que se chama memória, pois quero atingir-te onde és acessível, e unir-me a ti por onde possa fazê-lo.

Também os animais e as aves têm memória, porque de outro modo não voltariam aos seus ninhos e tocas, nem fariam outras coisas habituais, e nem mesmo poderiam adquirir hábitos sem a memória. Passarei, pois, além da memória para chegar àquele que me separou dos animais e me fez mais sábio que as aves do céu. Passarei além da memória, mas onde te hei-de achar, ó Deus verdadeiramente bom, suavidade segura? Onde te hei-de encontrar? Se te encontro sem a minha memória, estou esquecido de ti, e se não me lembro de ti, como te poderei encontrar?

CAPÍTULO XVIII

A memória das coisas perdidas

Uma mulher perdeu uma dracma, e procurou-a com a sua lanterna. Mas se não se lembrasse dela, não haveria de encontra-la; de facto, se dela não lembrasse, como poderia saber, ao achá-la, que era aquela?

Lembro-me de ter procurado e achado muitas coisas perdidas, sei disso porque, estando eu à procura, me diziam: “Por acaso é esta?” “Por acaso é aquela?” – e eu sempre respondia que não, até encontrar o que procurava. Se não tivesse fixado a lembrança do objecto, fosse o que fosse, ainda que me fosse mostrado, não o encontraria, pois não o poderia reconhecer. E sempre que perdemos e achamos alguma coisa acontece o mesmo.

Se alguma coisa desaparece de nossa vista, e não da memória – como sucede com um corpo visível – conservamos interiormente a sua imagem e o procuramos até que apareça a nossos olhos. Quando for encontrado, será reconhecido de acordo com essa imagem interior. Não podemos dizer que encontramos um objecto perdido se não o reconhecemos; nem o podemos reconhecer se dele não nos lembramos. Tinha pois desaparecido da nossa vista, mas era conservado pela memória.

CAPÍTULO XIX

A memória das lembranças

E quando a própria memória perde uma lembrança, como acontece quando nos esquecemos de algo e procuramos recordá-la, o que se passa? Onde, afinal, a procuramos senão na própria memória? E se esta, por acaso, nos oferece uma coisa por outra, a repelimos até que apareça o que buscamos. E assim que aparece dizemos: “É isto”. E assim não diríamos se não a reconhecêssemos, e não a reconheceríamos se dela não houvesse registo. É certo, portanto, que já a havíamos esquecido. Ou será que ela não se apagara totalmente de nossa memória, por meio da parte que nos ficou impressa procuramos a outra? A memória, nesse caso, teria ciência de não poder, como de ordinário, fornecer a lembrança em seu conjunto e, mutilada, reclamaria e parte faltosa. É o que sucede quando vemos uma pessoa conhecida, ou nela pensamos sem poder recordar o seu nome. Se outro nome nos apresenta ao espírito, não o associamos à tal pessoa; por isso o afastamos, até que se apresenta um que concorde com nossa representação habitual da pessoa.

Mas donde nos vem este nome, senão da memória? Mesmo quando nos é sugerido por outrem, é pela memória que reconhecemos; não o aceitamos como um conhecimento novo, mas recordando-o, confirmamos ser esse o nome que nos disseram. Se fosse totalmente apagado da alma, nem mesmo avisados o reconheceríamos.

Não podemos pois, afirmar que nos esquecemos completamente daquilo de que nos lembramos ter esquecido. De nenhum modo poderíamos resgatar uma lembrança perdida se o seu esquecimento fosse total.

CAPÍTULO XX

A memória da felicidade

E como hei-de buscar-te, Senhor? Quando te procuro, meu Deus, estou à procura da felicidade. Procurar-te-ei para que a minha alma viva, porque o meu corpo vive da minha alma, e a minha alma vive de ti. Como então devo buscar a felicidade? Porque não a possuirei até que possa dizer “basta”. Como, pois, procurá-la? Talvez pela lembrança, como se a tivesse esquecido, guardando contudo a lembrança do esquecimento? Ou pelo desejo de conhecer algo desconhecido ou por nunca tê-lo vivido, ou por tê-lo esquecido a ponto de nem ter consciência do seu esquecimento?

Mas não será justamente a felicidade que todos querem, sem excepção? E onde a conheceram para a desejarem tanto? Onde a viram para assim a amarem? O que é certo é que está em nós a sua imagem. Mas não sei como isto se dá. E há diversos modos de ser feliz: quer possuindo realmente a felicidade, quer possuindo apenas a sua esperança. Este último modo é inferior ao dos que são realmente felizes, embora estejam melhor que os não felizes nem na realidade, nem na esperança. Mesmo estes, todavia, não desejariam tanto a felicidade se esta lhes fosse completamente estranha, e é certo que a desejam. Não sei como a conheceram, e portanto ignoro a noção que têm dela. O que me preocupa é saber se essa noção reside na memória, pois, se é lá que reside, é sinal de já fomos felizes alguma vez. Por ora não busco saber se todos fomos felizes individualmente, ou se o fomos naquele que pecou primeiro, e no qual todos morremos, e de quem nascemos na infelicidade. O que procuro saber é se a felicidade reside na memória, porque certamente não a amaríamos se não a conhecêssemos. Mal ouvimos esta palavra, e todos confessamos que desejamos a mesma coisa; e não é o som da palavra que nos deleita. Quando um grego a ouve pronunciar em latim, não se alegra, porque ignora o seu sentido. Mas nós alegramo-nos ao ouvi-la, como ele se a ouvisse em sua língua. A felicidade, com efeito, não é grega nem latina; mas gregos e latinos, assim como todos que falam outras línguas, desejam alcançá-la.

Logo, a felicidade é conhecida de todos; e se fosse possível perguntar-lhes a uma voz: ”Quereis ser felizes?” – todos, sem hesitar, responderiam que sim. E isso não aconteceria se a memória não tivesse em si a realidade, expressa por essa palavra.

(Revisão de versão portuguesa por ama)


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