13/04/2019

Leitura espiritual


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 


CAPÍTULO VIII

ACOMPANHAR, DISCERNIR E INTEGRAR A FRAGILIDADE.

   As circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral.

Para se entender adequadamente por que é possível e necessário um discernimento especial nalgumas situações chamadas «irregulares», há uma questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada «irregular» vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante. Os limites não dependem simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender «os valores inerentes à norma» ou pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como bem se expressaram os Padres sinodais, «pode haver factores que limitam a capacidade de decisão».

E São Tomás de Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é incapaz de exercitar bem alguma das virtudes, pelo que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não manifesta com clareza a existência de alguma delas, porque a prática exterior dessa virtude está dificultada: «Diz-se que alguns Santos não têm certas virtudes, enquanto experimentam dificuldade em pô-las em acto, embora tenham os hábitos de todas as virtudes»[i].

A propósito destes condicionamentos, o Catecismo da Igreja Católica exprime-se de maneira categórica: «A imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros factores psíquicos ou sociais». E, noutro parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral, nomeadamente « a imaturidade afectiva, a força de hábitos contraídos, o estado de angústia e outros factores psíquicos ou sociais».

Por esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objectiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida.

No contexto destas convicções, considero muito apropriado aquilo que muitos Padres sinodais quiseram sustentar: «Em determinadas circunstâncias, [ii] João Paulo II, ao criticar algumas leituras da categoria «opção fundamental», reconhecia que «podem, sem dúvida, verificar-se situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do pecador» as pessoas encontram grandes dificuldades para agir de maneira diferente. (...) O discernimento pastoral, embora tendo em conta a consciência rectamente formada das pessoas, deve ocupar-se destas situações. As próprias consequências dos actos praticados não são necessariamente as mesmas em todos os casos»[iii].

A partir do reconhecimento do peso dos condicionamentos concretos, podemos acrescentar que a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objectivamente a nossa concepção do matrimónio. É claro que devemos incentivar o amadurecimento duma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objectivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objectivo. Em todo o caso, lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa.[iv]


As normas e o discernimento.

É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento pastoral: «Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da acção, a verdade ou a rectidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a rectidão é idêntica nas próprias acções, esta não é igualmente conhecida por todos. (...) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação».

É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado[v].

Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações «irregulares», como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja «para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas».

Na mesma linha se pronunciou a Comissão Teológica Internacional: «A lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de inspiração objectiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão».
Por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pe- 348 Referindo-se ao conhecimento geral da norma e ao conhecimento particular do discernimento prático, São Tomás chega a dizer que, «se existir apenas um dos dois conhecimentos, é preferível que este seja o conhecimento da realidade particular porque está mais próximo do agir»[vi]

À procura duma ética universal: um novo olhar sobre a lei natural

O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus. Lembremo-nos de que « um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades».352 A pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode deixar de incorporar esta realidade.

Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a percorrer a via caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos cristãos[vii]. Não esqueçamos. Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, «aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor»[viii]
E de igual modo assinalo que a Eucaristia «não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos»[ix] a promessa feita na Sagrada Escritura: «Acima de tudo, mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão de pecados»[x]; «redime o teu pecado pela justiça; e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes»[xi]; «a água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado»[xii]. O mesmo ensina também Santo Agostinho: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e da qual podemos tomar a água para extinguir o incêndio».

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)


[i] João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 33: AAS 74 (1982), 121. 340 Relatio Finalis 2015, 51. 341 Cf. Summa theologiae I-II, q. 65, art. 3, ad. 2; De malo, q. 2, a. 2.
[ii] Summa theologiae I-II, q. 65, art. 3, ad. 3. 343 N. 1735. 344 N. 2352; cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre a eutanásia Iura et bona (5 de Maio de 1980), II: AAS 72 (1980), 546.
[iii] [Exort. ap. Reconciliatio et paenitentia (2 de Dezembro de 1984), 17: AAS 77 (1985), 223]. 345 Cf. Pont. Conselho para os Textos Legislativos, Decl. sobre A admissibilidade à Sagrada Comunhão dos divorciados que voltaram a casar (24 de Junho de 2000), 2.
[iv] Relatio Finalis 2015, 85.
[v] Summa theologiae I-II, q. 94, art. 4.
[vi] [Sententia libri Ethicorum, VI, 6 (ed. Leonina, t. 47, 354)]. 349 Francisco, Discurso no encerramento da XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.
[vii] (cf. Jo 15, 12; Gal 5, 14)
[viii] [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038].
[ix] [Ibid., 47: o. c., 1039]. 352 Ibid., 44: o. c., 1038-1039
[x] (1 Ped 4, 8)
[xi] (Dn 4, 24)
[xii] (Sir 3, 30)

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