02/03/2016

Evangelho, comentário, L. espiritual


Quaresma
Semana III

Evangelho: Mt 5, 17-19

17 «Não julgueis que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim para os abolir, mas sim para cumprir. 18 Porque em verdade vos digo: antes passarão o céu e a terra, que passe uma só letra ou um só traço da Lei, sem que tudo seja cumprido. 19 Aquele, pois, que violar um destes mandamentos mesmo dos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será considerado o mais pequeno no Reino dos Céus. Mas o que os guardar e ensinar, esse será considerado grande no Reino dos Céus.

Comentário:

Refere-se, aqui, de forma muito clara, o que é a principal necessidade do cristão: a unidade de vida!

«Seja o vosso falar: Sim, sim; não, não. Tudo o que passa disto, procede do Maligno.»

Um cristão tem de ser assim, claro, objectivo, concreto. Não pode tergiversar nem no comportamento nem nas atitudes ou, ainda, conforme as circunstâncias.

Tem de ser conhecido – e exemplo – por ser veraz, íntegro e constante na sua vida que é, deve ser: seguir Cristo, fazer, em tudo, a vontade de Deus.

(ama, comentário sobre Mt 5, 17-19, 2014.02.16)



Leitura espiritual



SANTO AGOSTINHO CONFISSÕES

LIVRO PRIMEIRO

CAPÍTULO VII

Os pecados da primeira infância

Escuta-me, ó meu Deus! Ai dos pecados dos homens! E quem isto te diz é um homem, e tu te compadeces dele porque o criaste, e não foste autor do pecado que nele existe.
Quem me poderá lembrar o pecado da infância, já que ninguém está diante de ti limpo de pecado, nem mesmo a criança cuja vida conta um só dia sobre a terra? Quem mo recordará?
Acaso alguma criança pequena de hoje, em quem vejo a imagem do que não recordo de mim? E em que eu poderia pecar nesse tempo? Acaso por desejar o peito da nutriz, chorando? Se agora eu suspirasse com a mesma avidez, não pelo seio materno, mas pelo alimento próprio da minha idade, seria justamente escarnecido e censurado. Logo, era então digno de repreensão o meu proceder; mas como não podia entender a censura, nem o costume nem a razão permitiam que eu fosse repreendido. Prova está que, ao crescermos, extirpamos e afastamos de nós essa sofreguidão; e jamais vi homem sensato que, para limpar uma coisa viciosa, prive-a do que tem de bom.
Acaso, mesmo para aquela idade, era bom pedir chorando o que não se me podia dar sem dano, indignar-me acremente com as pessoas livres que não se submetiam, assim como as pessoas respeitáveis, e até com meus próprios pais, e com muitos outros que, mais sensatos, não davam atenção aos sinais de meus caprichos, enquanto eu me esforçava por agredi-los com os meus golpes, quanto podia, por não obedecerem às minhas ordens, que me teriam sido danosas?
Daqui se segue que o que é inocente nas crianças é a debilidade dos membros infantis, e não a alma.
Certa vez, vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava, e já olhava pálido e com rosto amargurado para o irmãozinho colaço. Quem não terá testemunhado isso? Dizem que as mães e as amas tentam esconjurar este defeito com não sei que práticas. Mas se poderá considerar inocência o não suportar que se partilhe a fonte do leite, que mana copiosa e abundante, com quem está tão necessitado do mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas com esse alimento? Mas costuma-se tolerar indulgentemente essas faltas, não porque sejam insignificantes, mas porque espera-se que desapareçam com os anos. Por isso, sendo tais coisas perdoáveis em um menino, quando se acham em um adulto, mal as podemos suportar.
Assim, pois, meu Senhor e meu Deus, tu que me deste a vida e corpo, o qual dotaste, como vemos, de sentidos e proveste de membros, adornando-o de beleza e de instintos naturais, com os quais pudesse defender sua integridade e conservação, tu me mandas que te louve por esses dons e te confesse e cante teu nome altíssimo. Serias Deus omnipotente e bom ainda que só tivesses criado apenas estas coisas, que nenhum outro pode fazer senão tu, ó Unidade, origem de todas as variedades, ó Beleza, que dás forma a todas as coisas, e com tua lei as ordenas!
Tenho vergonha, Senhor, de ter de somar à vida terrena que vivo aquela idade que não recordo ter vivido, na qual acredito pelo testemunho de outros, por vê-lo assim em outras crianças, embora essa conjectura mereça toda a fé. As trevas em que está envolto meu esquecimento a seu respeito assemelham-se à vida que vivi no ventre de minha mãe.
Assim, se fui concebido em iniquidade, e se em pecado me alimentou minha mãe, onde, suplico-te, meu Deus, onde, Senhor, eu, teu servo, onde e quando fui inocente? Mas eis que silencio sobre esse tempo. Para que ocupar-se dele, se dele já não conservo nenhuma lembrança?

CAPÍTULO VIII

As primeiras palavras

Acaso não foi caminhando da infância até aqui que cheguei à puerícia? Ou melhor, esta veio a mim e suplantou à infância sem que esta fosse embora, pois, para onde poderia ir?
Contudo deixou de existir, porque eu já não era um bebezinho que não falava, mas um menino que aprendia a falar. Disso me recordo; mas como aprendi a falar, só mais tarde é que vim a perceber. Não mo ensinaram os mais velhos apresentando-me as palavras com certa ordem e método, como logo depois fizeram com as letras; mas foi por mim mesmo, com o entendimento que me deste, meu Deus, quando queria manifestar meus sentimentos com gemidos, gritinhos, e vários movimentos do corpo, a fim de que atendessem meus desejos; e também ao ver que não podia exteriorizar tudo o que queria, nem ser compreendido por todos aqueles a quem me dirigia.
Assim, pois, quando chamavam alguma coisa pelo nome, eu a retinha na memória e, ao se pronunciar de novo a tal palavra, moviam o corpo na direção do objeto, eu entendia e notava que aquele objecto era o denominado com a palavra que pronunciavam, porque assim o chamavam quando o desejavam mostrar.
Que esta fosse sua intenção, era-me revelado pelos movimentos do corpo, que são como uma linguagem universal, feita com a expressão rosto, a atitude dos membros e o tom da voz, que indicam os afectos da alma para pedir, reter, rejeitar ou evitar alguma coisa. Deste modo, das palavras usadas nas e colocadas em várias frases e ouvidas repetidas vezes, ia eu aos poucos notando o significado e, domada a dificuldade de minha boca, comecei a dar a entender minhas vontades por meio delas.
Foi assim que comecei a comunicar meus desejos às pessoas entre as quais vivia, e entrei a fazer parte do tempestuoso mundo da sociedade, dependendo da autoridade de meus pais e obedecendo às pessoas mais velhas.

CAPÍTULO IX

Estudos e jogos

Ó meu Deus, meu Deus! Que de misérias e enganos não experimentei então, quando se me propunha, em criança, como norma de bem viver, obedecer os mestres que me instigavam a brilhar neste mundo, e me ilustrar nas artes da língua, fiel instrumento para obter honras humanas e satisfazer a cobiça! Mudaram-me à escola, para que aprendesse as letras, nas quais eu, miserável, desconhecia o que havia de útil. Contudo, se era preguiçoso para aprendê-las, era fustigado, num sistema louvado pelos mais velhos; muitos deles, que levavam esse género de vida antes de nós, nos traçaram caminhos tão dolorosos pelos quais éramos obrigados a caminhar, multiplicando assim o trabalho e a dor aos filhos de Adão.
Mas, por sorte, encontrei homens que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi a te sentir, quanto possível, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir em nosso auxílio, embora sem a percepção dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei a invocar-te como refúgio e amparo e, para te invocar, desatei os nós de minha língua; e, embora pequeno, te rogava já com grande fervor para que não me açoitassem na escola. E quando não me escutavas, o que servia para meu proveito os mestres, assim como meus próprios pais, que certamente não desejavam o meu mal, riam-se daquele castigo, que então era para mim grave suplício.
Porventura, Senhor, haverá alguma alma tão grande, unida a ti com tão ardente afecto, pois isto também pode ser produzido pela estultice – repito, uma alma que alcance tal grandeza de ânimo que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e os demais instrumentos de martírio – para fugir dos quais se te dirigem súplicas de todas as partes do mundo? Haverá uma alma que assim os despreze – rindo-se dos que têm deles tanto horror – como se riam nossos pais dos tormentos que éramos castigados por nossos mestres quando meninos? Porque, na verdade, não os temíamos menos, nem te rogávamos com menor fervor para que nos livrasses deles.
Contudo, pecávamos por negligencia escrevendo ou lendo, estudando menos do que nos era exigido; e não era por falta de memória ou de inteligência, que para aquela idade, Senhor, me deste de modo suficiente, senão porque eu gostava de brincar, embora os que nos castigavam não fizessem outra coisa. Mas os jogos dos mais velhos chamavam-se negócios, enquanto que os dos meninos eram por eles castigados, sem que ninguém se compadecesse de uns e de outros, ou melhor, de ambos. Um juiz sensato poderia aprovar os castigos que eu, menino, recebia porque jogava bola, e porque com este jogo atrasava o aprendizado das letras, com as quais, adulto haveria de jogar menos inocentemente?
Acaso fazia outra coisa naquele que me castigava? Se nalguma questiúncula era vencido por algum colega seu, não era mais atormentado pela cólera e pela inveja do que eu, quando numa partida de bola era vencido por meu companheiro?

CAPÍTULO X

Amor ao jogo

Contudo, Senhor meu, ordenador e criador da natureza, mas do pecado somente ordenador, eu pecava; pecava desobedecendo as ordens de meus pais e mestres, uma vez que podia no futuro fazer bom uso das letras que desejavam ensinar-me, qualquer que fosse a sua intenção.
E não era desobediente para me ocupar de coisas melhores, mas por amor ao jogo; buscava nos combates orgulhosas vitórias; deleitava-me com histórias frívolas, com as quais incentivava sempre mais minha curiosidade. Igualmente curiosos, meus olhos se abriam sempre mais para os jogos e espectáculos dos adultos, jogos que dão tão grande dignidade a quem os oferece, que quase todos desejam as mesmas dignidades para seus filhos. Contudo, gostam de os castigar se com tais espectáculos fogem dos estudos, por meio dos quais desejam que eles venham um dia a oferecer espectáculos semelhantes. Senhor, olha misericordiosamente para essas coisas, e livra-nos delas a nós que já te invocamos; mas livra também os que ainda não te invocam, a fim de que te invoquem, e sejam igualmente libertados.

CAPÍTULO XI

O baptismo diferido

Ainda menino, ouvi falar da vida eterna, que nos está prometida pela humildade de Jesus, nosso Senhor, que desceu até nossa soberba; e fui marcado com o sinal da cruz, sendo-me dado saborear de seu sal logo que saí do ventre de minha mãe, que sempre esperou muito em ti.
Tu viste, Senhor, que numa ocasião, ainda menino, atacou-me repentinamente um dor de estômago que me abrasava, e que me aproximou da morte. Tu viste também, meu Deus, pois já me tinhas sob a tua guarda, com que fervor de espírito e com que fé pedi à piedade de minha mãe, e da mãe de todos nós, tua Igreja, o baptismo de teu Cristo, meu Deus e Senhor. Perturbou-se minha mãe carnal, pois que me criava com mais amor em seu casto coração em tua fé para a vida eterna e, solícita, já havia cuidado de que me iniciasse e purificasse com os sacramentos da salvação, confessando-te, ó meu Senhor Jesus, em remissão de meus pecados, quando, de repente, comecei a melhorar. Em vista disso, diferiu-se a minha purificação, considerando que seria impossível, se eu vivesse, que não me tornasse a manchar; pois a culpa dos pecados cometidos depois do beatismo é muito maior e mais perigosa.
Nesta época eu já tinha fé verdadeira, juntamente com minha mãe e com todos da casa, à excepção de meu pai, que, porém, não pôde vencer em mim a ascendência da piedade materna, para que deixasse de acreditar em Cristo, tal como ele não acreditava; minha mãe, solícita, cuidava de que tu, meu Deus, fosses mais pai para mim do que ele, e a ajudavas a triunfar do marido, a quem servia melhor, porque nele te servia a ti e a tuas ordens.
Mas, meu Deus, suplico-te que me mostres, se te apraz, por que motivo se diferiu então meu baptismo; se foi ou não para meu bem que me soltaram das rédeas do pecado. Por que razão ainda hoje se diz de uns e de outros, como ouvimos em muitos lugares: “Deixe que faça o que quiser, porque ainda não está baptizado” – embora não digamos da saúde do corpo: “Deixe que receba ainda mais feridas, porque ainda não está curado?”
Quanto melhor teria sido para mim receber logo a saúde, e que meus cuidados e os dos meus fossem empregados em conservar intacta debaixo da tua protecção a saúde da minha alma, que me havias concedido! Melhor fora, certamente; porém, como minha mãe, sem dúvida, já previa quantas e quão grandes ondas de tentações me ameaçariam depois da meninice, preferiu expor-me a elas como terra grosseira que depois receberia forma, do que expor-me já como imagem tua.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)


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