INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
"Creio
em Jesus Cristo seu Filho Unigénito, Nosso Senhor".
IV. Caminhos da Cristologia
4. A lei do supérfluo.
Sob o ponto de vista do Novo Testamento, o tema da
"superabundância" conduz ainda a outra senda, na qual finalmente o
seu sentido fica inteiramente esclarecido. Encontramos a palavra outra vez em
nexo com o milagre da multiplicação dos pães, onde se fala de uma
"sobra" de sete cestos (Mc 8,8). Pertence à essência da narração
da multiplicação dos pães o despertar a atenção para a ideia e a realidade do
supérfluo, do mais-que-necessário. E acorre imediatamente à lembrança o milagre
parecido, da transformação da água em vinho nas bodas de Caná (Jo 2,1-11).
É verdade que a palavra "sobra" ou "abundância" não
ocorre, tanto mais porém a coisa: o vinho conseguido pela transformação da
água, de acordo com o que informa o Evangelho, chega a uma quantidade fora do
comum para uma festa familiar: 480 a 700 litros. Ora, na intenção dos
evangelistas, ambas as narrações têm nexo com a forma central do culto cristão,
a Eucaristia. Apontam para ela como a superabundância divina, que ultrapassa
infinitamente todas as necessidades e tudo que se possa desejar razoavelmente.
Mas ambos os eventos, pela sua relação com a
Eucaristia, têm nexo com Cristo e apontam para ele, em última instância: Cristo
é a infinita auto-prodigalidade de Deus. E, como aliás o constatamos no estudo
do princípio "para", ambos apontam para a lei estrutural da criação
onde a vida esbanja milhões de germes para salvar um ser vivo, onde um universo
inteiro é esbanjado para preparar, num ponto, o lugar para o espírito, o homem.
Superabundância é a marca de Deus na criação; pois "Deus não calcula seus
dons sob medida", como afirma a Patrística. Mas, super-abundância também é
a razão exacta e a forma da história da salvação, que, afinal, nada mais é do
que o acontecimento realmente estonteante de Deus a entregar não só um
universo, mas a si mesmo, em incompreensível auto-esbanjamento, com o fito de
conduzir ao porto da salvação o grão de poeira chamado homem. Repitamo-lo:
portanto, super-abundância é a definição exacta da história da salvação. A
inteligência meramente calculista eternamente achará absurdo que Deus deva
gastar-se para o homem. Só quem ama é capaz de compreender a loucura de um
amor, para o qual esbanjamento é lei, super-abundância – o único que satisfaz.
Contudo, se é verdade que a criação vive da super-abundância; que o homem é
aquele ser para o qual o super-abundante representa o necessário, como
admirar-se que revelação é o suficiente, e, por isto, o necessário, o divino, o
amor, no qual se realiza o sentido do universo?
5. O definitivo e a esperança.
A fé cristã ensina que em Cristo se realizou a salvação
dos homens, que nele se iniciou irrevogavelmente o futuro do homem, e assim,
embora permanecendo futuro, é contudo, perfeito, parcela do nosso presente.
Esta declaração inclui um princípio do "definitivo", de máxima
importância para a forma da existência cristã, respectivamente para a maneira
da opção existencial incluída no ser-cristão. Tentemos elaborá-lo mais exactamente.
Acabamos de constatar ser Cristo o futuro iniciado, a já aberta fase definitiva
do homem. Na linguagem escolástica este pensamento foi expresso, ao ser
afirmado que, com Cristo, a revelação estava terminada. Naturalmente, isto não
pode significar que determinado número de verdades tenha sido comunicado,
resolvendo Deus não acrescentar ulteriores comunicações. Significa, antes, que
o diálogo de Deus com o homem alcançou o fim colimado, no compromisso de Deus
com a humanidade em Cristo, o homem que é Deus. Neste diálogo não se tratava,
nem se trata de dizer alguma coisa ou muita coisa, mas de dizer-se a si
mesmo na Palavra, no Verbo. Assim a sua intenção não alcança a meta pelo facto
de haver uma comunicação do maior número possível de conhecimentos, mas sim
quando, mediante a palavra, o amor se torna visível, tocando-se o tu com o tu
na palavra. O seu sentido não está em um terceiro, num contendor, mas no
próprio parceiro e chama-se união. Ora, no homem Jesus, Deus se disse a
si mesmo definitivamente. Jesus é a sua palavra e, como tal, é o próprio Deus. A
revelação não termina aqui porque Deus a encerre positivamente, mas porque
chegou à sua meta, ou, como o exprime Karl Rahner: "Nada se diz de novo,
não por haver muito ainda a dizer, mas porque tudo foi dito, tudo foi doado no
Filho do amor, no qual Deus e mundo se tornam um"..
Mas, consideremos o assunto mais de perto. Eis o
que se nos revela: Cristo alcançou a meta da Revelação e, com ela, o ponto
final da humanidade, porque nele se tocam e se unem divindade e humanidade;
isto significa, ao mesmo tempo, que o alvo alcançado não representa um limite
rígido e fixo, mas um espaço aberto. Pois a união acontecida naquele ponto
único chamado Jesus de Nazaré deve atingir a humanidade inteira, o único
"Adão" todo, transformando-o em "Corpo de Cristo". Enquanto
essa totalidade não for alcançada, enquanto ela se conservar limitada a um
ponto, o acontecido em Cristo continuará sendo ao mesmo tempo fim e começo. A
humanidade não pode avançar mais longe e mais alto do que Cristo, porque Deus é
o mais distante e o mais sublime; qualquer aparente progresso para além dele
denota uma queda no vazio. A humanidade não pode ultrapassá-lo – neste sentido,
Cristo é o fim; mas ela deve entrar nele – neste sentido, Cristo é o começo
real.
Não nos é preciso reflectir sobre o entrelaçamento
de passado e futuro, consequência para a consciência cristã; nem é mister
pensar que de acordo com isto, a fé cristã, voltada para o Jesus histórico,
está orientada para o futuro, para o novo Adão – sobre o qual se concentra o
futuro, O mundo e o homem, sob o ponto de vista de Deus. Já falamos antes sobre
isto tudo. Aqui trata-se de outra coisa. O facto de já ter sido feita a
decisiva determinação de Deus a respeito do homem denota existir o elemento
definitivo na história – no enfoque da fé – mesmo se a feitura do definitivo
for tal que não exclua o futuro, mas o abra. Consequência disto, por sua vez, é
a necessária existência do definitivo, do irrevogável também na vida do homem,
sobretudo onde o homem encontra o definitivo divino do qual acabamos de tratar.
A confiança na existência do definitivo, exactamente como garantia aberta do
futuro do homem, caracteriza a posição cristã total face à realidade: para o
cristão não satisfaz nem serve o circunvolver do actualismo que enfrenta tão
somente cada momento presente, sem jamais encontrar o definitivo. O cristão tem
certeza de que a história avança; ora, avanço, progresso exige o definitivo da direcção
– eis o que distingue o cristão do movimento em círculo, que não leva a lado
nenhum. A luta pela irrevogabilidade do crístico foi travada na Idade Média
enquanto luta contra o "terceiro reino": após o "reino do
Pai" corporificado no Antigo Testamento, seguiu-se o segundo reino,
concretizado no Cristianismo, ou seja, o reino do Filho, superior ao primeiro,
mas que, por sua vez, seria substituído pelo terceiro reino: a era do Espírito.
A fé na encarnação de Deus em Jesus Cristo não admite nenhum "terceiro
reino", porque acredita no estado definitivo do acontecido,
sabendo-se, exactamente por isto, aberta para o futuro.
Já aludimos ao facto de aí se acharem inclusas
consequências decisivas também para a vida do indivíduo: a fé reivindica
definitivamente o homem, não podendo ser substituída após o reino do Pai, na
infância, e o do Filho, na juventude, por uma era esclarecida do Espírito, que
só obedeça à própria razão a entregar-se, subrepticiamente, ao Espírito Santo.
Certamente, a fé tem as suas épocas e gradações, mas precisamente com isto ela
representa o fundamento durável da existência do homem que é um apenas. É por
este motivo que a fé tem expressões definitivas – dogma, símbolo – nas quais se
articula o seu aspecto definitivo interno. Isto, porém, não quer dizer que tais
formas não sejam susceptíveis de um subsequente abrir-se na história, sendo
re-compreendidas, do mesmo modo como o indivíduo deve aprender a interpretar a
fé, sempre de novo dentro das vicissitudes da sua vida. E isto quer dizer que,
dentro desse processo de compreensão e de amadurecimento, não pode nem deve ser
eliminada a unidade do objecto compreendido.
Finalmente poderíamos mostrar que o aspecto
definitivo da união de dois seres humanos, que a fé vê estabelecida pelo
"sim" do amor, fundamento do matrimónio – que também este aspecto
definitivo está enraizado aqui. De facto, o casamento indissolúvel só é
compreensível e realizável pela fé na indestrutível decisão de Deus em Cristo,
mediante o "matrimónio" ou as "núpcias" com a humanidade
(cfr. Ef 5,22-33). O matrimónio subsiste ou cai com esta fé; fora dela,
ele é tão impossível, como dentro da fé é necessário. Novamente caberia dizer
que esta aparente fixação sobre a decisão de um momento na vida possibilita ao
homem o progresso, a subida de grau em grau, enquanto a contínua anulação de
tais decisões o lança continuamente de volta ao começo, condenando-o a girar em
círculo que se encerra na ficção da eterna juventude, recusando-se assim ao
conjunto da existência humana.
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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