17/06/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual

INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO

"Creio em Deus" – Hoje

SEGUNDA PARTE

JESUS CRISTO

CAPÍTULO SEGUNDO

Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos Cristológicos do Símbolo

5. "Subiu ao céu, onde está sentado à direita de Deus Pai, todo-poderoso".

Falar da Ascensão, para a nossa geração criticamente despertada por Bultmann, bem como tratar da descida aos infernos denota revelar aquela visão do mundo em três andares a que se dá o nome de "mítica" e que se considera definitivamente superada. "Em cima" e "em baixo" o mundo continua sendo o mesmo mundo, regido em toda a parte pelas mesmas leis físicas, acessível à pesquisa por todos os lados. O mundo não tem pavimentos; os conceitos "em cima" e "em baixo" são relativos, dependentes da posição do observador. Como não existe ponto algum de referência absoluto (seguramente, a Terra já não representa um tal ponto), não se pode mais falar de "em cima", "em baixo" – ou de "à direita" ou "à esquerda"; o Cosmos não apresenta nenhuma direcção determinada. Ninguém, hoje em dia, contestará semelhantes convicções. Não existe um mundo disposto, localmente, em três andares. Aliás, teria sido este o sentido das expressões da fé quando usou os termos "descida" aos infernos, "subida" ao céu? Sem dúvida o material fora fornecido por aquela concepção do mundo, o que, não obstante, não é realmente o essencial. Os dois artigos exprimem, antes, juntamente com a fé no Cristo histórico, a dimensão total da existência humana que não abrange três pavimentos cósmicos, mas sim três dimensões metafísicas. Neste sentido, é consequente a mentalidade, que se julga moderna, quando elimina não só a ascensão e a descida aos infernos, mas também o mesmo Cristo histórico, ou seja as três dimensões da existência humana; o que resta não pode passar de pobre fantasma policromo, sobre o qual, com razão, ninguém mais pode construir seriamente.

Mas, qual seria o sentido real das nossas três dimensões? Anteriormente já constatamos que a descida aos infernos propriamente não significa alguma profundidade exterior do cosmos, que é perfeitamente dispensável: no texto fundamental – a súplica do Crucificado a Deus que o abandonara falta qualquer referência cósmica. A frase concentra-nos o olhar muito mais nas profundezas da existência humana, tocando o fundo da morte, na zona da solidão intocável e do amor recusado, abrangendo assim a dimensão do Inferno, trazendo-a em si como a sua própria possibilidade. Inferno, existir na recusa definitiva do "ser-para" não é uma determinação cosmográfica, mas uma dimensão da natureza humana, é o seu fundo, até onde o inferno alcança. Mais que nunca sabemos hoje que a existência de cada um alcança esta profundeza. Naturalmente, porque a humanidade, em última análise, é "um homem", esse abismo não diz respeito apenas ao indivíduo, mas interessa o corpo único do género humano que, por esta razão, há-de suportar esse abismo, como um todo. Pode agora compreende-ser que Cristo; o "novo Adão", tenha empreendido a tarefa de suportar essa profundeza, não querendo dela isentar-se em sublime intangibilidade, mas também só agora se torna possível avaliar a recusa total do amor, em toda a sua imensidade.

Em contrapartida, a ascensão do Senhor aponta para o outro extremo da existência humana dilatada para cima e para baixo e infinitamente acima de si mesma. Como anti-pólo em relação ao isolamento radical, à intocabilidade do amor recusado, essa existência é portadora da possibilidade do contacto com todos os outros homens, do contacto com o próprio amor divino, de modo que o "ser-homem" como que encontra o seu lugar geométrico no seio da auto-existência de Deus. Naturalmente essas duas possibilidades do homem, expressas nas palavras "céu" e "inferno", são de espécie completamente diferente do que o seriam as possibilidades humanas, e mesmo completamente diversas entre si. O abismo a que chamamos Inferno, só o homem pode dá-lo a si mesmo. Aliás, cumpre exprimi-lo mais fortemente: o inferno consiste formalmente no facto de o homem não querer aceitar nada, de querer ser totalmente autárquico. É a expressão do fechar-se no puramente próprio. Por conseguinte, a essência desse abismo consiste em o homem não querer aceitar, em não querer tomar, preferindo apoiar-se completamente em si mesmo, bastar-se a si mesmo. Atingindo a sua última radicalidade, o homem torna-se o intocável, o solitário, o recusado. Inferno é o "querer-ser-só-eu-mesmo", é aquilo que sucede quando o homem se fecha naquilo que lhe é próprio. Inversamente a essência daquilo que chamamos "céu" está na exclusiva possibilidade de se receber, assim como alguém só é capaz de se dar o inferno. O céu, por natureza, é não-auto-construído nem auto-construível; na linguagem escolástica diz-se que o céu, como graça, é um donum indebitum et superadditum naturæ (uma dádiva indevida e acrescentada à natureza). Somente enquanto amor realizado é que o céu pode ser doado ao homem; mas o seu inferno é a solidão daquele que não quer acreditar, que não se sujeita ao estado de mendigo, encolhendo-se para dentro de si mesmo.

Somente agora se pode mostrar completamente em que consiste o céu sob o ponto de vista cristão. Não o devemos imaginar como um lugar eterno, supra-terreno, nem também como uma região eterna, metafísica. Cumpre afirmar estarem as realidades "céu" e "ascensão" inseparavelmente interligadas; e somente dentro desta interdependência é que se torna claro o sentido cristológico, pessoal, histórico, da mensagem cristã sobre o céu. Abordemos o assunto por outro ângulo: céu não é o lugar que, antes da ascensão de Cristo, estivera fechado por um decreto punitivo de Deus, para, a seguir, ser aberto, graças a uma resolução igualmente positiva. A realidade "céu" surge antes de tudo e principalmente mediante a união entre Deus e homem. O céu deve definir-se como o tocar-se do ser que se chama homem com o ser que é Deus; este entrelaçar-se de Deus e do homem concretizou-se definitivamente em Cristo através de sua escalada pelo bios, pela morte até à vida nova. Portanto, céu é aquele futuro do homem e do género humano que eles são incapazes de se conferirem a si mesmos, que, por conseguinte, estar-lhes-ia fechado enquanto confiassem apenas em si e que, pela primeira vez foi aberto naquele homem, cujo local de existência era Deus e através do qual Deus penetrou na natureza humana.

Por esta razão, o céu sempre será mais do que um destino individual; está em nexo com o "último Adão", com o homem definitivo e, portanto, em nexo com o destino comum do homem. Ao meu ver, poder-se-iam conseguir, a partir daqui, alguns importantes subsídios hermenêuticos, que, naturalmente, neste contexto, poderão merecer apenas uma atenção muito secundária. Um dos mais impressionantes factos do dado bíblico que pressionaram e movimentaram profundamente a exegese e a teologia dos últimos 50 anos está na chamada "escatologia próxima", ou seja, na mensagem de Cristo e dos Apóstolos tem-se a impressão de estar sendo anunciado, como iminente, o fim do mundo. Até se pode adiantar que a mensagem do fim próximo tenha sido, aparentemente, o cerne da pregação de Cristo e da Igreja nascente. A figura de Jesus, a sua morte e ressurreição são colocados em relação directa com esta ideia, de modo tal que se nos torna estranha e incompreensível. Evidentemente não podemos deter-nos aqui em minúcias sobre o extenso emaranhado de problemas que aqui se tocam. Mas, por acaso, com as nossas últimas considerações não se tornou claro o caminho por onde se há-de procurar uma resposta? Descrevemos Ressurreição e Ascensão como o definitivo entrelaçamento do ser do homem com o ser divino que põe ao alcance do homem a possibilidade da existência perpétua. Tentamos compreender ambas as coisas como força do amor frente à morte e, assim, como a decisiva "mutação" do homem e do cosmos, onde o limite do bios é rompido e se cria um novo espaço vital. Se assim é, temos aí o início da "escatologia", do fim do mundo. Com a superação do limite da morte, abre-se a dimensão do futuro para o género humano; aliás, o seu futuro, de facto, já começou. Assim também se torna claro de que modo a esperança na imortalidade do indivíduo e a possibilidade da eternidade do género humano se entrecruzam e como ambas se realizam em Cristo que tanto há de ser denominado o "centro", como, bem entendido, o "fim" da história.

Resta ainda um ponto a ser examinado em nexo com a Ascensão do Senhor: a doutrina sobre a Ascensão é decisiva para o além-túmulo da existência humana, de acordo com o que expusemos; não o é, porém, menos para a compreensão do seu aquém, isto é para compreender a questão referente ao modo como se entrosam o além e o aquém, ou seja, é decisiva para o problema da possibilidade e do sentido da relação do homem com Deus. Ao reflectir sobre o primeiro artigo do Credo, respondemos afirmativamente à pergunta de se o infinito é capaz de ouvir o finito, o eterno de atender ao temporal, lembrando que a verdadeira grandeza de Deus está precisamente no facto de, para ele, o mínimo não ser pequeno demais e o máximo não ser excessivamente grande; procuramos compreender como Deus, como Logos, não é somente a razão que diz tudo, mas também que tudo percebe, que não exclui nada por causa de sua insignificância. À busca preocupada dos nossos tempos respondemos: Sim, Deus é capaz de ouvir. Mas resta ainda uma pergunta. Alguém, acompanhando-nos o raciocínio, poderia dizer: Está bem: Deus pode ouvir; mas sempre continua a pairar no ar esta outra questão: Deus será capaz de atender? Ou seria a súplica, o grito da criatura a Deus, afinal, apenas um piedoso truque para elevar psiquicamente o homem e para o consolar, uma vez que Deus só raramente estaria em condições de atender a fórmulas deprecatórias? Tudo isto não serviria para movimentar de qualquer modo, o homem no rumo da transcendência, muito embora, na verdade, nada possa acontecer ou modificar-se com isto; pois o que é eterno, eterno fica, e o temporal continua sendo temporal – parece não existir passagem de uma esfera à outra? Também isto está excluído de uma análise detalhada que exigiria um estudo crítico muito exacto dos conceitos de tempo e eternidade. Seria preciso pesquisar o seu fundamento no pensamento antigo e a síntese deste pensamento com a fé bíblica, encontrando-se a imperfeição de ambas na raiz da nossa pergunta de hoje. Impor-se-ia de novo uma reflexão sobre a relação do pensamento científico-técnico e a fé tarefas que fogem aos limites desta obra. Portanto, em vez de respostas individuais e elaboradas, resta mostrar a direcção em que a resposta há-de ser procurada.

A tendência mais comum da mentalidade de hoje é imaginar a eternidade como algo, por assim dizer, encerrado na sua imutabilidade; Deus é o prisioneiro do seu plano eterno, elaborado "antes de todos os tempos". "Ser" e "devir" não se misturam. A eternidade é concebida negativamente como ausência de tempo, como o elemento oposto ao tempo, incapaz de influenciar o tempo, pois assim deixaria de ser imutável, tornando-se temporal. No fundo, tais concepções mantêm-se dentro de um ponto de vista pré-cristão, em que não se tomou conhecimento da ideia de um Deus a revelar-se pela fé na Criação e na Encarnação. Supõem – o que aqui não podemos desenvolver – o dualismo antigo, e são expressão de um pensamento ingénuo que considera Deus à maneira humana. Quem, pois, julgar Deus capaz de modificar o que planejou desde a eternidade, sem o perceber mete a eternidade no esquema do tempo, ao distinguir o "antes" e o "depois".

Ora, eternidade não é imemorial, a existir antes do tempo, mas é algo completamente outro, que se comporta em relação ao tempo que passa como o seu "hoje", que lhe é realmente "hodierno"; eternidade não está imprensada entre um antes e um depois; ela é a dinâmica do presente em todo o tempo. A eternidade não se encontra isolada ao lado do tempo, mas é a força a sustentar criadoramente todo o tempo, que o abrange em seu próprio presente, conferindo-lhe assim a possibilidade de existir. Sendo a eternidade o hoje, igual em todos os tempos, pode influenciar qualquer tempo.

A encarnação de Deus em Jesus Cristo, graças à qual o Deus eterno e o homem temporal se encontram em uma única pessoa, nada mais representa do que a derradeira expressão concreta do domínio divino sobre o tempo. Neste ponto, Deus arrebatou o tempo à existência terrena de Jesus, absorvendo-o em si. O seu domínio sobre o tempo ergue-se diante de nós, como que, corporalmente. Cristo, de facto, é a "porta" entre Deus e homem (Jo 10,9), o seu "mediador" (1Tim 2,5), no qual o Eterno dispõe de tempo. Em Jesus nós, seres temporais, estamos em condição de falar aos temporais, nossos contemporâneos; nele, que é tempo connosco, palpamos, simultaneamente, o eterno, porque, connosco, ele é tempo e, com Deus, eternidade.

Embora noutro contexto, Hans Urs von Balthasar esclareceu profundamente a importância espiritual dessas verdades. Lembra, primeiro, que em sua vida terrestre Jesus não pairava acima do espaço e do tempo, mas vivia do meio do seu tempo e no seu tempo; a humanidade de Jesus que colocou-o no meio daquele tempo vem-nos ao encontro em cada página e em cada linha do Evangelho; percebemo-la hoje mais viva e claramente do que em outras épocas a notaram. Mas esta sua "permanência no tempo" não é mera moldura histórica em que se possa encontrar, oculto alhures, o eterno do seu ser propriamente dito; trata-se, antes, de uma realidade antropológica a determinar profundamente a mesma forma da existência humana. Jesus dispõe de tempo e não antecipa a vontade do Pai em pecaminosa impaciência. "Por isso o Filho, que no mundo dispõe de tempo para o Pai, é o lugar original onde Deus dispõe de tempo para o mundo. Outro tempo que não no Filho, Deus não tem para o mundo, mas no Filho Deus tem todo o tempo". Deus não é o prisioneiro da sua eternidade: em Jesus ele dispõe de tempo para nós, e, deste modo, Jesus realmente é o "trono da graça" ao qual podemos aproximar-nos a qualquer tempo, cheios de confiança (Hbr 4,16).

(cont)

joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.


(Revisão da versão portuguesa por ama)

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