24/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 2

LIVRO XIV

CAPÍTULO X

Deveremos julgar que os primeiros homens, no Paraíso, antes de pecarem não eram afectados por nenhuma perturbação?

Não será sem motivo que se pergunta se o primeiro homem, ou os primeiros homens (pois que de dois era a união conjugal), experimentavam no seu corpo animal antes do pecado, os sentimentos que já não experimentaremos no nosso corpo espiritual quando se apagar e acabar todo o pecado. Se os experimentavam, como podiam eles ser felizes nesse memorável lugar de beatitude, que era o Paraíso? Quem é que poderá dizer-se absolutamente feliz se é afectado pelo temor ou pela dor? Mas que é que esses homens poderiam temer ou sofrer numa tão grande afluência de tamanhos bens onde nem a morte nem má disposição alguma do corpo tinham a recear, nem faltava o quer que fosse que a boa vontade desejasse, nem coisa alguma poderia contrariar a carne ou o espírito do homem que vivia com tanta felicidade? Sereno era o seu amor para com Deus bem como entre os cônjuges que viviam em fiel e leal sociedade. E desse amor nascia uma grande alegria porque tinham sempre presente, para o gozarem, o objecto do seu amor. Evitava-se com tranquilidade o pecado e, ao evitá-lo, não surgia, em contrapartida mal algum que pudesse contristá-los. Desejariam eles talvez tocar no fruto proibido para o comerem, mas receavam morrer, de maneira que esse desejo e esse temor já os perturbava mesmo em tal lugar? Longe de nós pensar que assim tenha sido absolutamente nenhum pecado havia· Efectivamente, sem pecado ninguém pode nem desejar o que a Lei de Deus proíbe, nem abster-se por receio do castigo e não por amor da justiça. Longe de nós repito, pensar que antes de todo o pecado já houvera pecado, admitindo a propósito da árvore o que o Senhor diz acerca da mulher:

Se alguém olhar para uma mulher com mau desejo, já cometeu adultério no seu coração.[i]

Tal qual como os primeiros homens eram felizes, sem se sentirem agitados pelas perturbações da alma nem molestados pelas doenças do corpo — assim também teria sido feliz toda a sociedade humana se aqueles não tivessem cometido o mal que transmitiram aos seus descendentes e se nenhum destes descendentes tivesse cometido também o mal do pecado que provoca o castigo. Esta felicidade manter-se-ia até que, por efeito da bênção:

Crescei e multiplicai-vos[ii]

o número dos santos predestinados fosse completo. Outra bênção maior seria dada — a que foi dada aos anjos bem-aventurados, graças à qual cada um recebeu desde então a garantia plena de que jamais pecariam ou morreriam. E a vida dos santos, sem terem experimentado trabalho algum, dor ou morte algum a, seria tal qual será depois de tudo isto na incorrupção dos corpos, quando aos mortos for concedida a ressurreição.


CAPÍTULO XI

Queda do primeiro homem cuja natureza, criada boa, foi viciada, e só pelo seu Autor pode ser recuperada.

Mas Deus tudo previu e não pôde ignorar que o homem viria a pecar. Tem os de conceber a Cidade Santa conforme o que Ele previu e dispôs e não conforme o que pode chegar ao nosso conhecimento pois não foi isso que esteve nos desígnios de Deus. Claro que o homem com o seu pecado não pôde perturbar o plano divino nem com o que obrigar Deus a mudar o que tinha estabelecido. Deus, na sua presciência, previu um a e outra coisa, isto é, quão mau se viria a tornar o homem que Ele criou bom e o bem que havia de tirar desse mal. E certo que se diz que Deus altera os seus desígnios (em linguagem metafórica a Escritura chega mesmo a dizer que Deus se arrependeu). Mas, isso diz-se em atenção ao que o homem espera ou em atenção ao que com porta a ordem das coisas naturais — e não em atenção ao que o Omnipotente previu que havia de fazer.

Com o está escrito, Deus fez o homem recto e, como tal, dotado de vontade boa. Não seria de facto recto se não tivesse vontade boa. A boa vontade é, portanto, obra d e Deus, pois foi com ela que foi criado o homem. Mas a Primeira vontade má, porque precedeu no homem todas as suas más obras, é menos uma obra que um defeito pelo qual o homem, abandonando a obra de Deus, decai para as suas próprias obras que, por tal facto, são más, porque são como ao homem apraz e não como apraz a Deus. A vontade é, pois, como a árvore má: as obras que produz são como que os seus maus frutos; ou então é o próprio homem que é essa má árvore na medida em que é dotado de vontade má. Mas esta vontade, embora não seja má por natureza, mas contra a natureza, pois é um vício, é, todavia, da mesma natureza que o vício que não pode existir sem uma natureza; mas há-de ser numa natureza que Deus criou do nada e não na que o Criador gerou em si pró­prio, como gerou o Verbo por quem foi feito. Deus formou o homem do pó da Terra, mas o certo é que esta terra, como toda a matéria terrestre, vem toda ela do nada. E é ainda uma alma feita a partir do nada que Deus deu ao corpo quando o homem foi feito.

A tal ponto os males são superados pelos bens que, embora se tolere a sua existência para demonstrar quanto a providentíssima justiça do Criador pode deles fazer bom uso, podem os bens existir sem os males tal como o pró­prio verdadeiro Deus Supremo e todas as criaturas celestes visíveis e invisíveis que estão acima deste ar tenebroso; pelo contrário, o mal não pode existir sem o bem, pois que as naturezas em que ele se encontra são boas como naturezas. Suprime-se, pois, o mal, não lhe tirando na totalidade ou em parte a natureza que lhe acrescera, mas curando e reparando a natureza viciada e corrompida pelo mal. A vontade, portanto, não goza verdadeiramente de livre arbítrio senão quando não é escrava dos vícios e dos pecados. Tal é o dom de Deus; o homem perdeu-o por sua própria falta; só quem lho concedeu é que lho pode restituir. Por isso diz a Verdade:

Se o Filho vos libertar, então é que sereis livres na verdade [iii]

— que o mesmo é dizer: «Só estareis verdadeiramente salvos, se o Filho vos salvar». Realmente, Ele é que é o nosso libertador porque Ele é que é o nosso Salvador.

O homem vivia no agrado de Deus num paraíso não só corporal, mas também espiritual. De facto, não havia um paraíso corporal para os bens do corpo sem haver um espiritual para os bens do espírito — da mesma maneira que não havia um paraíso espiritual para gozo dos sentidos interiores sem um paraíso para gozo dos exteriores. Claro que, por causa de um e outro gozo, havia um e outro paraíso. Mas o anjo soberbo — e por isso invejoso—, que a sua soberba afasta de Deus para o virar para si próprio, preferindo, por uma espécie de ostentação própria dos «tiranos», ter súbditos a ser ele mesmo súbdito, esse anjo fora afastado dum paraíso espiritual (da sua queda e da dos seus aliados que de anjos de Deus se tornaram seus próprios anjos, tratei já, o melhor que me foi possível, nos livros décimo primeiro e décimo segundo desta obra). Com astúcia, má conselheira, procurou insinuar-se nos sentidos do homem a quem invejava por se manter erguido, ao passo que ele tinha caído. Para isso, lá no Paraíso corporal onde, com os dois homens (varão e fêmea), viviam também os outros animais terrestres, dóceis e inofensivos, escolheu, para lhes falar, como ao seu desígnio convinha, a serpente — animal escorregadio que se move em sinuosas curvas. Submetendo-a com malícia espiritual, valendo-se da sua presença angélica e da superioridade da sua natureza, usou dela com o de um instrumento para dirigir à mulher palavras falaciosas. Começou pela parte mais débil daquele par hum ano para gradualmente chegar ao todo: pensou que o homem não acreditaria facilmente nem facilmente poderia ser enganado por erro, mas cederia a erro alheio. Assim aconteceu a Aarão: não foi seduzido que consentiu em fabricar um ídolo para o povo errante, mas cedeu constrangido. Também não é e crer que Salomão tenha caído no erro de admitir que se deviam adorar os ídolos, mas foi arrastado a esse culto sacrílego pelas carícias de suas mulheres. Da mesma maneira, segundo parece, para chegar a transgredir a Lei de Deus, o primeiro homem não foi arrastado pela sedução, acreditando na verdade das palavras de sua mulher: cedeu sim devido à afeição que tinha à sua única companheira, à sua a si igual, à sua mulher. Não foi em vão que o Apóstolo disse:

E Adão não foi seduzido, mas a mulher foi seduzida.[iv]

Ela tom ou por verdadeiro o que a serpente lhe disse, mas ele não quis separar-se da sua única mulher nem mesmo na com unhão do pecado. Não foi por isso menos culpável — pois pecou com ciência e consciência. Foi por isso que o Apóstolo não disse «ele não pecou», mas sim «não foi seduzido» (non est seductus). Confirma-o quando diz:

Por um só homem entrou o pecado no mundo [v]

e, pouco depois, mais claramente ainda:

Por uma transgressão semelhante à de Adão.[vi]

Quis ainda dar a entender que «ser seduzido» é fazer o que se não considera pecado. Mas ele sabia que pecava. A não ser assim com o é que seria verdade que Adão «não foi seduzido»? Mas, não tendo a experiência da severidade divina, pôde enganar-se ao julgar que a sua falta era venial. Ele não foi seduzido como o fora sua mulher, mas enganou-se quanto ao modo por que seria julgado o que ia dizer:

A mulher que me deste por companheira, essa mesma é que mo deu e eu comi. [vii]

Para quê mais? Não foram ambos enganados por terem acreditado, mas ambos foram apanhados e envolvidos nas armadilhas do Diabo.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Mt., V, 28.
[ii] Gén., VI, 6.
[iii] Jo, VIII, 36.
[iv] I Timót., II, 14.
[v] Rom., V, 12.
[vi] Rom., V, 14.
[vii] Gen., III, 12.

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