06/05/2016

Evangelho, comentário, L. espiritual


Páscoa

Evangelho: Jo 16, 20-23

20 Em verdade, em verdade vos digo que haveis de chorar e gemer, e o mundo se há-de alegrar; haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há-de converter-se em alegria. 21 A mulher, quando dá à luz, está em sofrimento, porque chegou a sua hora, mas, depois que deu à luz a criança, já não se lembra da sua aflição, pela alegria que sente de ter nascido um homem para o mundo. 22 Vós, pois, também estais agora tristes, mas hei-de ver-vos de novo e o vosso coração se alegrará, e ninguém vos tirará a vossa alegria. 23 Naquele dia, não Me interrogareis sobre nada. «Em verdade, em verdade vos digo que, se pedirdes a Meu Pai alguma coisa em Meu nome, Ele vo-la dará.

Comentário:



Uma vez mais se insiste na alegria.


Esta virtude tão desejável por todos os homens é particularmente “obrigatória” para o cristão que se sabe filho de Deus em Cristo e este conhecimento não pode senão gerar uma alegria tão intensa e profunda que nada nem ninguém – o próprio Senhor o afirma – poderá arrebatar-lhe.


(ama, comentário sobre Jo 16, 20-23, 2015.05.15)


Leitura espiritual



SANTO AGOSTINHO – CONFISSÕES

LIVRO DÉCIMO-TERCEIRO

CAPÍTULO XXXII

A criação

Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que compõe o conjunto do Universo e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvores. Vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elemento húmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas o seu sexo coloca-a sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da acção, se submete à razão que concebe a arte do agir rectamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, no seu conjunto, são muito boas.

CAPÍTULO XXXIII

A matéria e a forma

Que as tuas obras te louvem para que te amemos! Que nós te amemos, para que as tuas obras te louvem! Elas têm o seu princípio e fim no tempo, o seu nascimento e morte, o seu progresso e decadência, a sua beleza e a sua imperfeição. Elas têm, portanto, sucessivamente a sua manhã e sua noite, umas ocultas; outras, manifestamente.

Foram feitas por ti do nada, não da tua substância, nem de nenhuma substância estranha ou inferior a ti, mas de matéria concriada, isto é, criada por ti ao mesmo tempo em que lhe deste forma, sem nenhum intervalo de tempo. Sem dúvida a matéria do céu e da terra é uma coisa, e a sua forma é outra; a tua matéria fizeste-a do nada, a forma, tu a tiraste da matéria informe.

Contudo, criaste uma e outra a um só tempo, de maneira que entre a matéria e a forma não houvesse nenhum intervalo de tempo.

CAPÍTULO XXXIV

Alegoria da criação

Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez a tua criação e da ordem que a Escritura relata. Vimos que as tuas obras, consideradas uma a uma, são boas, e no seu conjunto, muito boas. No teu Verbo, no teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar os teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens – porque pesavam sobre nós os nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. O teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade do teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste num único corpo, com as mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da terra para adquirir os do céu.

Acendeste então os luzeiros no firmamento: os teus santos, que possuem a palavra de vida e brilham pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, para difundir a fé entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dos sacramentos os milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavras sagradas, conformes ao firmamento do teu Livro, pelas quais seriam abençoados os teus fiéis. Formaste depois a alma viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bem ordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a alma, que não estava sujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridade humana para imitar, a tua imagem e semelhança; submeteste, como a mulher ao homem, a actividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que aos teus ministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida, que esses mesmos fiéis propiciassem o necessário para as suas necessidades temporais; obras valiosas de caridade, cujos frutos colherão no futuro. Vemos todas essas coisas, e todas são muito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos deste o Espírito, para que por ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas.

CAPÍTULO XXXV

Prece

Senhor Deus, tu que nos deste tudo, concede-nos a paz do repouso, a paz do Sábado, a paz do ocaso. De facto, esta formosíssima ordem de coisas muito boas, passará quando atingir o termo do seu destino, e terá a sua tarde como teve o seu amanhecer.

CAPÍTULO XXXVI

O repouso de Deus

O sétimo dia, porém, não tem crepúsculo; não entardece porque o santificaste para que se prolongue eternamente. E o repouso do teu sétimo dia, depois de ter criado tantas e tão boas obras, embora sem te causar fadiga, a palavra da tua Escritura anuncia-nos que também nós, depois de nossos trabalhos, que são bons porque assim no-lo concedeste, encontraremos o repouso em ti, no Sábado da vida eterna.

CAPÍTULO XXXVII

O repouso da alma

Então também repousarás em nós, como hoje opera em nós; e o repouso de que gozaremos será teu, como as obras que fazemos são tuas. Mas tu, Senhor, sempre estás activo e estás sempre em repouso. Tu não vês o tempo, não ages no tempo nem repousas no tempo; todavia, concede-nos que vejamos no tempo, fazes o próprio tempo e o repouso além do tempo.

CAPÍTULO XXXVIII

O descanso de Deus

Vemos, portanto, as tuas criaturas porque elas existem. Mas elas existem porque tu as vês. Olhando à nossa volta, vemos que elas existem; no nosso íntimo, vemos que são boas. Mas tu já as viste feitas quando e onde viste que deviam ser feitas. Agora somos inclinados a praticar o bem, depois que o nosso coração concebeu essa ideia no teu Espírito. Outrora estávamos inclinados ao mal, desertando de ti. Tu, porém, ó Deus, único bem, nunca cessaste de nos fazer o bem. Pela tua graça, algumas das nossas obras são boas, mas não são eternas. Esperamos, depois de realizá-las, repousar na tua grande santificação. Mas tu, que não precisas de nenhum outro bem, estás sempre em repouso, porque és teu próprio repouso.

Que homem poderá dar ao homem a compreensão desta verdade? Que anjo a outro anjo?

Que anjo ao homem? É a ti que devemos pedir, e em ti é que a devemos buscar, é à tua porta que devemos bater. E somente assim receberemos, somente assim encontraremos, somente assim se nos abrirá a tua porta.
FIM
Nota:

Stº Agostinho

Nunca deixou de me espantar o raciocínio lógico e conclusivo que torna simples e entendíveis as verdades da fé, a magnitude do "pensamento" divino, a impecável sabedoria do arquitecto da criação.

Nunca esquecendo o seu passado de vida algo desregrada e, até libertina, faz parecer que tenha sido necessário para encontrar o verdadeiro caminho.
As suas 'CONFISSÕES'' são de uma autenticidade chocante porque revelam o que verdadeiramente deve ser um coração humilhado e contrito.

Doutor da Igreja porque, verdadeiramente, ensina e faz doutrina.
Ensina com clareza, sem deixar a mais ínfima margem para a dúvida; doutrina com total segurança e certeza dizendo sempre o que é, como é, como deve ser.
Santo Agostinho tem uma dimensão gigantesca que, apesar do muito que se tem dito e escrito está ainda muito longe de esgotar-se.

Apetece-me dizer-te, Senhor, como ele: O meu coração está feito por Ti e para Ti e só se saciará quando estiver cheio de Ti. [1]

Santo Agostinho é um mestre da introspecção, do exame pessoal profundo e implacável. Estabelece como que um diálogo íntimo onde se coloca perguntas a si próprio e procura as respostas na visão de Deus.

De facto, o exame é um diálogo expressivo e vivo com o Criador.

As soluções que encontra, as respostas que obtém, estão sempre numa certeza insofismável de que lhe vêm de Deus. E espanta-se como a sua pessoa merece tal cuidado e interesse do Omnipotente, aniquilando-se e reduzindo-se a uma criatura pecadora, admite contudo que Deus lhe faça ver as verdades da fé, não porque o mereça mas porque Deus é infinitamente misericordioso.

No seu raciocínio procura respostas para tudo, tudo questiona, tudo analisa. Põe a nu uma mentalidade complexa fruto de toda uma vida de choques constantes entre a forma como a vivia e desejo de viver uma vida nova.

Sem dúvida que oração constante de sua Mãe, Santa Mónica, estará na "base" da sua conversão.

O grande problema que enfrentava era querer compreender para poder aceitar.
Como que resiste até ao último momento porque quer ter certezas, conclusões indiscutíveis e definitivas.

Finalmente percebe que o que pretende não está ao alcance do ser humano porque se trata de mistérios da Fé. Não se "entrega" sem luta mas compreende, finalmente, que se enfrenta com um dilema: tornar-se cristão recebendo o Baptismo assumindo assim a sua total dependência do Criador ou continuar na luta interior que tem vindo a travar.

E também entende que não tem - a sua mentalidade e espírito analítico não lhe permitem pensar de outro modo - não tem alternativa para o que procura - e portanto, adere à religião cristã, incorpora-se na Igreja.

A seriedade com que o faz é paradigma do seu pensamento, da dita maneira de enfrentar a vida.

Santo Agostinho é, sobretudo, um homem sério e de uma honestidade pessoal a toda a prova.

Expõe as suas dúvidas e ele próprio procura as respostas não dando tréguas a um "sistema escalpelizante", que se caracteriza por avanços progressivos de questão em questão.

Não dá um passo no seu processo de análise pessoal sem estar seguro do passo anterior estar bem assente,  resolvido.


Num processo longo mas contínuo vai como que despindo a roupagem da sua sabedoria e reduzindo a sua pessoa a um simples ser vivo absolutamente dependente do Criador.

Pede constantemente ao Senhor que o ilumine para que possa seguir em frente deixando "resolvidas" as questões que se lhe colocam.

Este homem de inteligência poderosa não tem qualquer pejo em considerar-se ignorante face à absoluta Sabedoria de Deus.


Acabará por chegar a um estado de intimidade com Deus tão profundo e completo que não tenho qualquer dúvida em considerar como estado de santidade.


Para mim, aparte tudo o mais, Santo Agostinho é o exemplo de seriedade intelectual e honestidade de pensamento. Não se impondo limites nas questões interroga sobre tudo em que não está absolutamente seguro, das coisas mais simples às mais elevadas, das evidências dos mistérios porque considera e com razão, que o Senhor tem todas as respostas e que não deixará de lhas dar, não por seu mérito mas pela Sua Misericórdia.


É talvez o maior exemplo do acatamento das palavras de Jesus: batei à porta e abrir-se-vos-á, procurai e encontrareis.


Aconselho vivamente a leitura dos seus livros, nomeadamente “Confissões” e “Cidade de Deus”, uma leitura detida e pautada por um sincero desejo de aprender as verdades da nossa Fé.

ama, 2016






[1] Enxomil, 2010.02.24

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