Leitura espiritual
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A Cidade de Deus |
Vol. 1
LIVRO
V
CAPÍTULO X
Se alguma forma de
necessidade domina a vontade humana.
Não
há, pois, que temer a necessidade. Porque a temeram, os estóicos procuraram
distinguir as causas dos seres de tal forma que subtraíram algumas a essa
necessidade e lhe submeteram outras. Entre as causas que pretenderam subtrair à
necessidade puseram eles as nossas vontades, com receio de as privarem de
liberdade ao sujeitarem-nas à necessidade.
Se
de facto devemos apelidar de necessidade aquela força que não está em nosso
poder e que realiza, mesmo que o não queiramos, o que está nas suas
potencialidades (a necessidade da morte, por exemplo) é manifesto que a nossa
vontade, que nos faz viver bem ou mal, não está submetida a esta necessidade.
Fazemos efectivamente muitas coisas que, se não quiséssemos, decerto não
faríamos. E em primeiro lugar o próprio querer: se queremos, o querer existe,
se não queremos, não existe porque não quereremos se não quisermos. Mas, se se
definir a necessidade segundo a expressão «é necessário que tal coisa seja ou
se faça assim» — não sei porque é que havemos de recear que ela nos vá tirar a
liberdade da vontade. Certamente que não submetemos a vida de Deus nem a
presciência de Deus à necessidade quando dizemos — é necessário que Deus viva
sempre e tudo saiba com antecipação; como também se não minora o seu poder
quando se diz que ele não pode morrer nem enganar-se. Certamente que não o pode
— mas de tal modo que, se o pudesse, ele teria um poder menor. É, pois,
correctamente que se chama omnipotente quem todavia não pode nem morrer nem
enganar-se. Realmente, chama-se omnipotente porque faz o que quer e não porque
suporta o que não quer: se isto lhe acontecesse, deixaria de ser omnipotente.
Não pode certas coisas precisamente porque é omnipotente.
Assim
é também ao dizermos que é necessário, quando queremos, querer com livre
arbítrio. Dizemos sem a menor dúvida a verdade, sem, todavia, sujeitarmos o
nosso livre arbítrio a uma necessidade que suprime a liberdade. As nossas
vontades são, pois, nossas; elas próprias fazem tudo o que fazemos quando
queremos e que não se faria se não quiséssemos.
Mas
quando alguém, sem querer, suporta alguma coisa por vontade de outros homens —
mesmo neste caso é a vontade que se exerce: embora não seja vontade do próprio
é sempre vontade de um homem. Todavia, o poder é de Deus. (Porque, se se
tratasse apenas de uma vontade que fosse incapaz de fazer o que quer — ela
estaria impedida por uma vontade mais forte. Mesmo neste caso, a vontade não
seria outra coisa mais que vontade, e não de outrem, mas de quem estivesse
querendo, embora o seu desejo se não pudesse cumprir). Por isso é que tudo o
que o homem suporta contra sua vontade, não deve atribuí-lo às vontades dos
homens nem à dos anjos nem à de qualquer espírito criado, mas sim à vontade
d’Aquele que concede o poder àqueles que são capazes de querer.
Portanto,
lá porque Deus previu o que viria a acontecer na nossa vontade, não se segue
que nenhum poder tenha havido nela. Porque quem isso previu alguma coisa
previu. Ora, se, prevendo o que se passaria na nossa vontade, ele previu não
com certeza um puro nada, mas algo de real, sem dúvida conforme a sua própria
previdência, alguma coisa depende da nossa vontade. Consequentemente, de modo
nenhum somos obrigados nem a suprimir o livre arbítrio, mantendo a presciência
de Deus, nem a negar a presciência de Deus (o que é sacrílego), mantendo o
livre arbítrio. Pelo contrário: abraçamos uma e outra verdade, uma e outra
confessamos fiel e sinceramente — uma para bem querer, a outra para bem viver.
Porque vive-se mal se não se acreditar rectamente em Deus. Longe de nós,
portanto, negar, para permanecermos livres, a presciência d’Aquele por cujo
poder somos ou seremos livres.
Consequentemente,
não é em vão que há leis, reprimendas, exortações, louvores e censuras. Tudo
isto ele previu e vale tanto quanto ele previu que havia de valer. Também as
preces valem para se obterem os bens que ele previu conceder aos que oram. É de
toda a justiça que se estabeleçam prémios para as boas acções e castigos para
os pecados. E nem é por Deus ter previsto que havia de ' pecar que o homem
peca. Pelo contrário, está fora de dúvida que, quando peca, é ele, homem, que
peca — porque Aquele cuja presciência é infalível, sabia já que não seria o
destino, nem a fortuna, nem outra qualquer causa, mas que seria o próprio homem
que iria pecar. E se Ele não quiser, certamente que não pecará — mas, se não
quiser pecar, também isso Ele previu.
CAPÍTULO XI
A Providência universal de
Deus a cujas leis tudo está submetido.
Efectivamente
este supremo e verdadeiro Deus que, com o seu Verbo e o seu Espírito Santo, são
Três em Um;
este Deus único, omnipotente, criador e autor
de toda a alma e de todo o corpo, de cuja beatitude participam todos os que em
verdade e não em ilusão são felizes;
que fez do homem um animal racional, composto
de um corpo e de uma alma, e que não permitiu, quando este homem pecou, que
ficasse impune, nem o abandonou sem misericórdia;
que aos bons e aos maus deu o ser como às
pedras, a vida vegetativa como às plantas, a vida sensitiva como aos animais, a
vida intelectual apenas como aos anjos;
de quem procedem toda a regra, toda a forma e
toda a ordem;
de quem procedem a medida, o número, o peso;
de quem procede tudo o que tem uma natureza,
tudo o que tem um género, tudo o que tem um preço, seja ele qual for;
de quem procedem os gérmenes das formas, as
formas dos gérmenes, o movimento das formas e dos gérmenes;
que deu à carne a sua origem, a sua beleza, a
sua saúde, a fecundidade da sua propagação, a disposição dos seus membros, a
sua salutar harmonia;
que à própria alma irracional deu memória,
sensibilidade, instinto, e à racional deu ainda espírito, inteligência,
vontade;
que não deixou de conceder, não somente ao
céu e à terra, não somente ao anjo e ao homem, mas também aos órgãos do mais
pequenino e do mais desprezível dos animais, à mais pequena das penas da ave, à
flor dos campos, à tolha da árvore, a harmonia das suas partes e como que uma
certa paz — seria de todo inconcebível que Ele quisesse deixar o reino dos
homens, as suas dominações e as suas sujeições tora das leis da sua
Providência.
CAPÍTULO XII
Por que costumes os antigos
Romanos mereceram que o verdadeiro Deus, embora ainda o não adorassem,
dilatasse o seu Império.
Vejamos, então, quais foram os costumes dos
Romanos e qual foi a causa por que se dignou prestar-lhes ajuda, para o engrandecimento
do Império, o verdadeiro Deus em cujo poder estão até mesmo os reinos da Terra.
Para que o pudéssemos expor com mais precisão, escrevemos sobre este caso o
livro precedente, onde mostrámos ser nulo nesta matéria o poder dos deuses que
eles têm julgado deverem ser venerados com ritos ridículos. As partes
precedentes deste livro, até este momento, tiveram por objecto eliminar a
questão do destino, não fosse acontecer que alguém, já persuadido de que a
propagação e a manutenção do Império Romano se não devem ao culto de tais
deuses, as vá agora atribuir a não sei que destino em vez de as atribuir à
vontade poderosíssima de Deus Supremo.
Os
antigos romanos, os dos primeiros tempos, tanto quanto a história no-lo ensina
e garante, embora como as outras nações, à excepção apenas do povo dos hebreus,
adorassem falsos deuses e imolassem vítimas, não a Deus, mas aos demónios,
todavia
eram
ávidos de louvores, pródigos quanto ao dinheiro, aspiravam por elevada glória e
fortuna honesta [i].
Esta
foi a sua paixão mais ardente. Por ela queriam viver. Por ela não hesitavam em
morrer. Por esta desmesurada paixão, abafaram todas as outras paixões.
Finalmente, porque consideravam vergonha para a sua pátria servir e uma glória
dominar e imperar, desejaram com todo o empenho, antes de tudo, que ela fosse
livre e depois que fosse soberana.
É
por isso que, não suportando o domínio da realeza, criaram uma autoridade
renovável todos os anos e partilhavam- -na por dois chefes chamados cônsules,
palavra derivada de consulere (aconselhar), em vez de lhes chamarem reis
(reges) ou senhores (domini), palavras que derivam de regnare (reinar) e de
dominare (dominar) [ii].
E
isto embora se pudesse usar muito bem a palavra reges (reis) que deriva do verbo regere
(dirigir, governar), tal como regnum (reino, poder) deriva de reges,
e reges, como acima disse, de regere.
Pareceu-lhes,
porém, que o fausto régio não era próprio da vida disciplinada de um dirigente
nem da benevolência de um conselheiro, mas da soberba de um tirano. Por isso,
depois da expulsão do rei Tarquínio e da instituição dos cônsules, seguiu-se o
que o citado autor descreve assim no seu elogio dos Romanos:
Conquistada
que foi a liberdade, a cidade — facto incrível na história—, desenvolveu-se com
extrema rapidez, tão grande era a paixão da glória que a animava [iii].
Foram,
pois, esta avidez do louvor e esta paixão da glória que realizaram tantas
maravilhas, dignas por certo de louvores e de glória segundo o juízo dos
homens.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Salústio.
(latil., VII, 6.
[ii] Salústio,
Catil., VII, 6.
[iii] Salústio,
Catil., VII, 3.