Leitura espiritual
A Cidade de Deus |
Vol. 1
LIVRO
V
CAPITULO VIII
Os que dão o nome de
destino, não à posição dos astros, mas à conexão das causas que depende da
vontade de Deus.
Há
ainda os que dão o nome de destino, não à posição dos astros tal como se
verifica quando cada coisa é concebida, nasce ou principia, mas à conexão e à
série de causas que faz com que tudo seja o que é. Não vale a pena estabelecer
com eles uma laboriosa controvérsia por causa de uma palavra. É que atribuem
essa ordenação e uma certa conexão das causas à vontade e ao poder de um Deus
supremo que — acreditamo-lo da melhor vontade e em toda a verdade —, conhece
todas as coisas antes que elas aconteçam e nada deixa em desordem. E dele que
vêm todos os poderes, embora dele não venham todas as vontades. Que entendem
por destino principalmente a própria vontade de um Deus Supremo cujo poder
insuperável se estende a todos os seres — prova-se por estes versos que, se não
me engano, são de Aneu Séneca:
Conduz-me,
pai soberano, senhor das alturas do céu, Para onde te aprouver. Obedecer-te-ei
sem demora. Aqui estou sem preguiça. Faz com que eu não queira e gemendo te
seguirei. E, posto que culpado, suportarei o que ao bom apraz. Os destinos
guiam o que obedece e forçam o que resiste [i].
É
de toda a evidência que neste último verso ele chama destino ao que acima
designara por vontade do Pai soberano. Diz que está preparado para lhe
obedecer, para ser de boa vontade conduzido, com receio de ser arrastado contra
vontade — porque
os
destinos guiam o que obedece e forçam o que resiste [ii].
Apoiam
este pensamento estes versos de Homero que Cícero traduziu para latim:
São
as mentes dos homens como a luz com que o próprio pai Júpiter quis iluminar a
terra fecunda.
A
opinião de um poeta pouca autoridade teria nesta questão; mas, porque ele
(Cícero) diz que os estóicos, para defenderem a força do destino, costumam
citar estes versos de Homero, não se trata já da opinião de um poeta mas da dos
filósofos. É por meio destes versos, que eles utilizam nas suas discussões, que
a sua doutrina acerca do destino se manifesta com clareza. Chamam eles Júpiter
ao que crêem ser o Deus Supremo, de quem depende, dizem eles, toda a conexão
dos destinos.
CAPÍTULO IX
A presciência de Deus e a
livre vontade do homem, contra a definição de Cícero.
Cícero
esforça-se por os refutar, mas julga que nada pode contra eles a não ser que
suprima a adivinhação. Para o conseguir, chega a negar que haja conhecimento do
futuro e sustenta com todas as suas forças que nenhuma previsão dos factos pode
haver, quer nos homens quer em _ Deus. Desta maneira, não só nega a presciência
de Deus, mas também procura destruir toda a profecia, mesmo que ela seja mais
clara do que a luz, com vãos argumentos e opondo a si mesmo certos oráculos que
facilmente se podem refutar — mas nem sequer isto mesmo consegue.
Mas,
ao refutar as conjecturas dos astrólogos, a sua retórica triunfa porque elas na
verdade são de tal jaez que a si próprias se destroem e se refutam. Todavia,
são muito mais desculpáveis os que admitem a fatalidade astral do que ele, que
suprime a presciência do futuro. Efectivamente, é extremada insânia admitir que
Deus existe e negar-lhe o conhecimento do futuro.
Quando
ele próprio se deu conta disso escreveu um texto sobre a ideia que a Escritura
condensa na frase:
Disse
o louco no seu coração: Não há Deus [iii],
mas
sem o fazer em seu próprio nome. Viu quanto isso seria revoltante e molesto e
encarregou Cota, nos livros De natura
deorum [iv],
de sustentar a discussão acerca desta matéria contra os estóicos; mas antes
quis pôr-se do lado de Lucílio Balbo, a quem tinha confiado a defesa das
opiniões dos estóicos, do que do lado de Cota que nega que haja qualquer
natureza divina. Mas nos livros De
divinatione [v],
é em seu próprio nome que abertamente ataca a presciência do futuro. Parece que
Cícero fez tudo isto para que, admitindo-se o destino, se não negue a vontade
livre. Pensa ele que, uma vez admitida a ciência do futuro, o destino se toma
uma consequência necessária e inegável. Mas aonde quer que levem tão tortuosas
controvérsias e as discussões dos filósofos, o que nós confessamos é que há um
Deus Supremo e verdadeiro, tal como confessamos a sua vontade, o seu poder
supremo e a sua presciência; nem temos medo de poder fazer sem vontade o que
voluntariamente fazemos, lá porque prevê o que havemos de fazer Aquele cuja presciência
se não pode enganar. Foi este receio que levou Cícero a impugnar a presciência
e os estóicos a dizerem que nem tudo acontece necessariamente, embora sustentem
que tudo acontece fatalmente.
Que
é, pois, que Cícero receou na presciência do futuro, para procurar abalá-la com
uma argumentação detestável? Isto: se os acontecimentos futuros são todos
previstos, cumprir-se-ão pela mesma ordem por que foram previstos. Se vierem
por essa ordem, então a ordem das coisas está determinada pela presciência de
Deus; se a ordem dos acontecimentos está determinada, determinada está também a
ordem das causas, pois nada pode acontecer que não seja precedido de uma causa
eficiente. Se, portanto, a ordem das coisas, pela qual acontece tudo o que
acontece, está determinada, fatalmente acontece, diz ele, tudo o que acontece.
Mas, se assim é, nada está no nosso poder, e nenhum arbítrio da vontade existe.
Mas, se tal admitirmos, acrescenta ele, toda a vida humana se subverte, em vão
se proferem leis, em vão recorremos às censuras ou aos louvores, às críticas ou
às exortações, nem haverá mais justiça como prémio para os bons, nem castigos
instituídos para os maus.
É,
pois, para evitar à humanidade estas consequências indignas, absurdas e
perniciosas que ele nega a presciência do futuro. Encerra a alma religiosa no
angustioso dilema de escolher de duas uma — ou a nossa vontade tem algum poder,
ou existe uma presciência do futuro. Porque, assim pensa, uma e outra não podem
coexistir: se admitirmos uma, negamos a outra; se escolhermos a presciência do
futuro, suprimimos o arbítrio da vontade; se escolhermos o arbítrio da vontade,
suprimimos a presciência do futuro. E assim ele, grande e douto varão, tantas
vezes e com tal mestria defensor da vida humana, das duas coisas escolheu o
livre arbítrio da vontade; mas, para o consolidar, negou a presciência do
futuro e assim, querendo fazer os homens livres, fê-los sacrílegos.
Mas
a alma religiosa escolhe uma e outra, confessa uma e outra e fundamenta uma e
outra na fé religiosa. Como? Pergunta. Porque, se há uma presciência do futuro,
seguem-se todos aqueles acontecimentos que são conexos até se chegar ao ponto
em que na nossa vontade já nada há. Mas, se, pelo contrário, alguma coisa
depende da nossa vontade, os mesmos argumentos virados do avesso, nos levam a
demonstrar que não há presciência do futuro. Eis como se viram do avesso todas
essas questões: se há um arbítrio da vontade — nem tudo acontece fatalmente; se
nem tudo acontece fatalmente, a ordem das causas não está determinada; se a
ordem das causas não está determinada, também não está determinada na
presciência de Deus a ordem dos acontecimentos, porque eles não se podem
realizar sem causas que os precedam e os produzam; se a ordem dos acontecimentos
não está determinada pela presciência divina eles não acontecem todos como Deus
previu que aconteceriam: e portanto em Deus, diz ele, não há presciência de
todos os futuros.
É
contra estas audácias ímpias e sacrílegas que nós afirmamos, não só que Deus
conhece todos os acontecimentos antes que eles se verifiquem, mas também que
fazemos voluntariamente tudo o que sabemos e temos consciência de que o fazemos
apenas porque o queremos.
Não
dizemos que tudo acontece fatalmente; dizemos antes que nada acontece
fatalmente; porque a palavra fatal ou
destino, no sentido que é costume
dar-se-lhe, isto é, designando a posição dos astros no momento em que cada um é
concebido ou nasce, demonstramos que nada vale, porque é uma expressão sem
sentido. Mas a ordem das causas com que a vontade de Deus muito pode, nem a
negamos nem a designamos com o nome de destino
salvo, talvez, no sentido que se lhe dá ao derivar fatum (destino) de fari
(falar). Não podemos, na verdade, negar o que foi escrito nas Sagradas
Escrituras:
Deus
falou uma vez e eu ouvi duas coisas: o poder pertence a Deus e a ti, Senhor, a
misericórdia, a ti que recompensas cada um conforme as suas obras [vi].
Estas
palavras semel locutus est [vii]
significam: ele proferiu uma «palavra imóvel» isto é, «irrevogável», tal como
conhece irrevogavelmente tudo o que virá a acontecer e tudo o que Ele mesmo
terá a fazer.
Com
este sentido poderíamos fazer derivar fatum
(destino) de fari (falar) se não
fosse costume entender-se por esta palavra uma outra coisa para a qual não
queremos que o coração dos homens se incline. Mas pelo facto de a ordem das
causas estar determinada para Deus, não se conclui que nada depende do arbítrio
da nossa vontade. É que as nossas próprias vontades pertencem à ordem causal,
certa para Deus e contida na sua presciência. As vontades humanas são
efectivamente as causas das acções humanas, e, por conseguinte, aquele que
previu todas as causas das coisas não pôde ignorar, entre as causas, as nossas
próprias vontades, pois que previu as causas das nossas acções.
Mas
mesmo o que Cícero concede — que nada acontece sem ser precedido de uma causa
eficiente — é bastante para o refutar nesta questão. Para que lhe serve,
efectivamente, afirmar que nada acontece sem causa, mas que nem toda a causa é
fatal, pois que há causas fortuitas, causas naturais, causas voluntárias? Basta
que reconheça que nada acontece senão em virtude de uma causa anterior. As
causas que se chamam fortuitas, donde fortuna tirou o nome, não dizemos que não
existem. Dizemos antes que estão escondidas. E atribuímo-las à vontade do
verdadeiro Deus ou de qualquer outro espírito. E as pró prias causas naturais
de forma nenhuma as separamos da vontade d’Aquele que é o autor e o criador de
toda a natureza. Até mesmo as causas voluntárias provêm ou de Deus ou dos
anjos, ou dos homens ou de alguns animais, se é que se podem chamar vontades a
esses movimentos das almas privadas de razão, que as levam a agir conforme a sua
natureza quando sentem algum desejo ou aversão. Mas por vontade dos anjos
entendo, quer a dos bons, a que chamamos anjos de Deus, quer a dos maus, a que
chamamos anjos do Diabo ou ainda demónios. Da mesma forma a dos homens, quer
dos bons quer dos maus.
Daqui
se colhe que não há causas eficientes de tudo o que acontece que não sejam
voluntárias, isto é, procedentes dessa natureza que é sopro (spiritus) de vida. E que também se chama
sopro (spiritus) ao ar ou ao vento.
Mas este, porque é um corpo, não é sopro (spiritus)
da vida. Porém o sopro (spiritus) de
vida que tudo vivifica e é criador de todo o corpo e de todo o espírito (spiritus) criados, é o próprio espírito
(spiritus) inteiramente incriado. Na
sua vontade está o poder supremo que ajuda as vontades boas dos espíritos
criados, julga as vontades más e a todas ordena, dando poderes a umas e
recusando-os a outras. De facto, assim como é o criador de todas as naturezas,
assim é também o dispensador de todos os poderes, mas não de todos os quereres.
Realmente, as vontades más não procedem d’Ele porque são contrárias à natureza,
que, essa sim, provém d’Ele. Por isso os corpos estão submetidos às vontades —
uns às nossas, isto é, de todos os seres viventes mortais e, aliás, mais os dos
homens do que os dos animais; outros às dos anjos; mas todos estão submetidos
principalmente à vontade de Deus, de quem dependem também todos os quereres, porque eles não têm outros
poderes que não sejam os que Ele lhes concede.
Também
a causa das coisas, que faz mas não é feita, é Deus. Mas há as outras causas
que fazem e são feitas: como são todos os espíritos criados, principalmente os
racionais. Mas as causas corporais que são mais actuadas do que actuantes, nem
sequer entre as causas eficientes devem ser enumeradas, porque o que elas podem
realizar é apenas o que as vontades dos espíritos produzem, delas se servindo.
Como
é, então, que a ordem das causas que está determinada (certa) na presciência de Deus faz com que nada dependa da nossa
vontade quando nessa mesma ordem de causas as nossas vontades ocupam lugar
importante? Pois lá se avenha Cícero com aqueles que afirmam ser fatal esta
ordem de causas ou, melhor dizendo, dão o nome de destino a essa ordem — o que
nos causa repulsa principalmente porque com tal palavra é costume nada se
entender na realidade. Mas, quando Cícero nega que a ordem de todas as causas
está totalmente determinada (certíssima)
e perfeitamente conhecida (notissima)
da presciência de Deus, mais do que os estóicos detestamos nós essa opinião.
Efectivamente, ou ele nega a existência de Deus, como tentou fazê-lo por
interposta pessoa nos livros De natura
deorum [viii],
ou então confessa a sua existência mas nega a sua presciência do futuro, e
nesse caso nada mais faz do que repetir o
que disse o insensato em seu coração: Não há Deus [ix].
Efectivamente, quem não tem a presciência de todos os acontecimentos futuros
certamente que não é Deus. Aí está porque é que mesmo as nossas vontades apenas
podem o que Deus quis e previu que pudessem.
Portanto,
o que elas podem, podem-no com certeza, e serão elas próprias que hão-de fazer
o que devem fazer — porque o que elas poderão e terão a fazer, isso mesmo foi
previsto por Aquele cuja presciência não se pode enganar.
Por
isso, se me agradasse aplicar o nome de «destino» a qualquer coisa, preferia
dizer: «o destino aplica-se ao inferior, e ao superior aplica-se a vontade que
o mantém submetido ao seu poder», a retirar à vontade o arbítrio na ordem de
causas a que os estóicos costumam apelidar, sem repugnância, de destino.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[v] «Acerca
da adivinhação». Trata-se antes do De Fato (O destino) e não do De divinatione
que Santo Agostinho não utilizou no De Civitate Dei.
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