A leitura tem feito muitos santos.
(S. josemaria, Caminho 116)
Está aconselhada a leitura espiritual diária de mais ou menos 15 minutos. Além da leitura do novo testamento, (seguiu-se o esquema usado por P. M. Martinez em “NOVO TESTAMENTO” Editorial A. O. - Braga) devem usar-se textos devidamente aprovados. Não deve ser leitura apressada, para “cumprir horário”, mas com vagar, meditando, para que o que lemos seja alimento para a nossa alma.
Para ver, clicar SFF.
Para ver, clicar SFF.
Evangelho: Jo 8, 1-20
1 Jesus foi para o
monte das Oliveiras. 2 Ao romper da manhã, voltou para o templo e todo o povo
foi ter com Ele, e Ele, sentado, os ensinava. 3 Então os escribas e os fariseus
trouxeram-Lhe uma mulher apanhada em adultério; puseram-na no meio, 4 e
disseram-Lhe: «Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante delito de
adultério. 5 Ora Moisés, na Lei, mandou-nos apedrejar tais mulheres. E Tu que
dizes?». 6 Diziam isto para Lhe armarem uma cilada, a fim de O poderem acusar. Porém,
Jesus, inclinando-Se, pôs-Se a escrever com o dedo na terra. 7 Continuando,
porém, eles a interrogá-l'O, levantou-Se e disse-lhes: «Aquele de vós que
estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire uma pedra». 8 Depois, tornando
a inclinar-Se, escrevia na terra. 9 Mas eles, ouvindo isto, foram-se retirando,
um após outro, começando pelos mais velhos; e ficou só Jesus com a mulher
diante d'Ele. 10 Então, levantando-Se, disse-lhe: «Mulher, onde estão os que te
acusavam? Ninguém te condenou?». 11 Ela respondeu: «Ninguém, Senhor». Então
Jesus disse: «Nem Eu te condeno; vai e doravante não peques mais». 12 Outra vez
lhes falou Jesus, dizendo: «Eu sou a luz do mundo; quem Me segue não anda nas
trevas, mas terá a luz da vida». 13 Os fariseus disseram-Lhe: «Tu dás
testemunho de Ti mesmo; o Teu testemunho, por isso, não é verdadeiro». 14 Jesus
respondeu: «Embora Eu dê testemunho de Mim mesmo, o Meu testemunho é
verdadeiro, porque sei donde vim e para onde vou, mas vós não sabeis donde
venho, nem para onde vou. 15 Vós julgais segundo a carne, Eu não julgo a
ninguém; 16 e, se julgo alguém, o Meu juízo é verdadeiro, porque Eu não estou
só, mas comigo está o Pai que Me enviou. 17 Na vossa Lei está escrito que o
testemunho de duas pessoas é digno de fé. 18 Sou Eu que dou testemunho de Mim
mesmo e Meu Pai que Me enviou também dá testemunho de Mim». 19 Disseram-Lhe,
pois: «Onde está Teu Pai?». Jesus respondeu: «Não conheceis nem a Mim nem a Meu
Pai; se Me conhecêsseis a Mim, certamente conheceríeis também Meu Pai». 20 Estas
palavras disse-as Jesus nas dependências do Tesouro, ensinando no templo; e
ninguém O prendeu, porque ainda não tinha chegado a Sua hora.
CRISTO QUE PASSA 083 a 109
83
Antes
do dia da festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar
deste mundo ao Pai, tendo amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao
fim. Este versículo de S. João anuncia ao leitor que vai acontecer algo de
importante nesse dia. É um preâmbulo terno e afectuoso, que corresponde àquele
que S. Lucas recolhe no seu relato: Tenho desejado ardentemente - afirma o
Senhor - comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer.
Devemos
começar desde já por pedir ao Espírito Santo que nos prepare de forma a
podermos compreender todas as expressões e todos os gestos de Jesus Cristo,
porque queremos viver vida sobrenatural, porque o Senhor nos manifestou a sua
vontade de se nos oferecer como alimento da alma e porque reconhecemos que só
Ele tem palavras de vida eterna.
A
fé leva-nos a confessar com Simão Pedro: nós acreditamos e conhecemos que tu és
Cristo, Filho de Deus. E é também ela, fundida com a nossa devoção, que nesses
momentos transcendentes nos incita a imitar a audácia de João. Assim,
aproximamo-nos de Jesus e reclinamos a cabeça no peito do Mestre que, como acabamos
de ouvir, por amar ardentemente os seus, os iria amar até ao fim.
Todos
os modos de dizer são demasiadamente pobres quando pretendem explicar, mesmo de
longe, o mistério da Quinta-Feira Santa. No entanto, não é difícil imaginar os
sentimentos do Coração de Jesus Cristo naquela tarde, a última que passava com
os seus antes do sacrifício do Calvário.
Lembremo-nos
da experiência tão humana da despedida de duas pessoas muito amigas. Desejariam
ficar sempre juntas, mas o dever - ou seja o que for - obriga-as a afastar-se
uma da outra. Não podem, portanto, continuar uma junto das outra, como seria do
seu gosto. Nestas ocasiões, o amor humano, que por maior que seja, é sempre
limitado, costuma recorrer aos símbolos. As pessoas que se despedem trocam
lembranças entre si, talvez uma fotografia onde se escreve uma dedicatória tão
calorosa, que até admira que não arda o papel. Mas não podem ir além disso,
porque o poder das criaturas não vai tão longe como o seu querer.
Ora
o que não está na nossa mão, consegue-o o Senhor. Jesus Cristo, perfeito Deus e
perfeito Homem, não deixa um símbolo, mas uma realidade. Fica Ele mesmo. Embora
vá para o Pai, permanece entre os homens. Não nos deixará um simples presente
que nos faça evocar a sua memória, alguma imagem que tenda a apagar-se com o
tempo, como uma fotografia que a pouco e pouco se vai esvaindo e amarelecendo
até perder o sentido para quem não interveio naquele momento amoroso. Sob as
espécies do pão e do vinho está Ele, realmente presente, com o seu Corpo, o seu
Sangue, a alma e a sua Divindade.
84
A alegria da Quinta-Feira
Santa
Como
é fácil de explicar agora o clamor incessante dos cristãos diante da Hóstia
Santa, em todos os tempos! Canta, ó língua, o mistério do Corpo glorioso e do
Sangue precioso que o Rei dos povos, filho do ventre fecundo, derramou para
resgate do mundo. É preciso adorar devotamente este Deus escondido. Ele é o
mesmo Jesus Cristo que nasceu da Virgem Maria; o mesmo, que padeceu e foi
imolado na Cruz; o mesmo, enfim, de cujo peito trespassado jorrou água e
sangue.
Este
é o sagrado banquete em que se recebe o próprio Cristo e se renova a memória da
Paixão e, com Ele, a alma pode privar na intimidade com o seu Deus e possui um
penhor da glória futura. Assim, a liturgia da Igreja resumiu, em breve estrofe,
os capítulos culminantes da história da ardente caridade que o Senhor tem para
connosco.
O
Deus da nossa fé não é um ser longínquo, que contempla com indiferença a sorte
dos homens, os seus afãs, as suas lutas, as suas angústias. É um pai que ama os
seus filhos até ao ponto de enviar o Verbo, Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade, a fim, com a sua encarnação, morrer por nós e nos redimir. É ele
ainda o mesmo Pai amoroso que agora nos atrai suavemente para Si, mediante a
acção do Espírito Santo que habita nos nossos corações.
A
alegria da Quinta-Feira Santa parte, portanto, do facto de nós compreendermos
que o Criador se desfez em carinho pelas suas criaturas. Nosso Senhor Jesus
Cristo, como se já não fossem suficientes todas as outras provas da sua
misericórdia, institui a Eucaristia para que possamos tê-Lo sempre perto de nós
e porque - tanto quanto nos é possível entender - movido pelo seu Amor, Ele,
que de nada necessita, não quis prescindir de nós. A Trindade apaixonou-se pelo
homem, elevado à ordem da graça e feito à sua imagem e semelhança, redimiu-o do
pecado - do pecado de Adão que se propagou a toda a sua descendência e dos
pecados pessoais de cada um - e deseja vivamente morar na nossa alma, como diz
o Evangelho: se alguém Me ama, guardará a minha palavra, e Meu Pai o amará, e
nós viremos a ele, e faremos nele morada:
85
A Eucaristia e o mistério
da Trindade
Esta
corrente trinitária de amor pelos homens perpetua-se de maneira sublime na
Eucaristia. Há já muitos anos, todos aprendemos no catecismo que a Sagrada
Eucaristia pode ser considerada como Sacrifício e como Sacramento e que o
sacramento se nos apresenta como Comunhão e como um tesouro no altar, mais
concretamente, no Sacrário.
A
Igreja dedica outra festa ao mistério eucarístico - Corpus Christi - presente
em todos os tabernáculos do mundo. Hoje, Quinta-feira Santa, vamos deter-nos na
Sagrada Eucaristia, Sacrifício e alimento, na Santa Missa e na Sagrada
Comunhão.
Falava
de corrente trinitária de amor pelos homens. E onde poderá alguém aperceber-se
melhor dela do que na Missa? Toda a Trindade actua no santo sacrifício do
altar. Por isso agrada-me tanto repetir na colecta, na secreta e na oração
depois da comunhão aquelas palavras finais: Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso
Filho, - dirigimo-nos ao Pai - , que conVosco vive e reina na unidade do
Espírito Santo, Deus por todos os séculos dos séculos. Ámen.
Na
Santa Missa, a oração ao Pai é constante. O sacerdote é um representante do
Sacerdote eterno, Jesus Cristo, que é ao mesmo tempo a Vítima. E a acção do
Espírito Santo não é menos inefável nem menos certa. Pela virtude do Espírito
Santo, escreve S. João Damasceno, dá-se a conversão do pão no Corpo de Cristo.
Esta
acção do Espírito Santo exprime-se claramente, quando o sacerdote invoca a
bênção divina sobre a oferenda: Vinde, ó Deus santificador, eterno e
omnipotente, e abençoai este sacrifício preparado para o vosso santo nome, o
holocausto que dará ao Nome santíssimo de Deus a glória que lhe é devida. A
santificação, que imploramos, é atribuída ao Paráclito, que o Pai e o Filho nos
enviam. Reconhecemos também essa presença activa do Espírito Santo no
sacrifício quando dizemos, pouco antes da comunhão: Senhor Jesus Cristo, Filho
de Deus vivo, que, por vontade do Pai, com a cooperação do Espírito Santo, com
a vossa morte destes a vida ao mundo....
86
Toda
a Trindade está presente no sacrifício do Altar. Por vontade do Pai, com a
cooperação do Espírito Santo, o Filho oferece-Se em oblação redentora.
Aprendamos a conhecer e a relacionar-nos com a Santíssima Trindade, Deus Uno e
Trino, três pessoas divinas na unidade da sua substância, do seu amor e da sua
acção eficaz e santificadora.
Logo
a seguir ao lavabo, o sacerdote invoca: Recebei, ó Santíssima Trindade, esta
oblação que Vos oferecemos em memória da Paixão, Ressurreição e Ascensão de
Nosso Senhor Jesus Cristo. E, no final da Santa Missa, há outra oração de
inflamada reverência ao Deus Uno e Trino: Placeat tibi, Sancta Trinitas,
obsequium servitutis meae... agradável Vos, seja, ó Trindade Santíssima, o
obséquio da minha vassalagem: fazei que por misericórdia este Sacrifício
oferecido por mim, posto que indigno aos olhos da vossa Majestade, Vos seja
aceitável, e que para mim e para todos aqueles por quem o ofereci, seja um
sacrifício de perdão.
A
Santa Missa - insisto - é acção divina, trinitária, não humana. O sacerdote que
celebra serve o desígnio divino do Senhor pondo à sua disposição o seu corpo e
a sua voz. Não age, porém, em nome próprio, mas in persona et in nomine
Christi, na Pessoa de Cristo e em nome de Cristo.
O
amor da Trindade pelos homens faz com que, da presença de Cristo na Eucaristia,
nasçam para a Igreja e para a humanidade todas as graças. Este é o sacrifício
que profetizou Malaquias: desde o nascer do sol até ao poente, o meu nome é
grande entre as nações, e em todo o lugar se sacrifica e se oferece ao meu nome
uma oblação pura. É o Sacrifício de Cristo, oferecido ao Pai com a cooperação
do Espírito Santo, oblação de valor infinito, que eterniza em nós a Redenção,
que os sacrifícios da Antiga Lei não conseguiam alcançar.
87
A Santa Missa na vida do
cristão
A
Santa Missa situa-nos deste modo perante os mistérios primordiais da fé, porque
se trata da própria doação da Trindade à Igreja. Compreende-se assim que a
Missa seja o Centro e a raiz da vida espiritual do cristão. É o fim de todos os
sacramentos. Na Santa Missa, a vida da graça encaminha-se para a sua plenitude,
que foi depositada em nós pelo Baptismo, e que cresce, fortalecida pela
Confirmação. Quando participamos na Eucaristia, escreve S. Cirilo de Jerusalém,
experimentamos a espiritualízação deificante do Espírito Santo, que além de nos
configurar com Cristo, como sucede no Baptismo, nos cristifica integralmente,
associando-nos à plenitude de Cristo Jesus.
A
efusão do Espírito Santo, na medida em que nos cristifica, leva-nos a
reconhecer como filhos de Deus. O Paráclito, que é caridade, ensina-nos a
fundir com essa virtude toda a vida. Por isso, feitos uma só coisa com Cristo,
consummati in unum, podemos ser entre os homens o que Santo Agostinho afirma da
Eucaristia: sinal de unidade, vínculo de Amor.
Creio
que não vou dizer nada de novo, se afirmar que alguns cristãos têm uma visão
muito pobre da Santa Missa e que ela é para muitos um mero rito exterior,
quando não um convencionalismo social. Isto acontece, porque os nossos
corações, de si tão mesquinhos, são capazes de viver com rotina a maior doação
de Deus aos homens. Na Santa Missa, nesta Missa que agora celebramos, intervém de
um modo especial, repito, a Trindade Santíssima. Para corresponder a tanto
amor, é preciso que haja da nossa parte uma entrega total do corpo e da alma,
pois vamos ouvir Deus, falar com Ele, vê-Lo, saboreá-Lo. E se as palavras não
forem suficientes, poderemos cantar, incitando a nossa língua - Pange, lingua!
- a que proclame, na presença de toda a Humanidade, as grandezas do Senhor.
88
Viver
a Santa Missa é manter-se em oração contínua, convencermo-nos de que, para cada
um de nós, este é um encontro pessoal com Deus, em que O adoramos, O louvamos,
Lhe pedimos, Lhe damos graças, reparamos os nossos pecados, nos purificamos e
nos sentimos uma só coisa em Cristo com todos os cristãos.
Por
vezes, talvez nos perguntemos como será possível corresponder a tanto amor de
Deus e até desejaríamos, para o conseguir, que nos pusessem com toda a clareza
diante dos nossos olhos um programa de vida cristã. A solução é fácil e está ao
alcance de todos os fiéis: participar amorosamente na Santa Missa, aprender a
conviver e a ganhar intimidade com Deus na Missa, porque neste Sacrifício se
encerra tudo aquilo que o Senhor quer de nós.
Permiti
que aqui vos recorde o desenrolar das cerimónias litúrgicas, que já observámos
em tantas e tantas ocasiões. Seguindo-as passo a passo é muito possível que o
Senhor nos faça descobrir em que pontos devemos melhorar, que defeitos
precisamos de extirpar e como há-de ser o nosso convívio, íntimo e fraterno,
com todos os homens.
O
sacerdote dirige-se para o altar de Deus, do Deus que alegra a nossa juventude.
A Santa Missa inicia-se com um cântico de alegria, porque Deus está presente. É
esta alegria que, juntamente com o reconhecimento e o amor, se manifesta no
beijo que se dá na mesa do altar, símbolo de Cristo e memória dos santos, um espaço
pequeno e santificado, porque nesta ara se confecciona o Sacramento de eficácia
infinita.
O
Confiteor põe-nos diante da nossa indignidade. Não é a recordação abstracta da
culpa, mas a presença, tão concreta, dos nossos pecados e das nossas faltas. Kyrie
eleison, Christe eleyson, Senhor, tende piedade de nós; Cristo, tende piedade
de nós. Se o perdão que necessitamos se pusesse em relação com os nossos
méritos, nasceria na nossa alma, neste momento, uma amarga tristeza. Mas,
graças à bondade divina, o perdão é-nos dado pela misericórdia de Deus, a Quem
já louvamos entoando - Glória! - porque só Vós, sois o Santo; só Vós o Senhor,
só Vós o Altíssimo, Jesus Cristo, com o Espírito Santo, na glória de Deus Pai.
89
Ouvimos
agora a palavra da Escritura, a Epístola e o Evangelho, que são luzes do
Paráclito, que fala com voz humana para que a nossa inteligência saiba e
contemple, para que a vontade se robusteça e a acção se cumpra, porque somos um
único povo que confessa uma única fé, um Credo, um povo congregado na unidade
do Pai, do Filho e do, Espírito Santo.
Segue-se
o ofertório: o pão e o vinho dos homens. Não é muito, mas a oração
acompanha-os: sejamos, Senhor, por Vós recebidos em espírito de humildade e
coração contrito; e assim se faça hoje, ó Deus e Senhor Nosso, este nosso
sacrifício na Vossa presença, de modo que Vos seja agradável. Irrompe de novo a
recordação da nossa miséria e o desejo de que tudo aquilo que se destina ao
Senhor esteja limpo e purificado: lavarei as minhas mãos, amo o decoro da tua
casa.
Há
instantes, antes do lavabo, invocámos o Espírito Santo, pedindo-Lhe que
abençoasse o Sacrifício oferecido ao Seu Santo Nome. Terminada a purificação,
dirigimo-nos à Trindade - Suscipe, Sancta Trinitas -, para que receba o que
apresentamos em memória da Vida, da Paixão, da Ressurreição e da Ascensão de
Cristo, em honra de Maria, sempre Virgem, e em honra de todos os santos.
A
oblação deve redundar em benefício de todos - Orate, fratres, reza o sacerdote
-, porque este sacrifício é meu e vosso, de toda a Igreja Santa. Orai, irmãos,
mesmo que sejam poucos os que se encontram reunidos, mesmo que se encontre
materialmente presente apenas um cristão ou até só o celebrante, porque uma
Missa é sempre o holocausto universal, o resgate de todas as tribos e línguas e
povos e nações!
Todos
os cristãos, pela comunhão dos Santos, recebem as graças de cada Missa, quer se
celebre diante de milhares de pessoas, quer haja apenas como único assistente
um menino, possivelmente distraído, a ajudar o sacerdote. Tanto num caso como
noutro, a Terra e o Céu unem-se para entoar com os Anjos do Senhor: Sanctus,
Sanctus, Sanctus...
Eu
aplaudo e louvo com os anjos. Não me é difícil, porque sei que me encontro
rodeado por eles quando celebro a Santa Missa. Estão a adorar a Trindade. E sei
também que, de algum modo, intervém a Santíssima Virgem, pela íntima união que
tem com a Santíssima Trindade, porque é Mãe de Cristo, da sua Carne e do seu
Sangue, Mãe de Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito homem. Jesus Cristo, ao
ser concebido nas entranhas de Maria Santíssima sem intervenção de varão, mas
unicamente pelo poder do Espírito Santo, tem o mesmo sangue de sua Mãe. E é
esse Sangue o que se oferece no sacrifício redentor, no Calvário e na Santa
Missa.
90
Assim
se entra no Canon, com a confiança filial que nos leva a chamar clementíssimo
ao nosso Pai Deus. Pedimos-Lhe pela Igreja e por todos os que estão na Igreja,
pelo Papa, pela nossa família, pelos nossos amigos e companheiros. E o
católico, como tem coração universal, pede por todo o mundo, porque o seu zelo
entusiasta nada pode excluir. E para que a petição seja acolhida, recordamos a
nossa comunhão com a Santíssima Virgem e com um punhado de homens que foram os
primeiros a seguir Cristo e por Ele morreram.
Quam
oblationem... Aproxima-se o momento da consagração. Agora, na Santa Missa, é
outra vez Cristo que actua, através do sacerdote: Isto é o meu Corpo. Este é o
cálice do meu Sangue. Jesus está connosco! Com a transubstanciação, renova-se a
infinita loucura divina, ditada pelo Amor. Quando hoje se repete esse momento,
que saiba cada um de nós dizer ao Senhor, mesmo sem pronunciar quaisquer
palavras, que nada nos poderá afastar d'Ele e que a sua disponibilidade de se
deixar ficar - totalmente indefeso - nas aparências, tão frágeis, do pão e do
vinho, nos converteu voluntariamente em escravos: praesta meae menti de te
vivere et te illi semper dulce sapere, faz com que eu viva de Ti e saboreie
sempre a doçura do teu amor.
Mais
petições. Nós, homens, estamos quase sempre inclinados a pedir. Desta vez, é
pelos nossos irmãos defuntos e por nós mesmos. Por isso, aqui aparecem todas as
nossas infidelidades e misérias. O peso da sua carga é muito grande, mas Ele
quer levá-lo por nós e connosco. O Canon vai terminar com outra invocação à
Santíssima Trindade: per Ipsum, et cum Ipso, et in Ipso.... por Cristo, com
Cristo e em Cristo, nosso Amor, a Ti, Deus Pai Todo Poderoso, na unidade do
Espírito Santo, Te seja dada toda a honra e glória pelos séculos dos séculos.
91
Jesus
é o Caminho, o Medianeiro. N'Ele, tudo! Fora d'Ele nada! Em Cristo e ensinados
por Ele, atrevemo-nos a chamar Pai Nosso ao Todo-Poderoso, a Ele, que fez o Céu
e a Terra e que é esse Pai tão afectuoso que espera que voltemos para Ele
continuamente, cada um de nós como novo e constante filho pródigo.
Ecce
Agnus Dei... Domine, non sum dignus... Vamos receber o Senhor. Quando na Terra
se recebem pessoas muito importantes, há luzes, música, trajes de gala. Para
albergar Cristo na nossa alma, como devemos preparar-nos? Já teremos por acaso
pensado como nos comportaríamos se só se pudesse comungar uma vez na vida?
Quando
eu era criança, não estava ainda divulgada a prática da comunhão frequente.
Recordo-me de como se preparavam as pessoas para comungar. Cuidavam com esmero
a boa preparação da alma e até do corpo. Punham a melhor roupa, a cabeça bem
penteada, o corpo fisicamente limpo e talvez mesmo um pouco de perfume... Eram
delicadezas próprias de quem estava apaixonado, de almas finas e rectas, que
sabem pagar o Amor com amor.
Com
Cristo na alma, termina a Santa Missa. A bênção do Pai, do Filho e do Espírito
Santo acompanha-nos durante toda a jornada, na nossa tarefa simples e normal de
santificar todas as actividades nobres do homem.
Assistindo
à Santa Missa, aprenderemos a falar, a privar com cada uma das Pessoas divinas:
com o Pai, que gera o Filho, que é gerado pelo Pai; e com o Espírito Santo, que
procede dos dois. Habituando-nos a privar intimamente com qualquer uma das três
Pessoas, privaremos com um único Deus. E se falarmos com as três, com a
Trindade, privaremos também com um só Deus, único e verdadeiro. Amai a Santa
Missa, meus filhos, amai a Santa Missa! E que cada um de vós comungue com
ardor, mesmo que se sinta gelado, mesmo que não haja correspondência por parte
da emotividade. Comungai com fé, com esperança e com caridade inflamada.
92
Viver na intimidade com
Jesus Cristo
Não
ama Cristo quem não ama a Santa Missa e quem não se esforça no sentido de a
viver com serenidade e sossego, com devoção e com carinho. 0 amor transforma
aqueles que estão apaixonados em pessoas de sensibilidade fina e delicada.
Leva-os a descobrir, para que se não esqueçam de os pôr em prática, pormenores
que são por vezes mínimos, mas que trazem a marca de um coração apaixonado. É
assim que devemos assistir à Santa Missa. Por este motivo, sempre pensei que
aqueles que querem ouvir uma missa rápida e atabalhoada demonstram com essa
atitude, já de si pouco elegante, que não conseguiram aperceber-se do
significado do Sacrifício do altar.
O
amor a Cristo, que se oferece por nós, anima-nos a saber encontrar, uma vez
terminada a Santa Missa, alguns minutos de acção de graças pessoal e íntima,
que prolonguem no silêncio do coração essa outra acção de graças que é a
Eucaristia. Como poderemos dirigir-nos a Ele, como falar-Lhe, como
comportar-nos?
A
vida cristã não está feita de normas rígidas, porque o Espírito Santo não
dirige as almas massivamente, mas infundindo em cada uma delas propósitos,
inspirações e afectos que ajudarão a captar e a cumprir a vontade do Pai.
Penso, no entanto, que em muitas ocasiões o nervo do nosso diálogo com Cristo,
na acção de graças depois da Santa Missa, pode ser a consideração de que o
Senhor é para nós, Rei, Médico, Mestre e Amigo.
É
Rei e anseia por reinar nos nossos corações de filhos de Deus. Mas é preciso
não imaginar reinados humanos neste caso, porque Cristo não domina nem procura
impor-se, dado que não veio para ser servido, mas para servir.
93
O
seu reino é a paz, a alegria, a justiça. Cristo, nosso Rei, não espera de nós
raciocínios vãos, mas factos, porque nem todo o que Me diz: Senhor, Senhor,
entrará no reino dos céus; mas o que faz a vontade de meu Pai que está nos
céus, esse entrará no reino dos céus.
É
Médico e cura o nosso egoísmo, se deixarmos que a sua graça penetre até ao
fundo da nossa alma. Jesus disse-nos que a pior doença é a hipocrisia, o
orgulho que nos faz dissimular os nossos pecados. Com o Médico, é
imprescindível, pela nossa parte, uma sinceridade absoluta, explicar-lhe toda a
verdade e dizer: Domine, si vis, potes me mundare, Senhor, se quiseres - e Tu
queres sempre - podes curar-me. Tu conheces as minhas fraquezas, tenho estes
sintomas e estas debilidades. Mostramos-lhe também com toda a simplicidade as
chagas e o pus, no caso de haver pus. Senhor, Tu, que curaste tantas almas, faz
com que, ao ter-Te no meu peito ou ao contemplar-Te no Sacrário, Te reconheça
como Médico divino.
É
mestre de uma ciência que só Ele possui, a do amor a Deus sem limites e, em
Deus, a todos os homens. Na escola de Cristo aprende-se que a nossa existência
não nos pertence. Ele entregou a sua vida por todos os homens e, se O seguimos,
necessitamos de compreender que não devemos apropriar-nos de maneira egoísta da
nossa vida sem compartilhar as dores dos outros. A nossa vida é de Deus. Temos
de gastá-la ao seu serviço, preocupando-nos generosamente com as almas e
demonstrando, com a palavra e com o exemplo, a profundidade das exigências
cristãs.
Jesus
espera que alimentemos o desejo de adquirir essa ciência, para nos repetir: se
alguém tem sede, venha a Mim e beba. E respondemos: ensina-nos a esquecermo-nos
de nós mesmos, para pensarmos em Ti e em todas as almas. Deste modo, o Senhor
far-nos-á progredir com a sua graça, como quando começávamos a escrever
(lembrais-vos daqueles traços que fazíamos, guiados pela mão do professor?) e
assim começaremos a saborear a dita de manifestar a nossa fé, que é já de si
outra dádiva de Deus, também com traços inequívocos de uma conduta cristã, onde
todos possam descobrir as maravilhas divinas.
É
Amigo, o Amigo: vos autem dixi amicos, diz-nos Ele. Chama-nos amigos e foi Ele
quem deu o primeiro passo, pois amou-nos primeiro. Contudo, não impõe o seu
carinho: oferece-o. E prova-o com o sinal mais evidente da amizade: ninguém tem
maior amor que o daquele que dá a vida pelos seus amigos. Era amigo de Lázaro e
chorou por ele quando o viu morto. E ressuscitou-o. Por isso, se nos vir frios,
desalentados, talvez com a rigidez de uma vida interior que se está a
extinguir, o seu pranto será vida para nós: Eu te ordeno, meu amigo, levanta-te
e anda, deixa essa vida mesquinha, que não é vida!
94
Vamos
acabar a nossa meditação de Quinta-Feira Santa. Se o Senhor nos ajudou - e está
sempre disposto, desde que lhe abramos o coração - teremos pressa de
corresponder àquilo que é mais importante: amar. E saberemos difundir a
caridade entre os outros homens, com uma vida de serviço. Dei-vos o exemplo,
insiste Jesus, falando aos seus discípulos na noite da Ceia, depois de lhes ter
lavado os pés. Afastemos do coração o orgulho, a ambição, os desejos de domínio
e, à nossa volta e dentro de nós, reinarão a paz e a alegria, enraizadas no
sacrifício pessoal.
Finalmente,
um pensamento filial e amoroso para Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe. Peço
desculpa de contar de novo uma recordação da minha infância, desta vez relativa
a uma imagem que se difundiu muito na minha terra, quando S. Pio X impulsionou
a prática da comunhão frequente. Representava Maria a adorar a Hóstia Santa.
Hoje, como então e como sempre, Nossa Senhora ensina-nos a falar e a conviver
intimamente com Jesus, a reconhecê-Lo e a encontrá-Lo nas diversas
circunstâncias do dia e, de um modo especial, nesse instante supremo - o tempo
une-se com a eternidade - do Santo Sacrifício da Missa, em que Jesus, com gesto
de sacerdote eterno, atrai a si todas as coisas, para as colocar, divino
afflante Spiritu, por intermédio do sopro do Espírito Santo, na presença de
Deus Pai.
95
Esta
semana, que o povo cristão tradicionalmente chama Santa, oferece-nos uma vez
mais a possibilidade de considerar - de reviver - os momentos em que se consuma
a vida de Jesus.
Tudo
o que as diversas manifestações de piedade nos trazem à memória nestes dias se
encaminha decerto para a Ressurreição, que é o fundamento da nossa fé, como
escreve S. Paulo. Mas não percorramos este caminho demasiado depressa; não
deixemos cair no esquecimento alguma coisa muito simples, que por vezes parece
escapar-nos: não poderemos participar da Ressurreição do Senhor se não nos unirmos
à sua Paixão e à sua Morte. Para acompanhar a Cristo na sua glória no final da
Semana Santa, é necessário que penetremos antes no seu holocausto e que nos
sintamos uma só coisa com Ele, morto no Calvário.
A
entrega generosa de Cristo enfrenta-se com o pecado, essa realidade dura de
aceitar, mas inegável: o mysterium iniquitatis, a inexplicável maldade da
criatura que se ergue, por soberba, contra Deus.
A
história é tão antiga como a Humanidade. Recordemos a queda dos nossos
primeiros pais; depois, toda essa cadeia de depravações que marcam a marcha dos
homens; finalmente, as nossas rebeldias pessoais. Não é fácil considerar a
perversidade que o pecado representa e compreender tudo o que a Fé nos ensina.
Temos de ter presente que, mesmo no plano humano, a grandeza da ofensa se mede
pela condição do ofendido, pelo seu valor pessoal, pela sua dignidade social,
pelas suas qualidades. E o homem ofende a Deus: a criatura renega o seu
Criador.
Mas
Deus é Amor. O abismo de malícia, que o que o pecado encerra, foi vencido por
uma Caridade infinita. Deus não abandona os homens. Os desígnios divinos
previram que, para reparar as nossas faltas, para restabelecer a unidade
perdida, não bastavam os sacrifícios da Antiga Lei: tornou-se necessária a
entrega de um homem que fosse Deus. Podemos imaginar - para nos aproximarmos de
algum modo deste mistério insondável - que a Trindade Santíssima se reúne em
conselho na sua contínua relação íntima de amor imenso e, como resultado de uma
decisão eterna, o Filho Unigénito de Deus-Pai assume a nossa condição humana,
carrega sobre Si as nossas misérias e as nossas dores, para acabar pregado com
cravos num madeiro.
Esse
fogo, esse desejo de cumprir o decreto salvador de Deus-Pai, enche toda a vida
de Cristo, desde o seu nascimento em Belém. Ao longo dos três anos que com Ele
conviveram, os discípulos ouvem-No repetir incansavelmente que o seu alimento é
fazer a vontade d'Aquele que O enviou, até que, no meio da tarde da primeira
Sexta-Feira Santa, se concluiu a sua imolação: inclinando a cabeça entregou o
espírito. Com estas palavras descreve-nos o Apóstolo S. João a morte de Cristo:
Jesus, sob o peso da Cruz com todas as culpas dos homens, morre por causa da
força e da vileza dos nossos pecados.
Meditemos
no Senhor, chagado dos pés à cabeça por amor de nós. Com frase que se aproxima
da realidade, embora não consiga exprimi-la completamente, podemos repetir com
um escritor de há séculos: O corpo de Jesus é um retábulo de dores. A vista de
Cristo feito um farrapo, transformado num corpo inerte descido da Cruz e
confiado a sua Mãe, à vista desse Jesus destroçado, poder-se-ia concluir que
esta cena é a exteriorização mais clara de uma derrota. Onde estão as massas
que O seguiram e o Reino cuja vinda anunciava? Contudo, não temos diante dos
olhos uma derrota, mas sim uma vitória: está agora mais perto do que nunca o
momento da Ressurreição, da manifestação da glória que Cristo conquistou com a
sua obediência.
96
A morte de Cristo
chama-nos a uma vida cristã plena
Acabamos
de reviver o drama do Calvário, aquilo que me atreveria a chamar a primeira
Missa, a primordial, celebrada por Jesus. Deus-Pai entrega o seu Filho à morte.
Jesus, o Filho Unigénito, abraça-se ao madeiro, no qual O haviam de justiçar, e
o seu sacrifício é aceite pelo Pai. Como fruto da Cruz, derrama-se sobre a
Humanidade o Espírito Santo.
Na
tragédia da Paixão consuma-se a nossa própria vida e toda a história humana. A
Semana Santa não pode reduzir-se a uma mera recordação, pois que nela se
considera o mistério de Jesus Cristo, que se prolonga nas nossas almas: o
cristão está obrigado a ser alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o
próprio Cristo. Pelo Baptismo, fomos todos constituídos sacerdotes da nossa
própria existência, para oferecer vítimas espirituais que sejam agradáveis a
Deus por Jesus Cristo, para realizar cada uma das nossas acções em espírito de
obediência à vontade de Deus, perpetuando assim a missão do Deus-Homem.
Por
contraste, esta realidade leva-nos a repararmos nas nossas desditas, nos nossos
erros pessoais. Tal consideração não nos deve desanimar, nem colocar na atitude
céptica de quem renunciou aos grandes ideais. Porque o Senhor reclama-nos tal
como somos, para que participemos da sua vida, para que lutemos por ser santos.
Santidade!
Quantas vezes pronunciamos esta palavra como se fosse um som vazio! Para
muitos, ela representa mesmo um ideal inacessível, um tema da ascética, mas não
um fim concreto, uma realidade viva. Não pensavam deste modo os primeiros
cristãos, que usavam o nome de santos para se chamarem entre si com toda a
naturalidade e com grande frequência: saúdam-vos todos os santos, saudai todos
os santos em Cristo Jesus.
Situados
agora no Calvário, quando Jesus já morreu e não se manifestou ainda a glória do
seu triunfo, temos uma boa ocasião para examinar os nossos desejos de vida
cristã, de santidade para reagir com um acto de fé perante as nossas
debilidades e, confiando no poder de Deus, fazer o propósito de pôr amor nas
coisas do nosso dia-a-dia. A experiência do pecado tem de nos conduzir à dor, a
uma decisão mais madura e mais profunda de sermos fiéis, de nos identificarmos
deveras com Cristo, de perseverarmos, custe o que custar, nessa missão
sacerdotal que Ele encomendou a todos os seus discípulos sem excepção, que nos impele
a sermos sal e luz do mundo.
97
A
consideração da morte de Cristo traduz-se num convite a situarmo-nos, com
absoluta sinceridade, perante o nosso trabalho ordinário, a tomarmos a sério a
Fé que professamos. A Semana Santa, portanto, não pode ser um parêntesis
sagrado no contexto de um viver movido só por interesses humanos: tem de ser
uma ocasião para penetrarmos na profundidade do Amor de Deus, para podermos
assim, com a palavra e com as obras, mostrá-lo aos outros homens.
Mas
o Senhor impõe condições. Há uma declaração sua, que S. Lucas nos conserva, da
qual não se pode prescindir: Se alguém quer vir a Mim e não aborrece o pai e a
mãe, a mulher e os filhos, os irmãos e as irmãs e até a sua própria vida, não
pode ser meu discípulo. São palavras duras. Decerto nem o odiar nem o aborrecer
exprimem bem o pensamento original de Jesus. De qualquer maneira, as palavras
do Senhor foram fortes, pois não se reduzem a um amor menor, como por vezes se
interpreta temperadamente, para suavizar a frase. É tremenda essa expressão tão
taxativa, não porque implique uma atitude negativa ou impiedosa, pois o Jesus
que fala agora é o mesmo que manda amar os outros como a própria alma e entrega
a sua vida pelos homens: aquela locução indica simplesmente que perante Deus não
cabem meias-tintas. Poderiam traduzir-se as palavras de Cristo por amar mais,
amar melhor, ou então por não amar com um amor egoísta, nem tão-pouco com um
amor de vistas curtas: devemos amar com o Amor de Deus. Disto é que se trata!
Reparemos
na última das exigências de Jesus: et animam suam, a vida, a própria alma é o
que o Senhor pede.
Se
somos fátuos, se nos preocupamos apenas com a nossa comodidade pessoal, se
centramos a existência dos outros e até o próprio mundo em nós mesmos, não
temos o direito de nos chamarmos cristãos, de nos considerarmos discípulos de
Cristo. A entrega tem de se fazer com obras e com verdade, não apenas com a
boca. O amor a Deus convida-nos a levarmos a cruz a pulso, a sentir também
sobre nós o peso da Humanidade inteira e a cumprirmos, nas circunstâncias
próprias do estado e do trabalho de cada um, os desígnios, claros e amorosos ao
mesmo tempo, da vontade do Pai. Na passagem que comentamos, Jesus prossegue:
Aquele que não carrega com a sua cruz para Me seguir também não pode ser meu
discípulo.
Aceitemos
sem medo a vontade de Deus, formulemos sem vacilações o propósito de edificar
toda a nossa vida de acordo com aquilo que nos ensina e nos exige a nossa fé.
Estejamos seguros de que encontraremos luta, sofrimento e dor; mas, se
possuirmos de verdade a Fé, nunca nos sentiremos infelizes: também com
sofrimentos, e até mesmo com calúnias, seremos felizes, com uma felicidade que
nos impelirá a amar os outros para os fazer participar da nossa alegria
sobrenatural.
98
O cristão perante a
história humana
Ser
cristão não é título de mera satisfação pessoal: tem nome - substância - de
missão. Já antes recordávamos que o Senhor convida todos os cristãos a serem
sal e luz do mundo; fazendo-se eco desse mandato e com textos tomados do Antigo
Testamento, S. Pedro escreve umas palavras que definem muito claramente essa
missão: Sois linhagem escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo de
conquista, para publicar as grandezas d'Aquele que nos arrancou das trevas para
a luz admirável.
Ser
cristão não é algo de acidental; é uma realidade divina, que se insere nas
entranhas da nossa vida, dando-nos uma visão clara e uma vontade decidida de
actuarmos como Deus quer. Aprende-se assim que a peregrinação do cristão no
mundo tem de se converter num serviço contínuo, prestado de modos muito
diversos segundo as circunstâncias pessoais, mas sempre por amor a Deus e ao
próximo. Ser cristão é actuar sem pensar nas pequenas metas do prestígio ou da
ambição, nem em finalidades que podem parecer mais nobres, como a filantropia
ou a compaixão perante as desgraças alheias; é correr para o termo último e
radical do amor que Jesus Cristo manifestou morrendo por nós.
Verificam-se
por vezes algumas atitudes que nascem de não se saber penetrar neste mistério
de Jesus. Por exemplo, a mentalidade daqueles que vêem o cristianismo como um
conjunto de práticas ou actos de piedade, sem perceberem a sua relação com as
situações da vida corrente, com a urgência de atender as necessidades dos
outros e de se esforçar por remediar as injustiças.
Por
mim, diria que quem tem essa mentalidade não compreendeu ainda o que significa
o facto de o Filho de Deus ter encarnado, tomando corpo, alma e voz de homem,
participando no nosso destino até ao ponto de experimentar a aniquilação
suprema da morte. Talvez por isso, algumas pessoas, sem querer, consideram
Cristo como um estranho no ambiente dos homens.
Outros,
pelo contrário, têm tendência para imaginar que, para poderem ser humanos,
precisam de pôr em surdina alguns aspectos centrais do dogma cristão e actuam
como se a vida de oração, a intimidade habitual com Deus, constituísse uma fuga
das suas responsabilidades e um abandono do mundo. Esquecem-se de que Jesus,
precisamente, nos deu a conhecer até que extremos se deve ir no caminho do amor
e do serviço. Só se procurarmos compreender o arcano do amor de Deus, deste
amor que chega até à morte, seremos capazes de nos entregar totalmente aos
outros, sem nos deixarmos vencer pelas dificuldades ou pela indiferença.
99
É
a fé em Cristo, que morreu e ressuscitou, presente em todos e cada a um dos
momentos da vida, que ilumina as nossas consciências, incitando-nos a
participar com todas as forças nas vicissitudes e nos problemas da história
humana. Nessa história, que teve início com a criação do mundo e terminará com
a consumação dos séculos, o cristão não é um apátrida: é um cidadão da cidade
dos homens, com a alma cheia de desejo de Deus, cujo amor começa já a entrever
nesta etapa temporal e no qual reconhece o fim a que estamos chamados todos os
que vivemos na Terra.
Se
o meu testemunho pessoal tem interesse, posso dizer que sempre entendi o meu
trabalho de sacerdote e pastor de almas como uma tarefa dirigida a situar cada
pessoa perante as exigências totais da sua vida, ajudando-a a descobrir aquilo
que Deus em concreto lhe pede, sem pôr qualquer limitação à santa independência
e à bendita responsabilidade individual que são características de uma
consciência cristã. Esse modo de agir e esses espírito baseiam-se no respeito pela
transcendência da verdade revelada e no amor à liberdade da criatura humana.
Poderia acrescentar que se baseiam também na certeza da indeterminação da
História, aberta a múltiplas possibilidades que Deus não quis limitar.
Seguir
Cristo não significa refugiar-se no templo, encolhendo os ombros perante o
desenvolvimento da sociedade, perante os acertos ou as aberrações dos homens e
dos povos. A fé cristã leva-nos, pelo contrário, a ver o mundo como criação do
Senhor, a apreciar, portanto, tudo o que é nobre e belo, a reconhecer a
dignidade de cada pessoa, feita à imagem de Deus, e a admirar esse dom
especialíssimo da liberdade, que nos faz senhores dos nossos próprios actos e
capazes, com a graça do Céu, de construir o nosso destino eterno.
Seria
minimizar a Fé reduzi-la a uma ideologia terrena, arvorando um estandarte
político-religioso para condenar, não se sabe em nome de que investidura
divina, aqueles que não pensam do mesmo modo em problemas que são, pela sua
própria natureza, susceptíveis de receber numerosas e diversas soluções.
100
Reflectir no sentido da
morte de Cristo
A
digressão que acabo de fazer tem por única finalidade pôr em evidência uma
verdade central: recordar que a vida cristã encontra o seu sentido em Deus .
Nós os homens não fomos criados apenas para edificar um mundo o mais justo
possível: para além disso, fomos colocados na Terra para entrar em comunhão com
o próprio Deus. Jesus não nos prometeu a comodidade temporal, nem a glória
terrena, mas a casa de Deus-Pai, que nos espera no final do caminho.
A
liturgia de Sexta-feira Santa inclui um hino maravilhoso: o Crux Fidelis. Nesse
hino, somos convidados a cantar e celebrar o glorioso combate do Senhor, o
troféu que é a Cruz, a esplêndida vitória de Cristo. O Redentor do Universo, ao
ser imolado, triunfa. Deus, Senhor de toda a criação, não afirma a sua presença
com a força das armas, nem sequer com o poder temporal dos seus, mas sim com a
grandeza do seu amor infinito.
O
Senhor não destrói a liberdade do homem: precisamente foi Ele que nos fez
livres. Por isso mesmo não quer respostas forçadas, mas sim decisões que saiam
da intimidade do coração. E espera de nós, cristãos, que vivamos de tal maneira
que aqueles que convivam connosco, por cima das nossas próprias misérias, erros
e deficiências, encontrem o eco do drama de amor do Calvário. Tudo o que temos,
recebemo-lo de Deus, para sermos sal que dê sabor, luz que leve aos homens a
alegre nova de que Ele é um Pai que ama sem medida. O cristão é luz do mundo,
não porque vença ou triunfe, mas porque dá testemunho do amor de Deus. E não
será sal se não servir para salgar; nem será luz se, com o seu exemplo e a sua
doutrina, não oferecer um testemunho de Jesus, se perder aquilo que constitui a
razão de ser da sua vida.
101
Convém
que meditemos naquilo que nos revela a morte de Cristo, sem ficarmos nas formas
exteriores ou em fases estereotipadas. É necessário que nos metamos de verdade
nas cenas que vivemos durante estes dias da Semana Santa: a dor de Jesus, as
lágrimas de sua Mãe, a debandada dos discípulos, a fortaleza das santas
mulheres, a audácia de José e Nicodemos, que pedem a Pilatos o corpo do Senhor.
Aproximemo-nos,
em suma, de Jesus morto, dessa Cruz que se recorta sobre o cume do Gólgota. Mas
aproximemo-nos com sinceridade, sabendo encontrar o recolhimento interior que é
sinal de maturidade cristã. Os acontecimentos, divinos e humanos, da Paixão
penetrarão desta forma na alma como palavra que Deus nos dirige para desvelar
os segredos do nosso coração e revelar-nos aquilo que espera das nossas vidas.
Há
já muitos anos, vi um quadro que se gravou profundamente no meu intimo.
Representava a Cruz de Cristo e, junto ao madeiro, três anjos: um chorava
desconsoladamente; outro tinha um cravo na mão, como para se convencer de que
aquilo era verdade; o terceiro estava recolhido em oração. Eis um programa
sempre actual para cada um de nós: chorar, crer e orar.
Perante
a Cruz, dor dos nossos pecados, dos pecados da Humanidade, que levaram Jesus à
morte; fé, para penetrarmos nessa verdade sublime que ultrapassa todo o
entendimento e para nos maravilharmos com o amor de Deus.; oração, para que a
vida e a morte de Cristo sejam o modelo e o estímulo da nossa vida e da nossa
entrega. Só assim nos chamaremos vencedores! Porque Cristo ressuscitado vencerá
em nós, e a morte transformar-se-á em vida.
102
Cristo
vive. Esta é a grande verdade que enche de conteúdo a nossa fé. Jesus, que
morreu na cruz, ressuscitou; triunfou da morte, do poder das trevas, da dor e
da angústia. Não temais - foi com esta invocação que um anjo saudou as mulheres
que iam ao sepulcro. Não temais. Procurais Jesus de Nazaré, que foi
crucificado. Ressuscitou; não está aqui. Haec est dies quam fecit Dominus,
exultemus et laetemur in ea - este é o dia que o Senhor fez; alegremo-nos.
O
tempo pascal é tempo de alegria, de uma alegria que não se limita a esta época
do ano litúrgico, mas mora sempre no coração dos cristãos. Porque Cristo vive.
Cristo não é uma figura que passou, que existiu em certo tempo e que se foi
embora, deixando-nos uma recordação e um exemplo maravilhosos. Não. Cristo
vive. Jesus é Emanuel: Deus connosco. A sua Ressurreição revela-nos que Deus
não abandona os seus. Pode a mulher esquecer o fruto do seu seio e não se
compadecer do filho das suas entranhas? Pois ainda que ela se esquecesse, eu
não me esquecerei de ti, havia-nos Ele prometido. E cumpriu a promessa. Deus
continua a ter as suas delícias entre os filhos dos homens.
Cristo
vive na sua Igreja. "Digo-vos a verdade: convém-vos que Eu vá; porque se
Eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se Eu for, enviar-vo-Lo-ei".
Esses eram os desígnios de Deus: Jesus morrendo na Cruz, dava-nos o Espírito de
Verdade e de Vida. Cristo permanece na sua Igreja: nos seus sacramentos, na sua
liturgia, na sua pregação, em toda a sua actividade.
De
modo especial, Cristo continua presente entre nós nessa entrega diária que é a
Sagrada Eucaristia. Por isso a Missa é o centro e a raiz da vida cristã. Em
todas as Missas está sempre presente o Cristo total, Cabeça e Corpo. Per Ipsum,
et cum Ipso, et in Ipso. Porque Cristo é o Caminho, o Mediador. Nele tudo
encontramos; fora d'Ele a nossa vida torna-se vazia. Em Jesus Cristo, e
instruídos por Ele, atrevemo-nos a dizer - audemus dicere - Pater noster, Pai
nosso. Atrevemo-nos a chamar Pai ao Senhor dos Céus e da Terra.
A
presença de Jesus vivo na Sagrada Hóstia é a garantia, a raiz e a consumação da
sua presença no Mundo.
103
Cristo
vive no cristão. A fé diz-nos que o homem, em estado de graça, está endeusado. Somos
homens e mulheres; não anjos. Seres de carne e osso, com coração e paixões, com
tristezas e alegrias; mas a divinização envolve o homem todo, como antecipação
da ressurreição gloriosa. Cristo ressuscitou dentre os mortos, como primícias
dos que morreram. Porque, assim como por um homem veio a morte, também veio por
um homem a ressurreição. Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também
em Cristo todos são vivificados.
A
vida de Cristo é vida nossa, segundo o que prometera aos. seus Apóstolos no dia
da última Ceia: Todo aquele que me ama observará os meus mandamentos, e meu Pai
o amará, e viremos a ele e faremos nele morada. O cristão, portanto, deve viver
segundo a vida de Cristo, tornando seus os sentimentos de Cristo de tal modo
que possa exclamar com S. Paulo: Non vivo ego, vivit vero in me Christus; não
sou eu quem vive; é Cristo que vive em mim.
104
Jesus Cristo, fundamento
da vida cristã
Quis
recordar, embora brevemente, alguns dos aspectos do viver actual de Cristo -
Iesus Christus heri et hodie; ipse et in saecula; Jesus Cristo é sempre o
mesmo, ontem e hoje, e por toda a eternidade - porque aí está o fundamento de
toda a vida cristã. Se olharmos ao nosso redor e considerarmos o decurso da
história da Humanidade, observaremos progressos, avanços: a Ciência deu ao
homem uma consciência maior do seu poder; a Técnica domina a Natureza melhor do
que em épocas passadas; e permite à Humanidade sonhar com um nível mais alto de
cultura, de vida material, de unidade.
Talvez
alguns se sintam levados a matizar este quadro, recordando que os homens
padecem agora injustiças e guerras maiores ainda do que as passadas. E não lhes
falta razão. Mas, por cima dessas considerações, prefiro recordar que, no
domínio religioso, o homem continua a ser homem e Deus continua a ser Deus.
Neste campo, o cume do progresso já se deu; é Cristo, alfa e ómega, princípio e
fim.
No
terreno espiritual não há nenhuma nova época a que chegar. Já tudo se deu em
Cristo, que morreu e ressuscitou, e vive, e permanece para sempre. Mas é
preciso unirmo-nos a Ele pela fé, deixando que a sua vida se manifeste em nós,
de maneira que se possa dizer que cada cristão é, não já alter Christus, mas
ipse Christus, o próprio Cristo.
105
Instaurare
omnia in Christo, é o lema que S. Paulo dá aos cristãos de Éfeso: dar forma a
tudo segundo o espírito de Jesus; colocar Cristo na entranha de todas as
coisas: Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum: quando Eu for
levantado sobre a terra, tudo atrairei a mim. Cristo, com a sua Encarnação, com
a sua vida de trabalho em Nazaré, com a sua pregação e os seus milagres por
terras da Judeia e da Galileia, com a sua morte na Cruz, com a sua
Ressurreição, é o centro da Criação, Primogénito e Senhor de toda a criatura.
A
nossa missão de cristãos é proclamar essa Realeza de Cristo; anunciá-la com a
nossa palavra e com as nossas obras. O Senhor quer os seus em todas as
encruzilhadas da Terra. A alguns, chama-os ao deserto, desentendidos das
inquietações da sociedade humana, para recordarem aos outros homens, com o seu
testemunho, que Deus existe. Encomenda a outros o ministério sacerdotal. À
grande maioria, o Senhor quere-a no mundo, no meio das ocupações terrenas.
Estes cristãos, portanto, devem levar Cristo a todos os ambientes em que se desenvolve
o trabalho humano: à fábrica, ao laboratório, ao trabalho do campo, à oficina
do artesão, às ruas das grandes cidades e às veredas da montanha.
Gosto
de recordar a este propósito o episódio da conversa de Cristo com os discípulos
de Emaús. Jesus caminha junto daqueles dois homens que perderam quase toda a
esperança, de modo que a vida começa a parecer-lhes sem sentido. Compreende a
sua dor, penetra nos seus corações, comunica-lhes algo da vida que Nele habita.
Quando, ao chegar àquela aldeia, Jesus faz menção de seguir para diante, os
dois discípulos retêm-No e quase O forçam a ficar com eles. Reconhecem-No
depois ao partir o pão: - O Senhor, exclamam, esteve connosco! Então disseram
um para o outro: Não é verdade que sentíamos abrasar-se-nos o coração dentro de
nós enquanto nos falava no caminho e nos explicava as Escrituras? Cada cristão
deve tornar Cristo presente entre os homens; deve viver de tal maneira que
todos com quem contacte sintam o bonus odor Christi, o bom odor de Cristo, deve
actuar de forma que, através das acções do discípulo, se possa descobrir o
rosto do Mestre.
106
O
cristão sabe que está enxertado em Cristo pelo Baptismo; habilitado a lutar por
Cristo pela Confirmação; chamado a actuar no mundo pela participação que tem na
função real, profética e sacerdotal de Cristo; feito uma só coisa com Cristo
pela Eucaristia, Sacramento da unidade e do amor. Por isso, tal como Cristo,
há-de viver voltado para os outros homens, olhando com amor para todos e cada
um dos que o rodeiam, para a Humanidade inteira.
A
fé leva-nos a reconhecer Cristo como Deus, a vê-Lo como nosso Salvador, a
identificarmo-nos com Ele, actuando como Ele actuou. O Ressuscitado, depois de
arrancar das suas dúvidas o Apóstolo Tomé, mostrando-lhe as chagas, exclama: Bem-aventurados
os que, sem me verem, acreditaram. Aqui - comenta S. Gregório Magno - fala-se
de nós de um modo particular, porque nós possuímos espiritualmente Aquele a
Quem corporalmente não vimos. Fala-se de nós, mas com a condição de que as
nossas acções se conformem à nossa fé. Não crê verdadeiramente senão quem, no
seu actuar, põe em prática o que crê. Por isso, a propósito daqueles que da fé
não possuem mais do que as palavras, diz S. Paulo: professam conhecer Deus mas
negam-no com as obras.
Não
é possível separar em Cristo o ser de Deus-Homem e a sua função de Redentor. O
Verbo fez-se carne e veio à Terra ut omnes homines salvi fiant, para salvar
todos os homens. Com todas as nossas misérias e limitações pessoais, nós somos
outros Cristos, o próprio Cristo, e somos também chamados a servir todos os
homens.
É
necessário que ressoe uma e outra vez aquele mandamento que continuará a ser
novo através dos séculos: Caríssimos - escreve S. João - não vos escrevo um
mandamento novo, mas um mandamento antigo, que recebestes desde o princípio.
Este mandamento antigo é a palavra divina que ouvistes. E, no entanto, falo-vos
de um mandamento novo, que é verdadeiro n'Ele mesmo e em vós porque as trevas
já passaram e já resplandece a verdadeira luz. Quem diz que está na luz e
aborrece o seu irmão, ainda está nas trevas. Quem ama o seu irmão permanece na
luz e nele não há ocasião de queda.
Nosso
Senhor veio trazer a paz, a boa nova, a vida a todos os homens. Não só aos
ricos, nem só aos pobres; não só aos sábios, nem só à gente simples; a todos;
aos irmãos, pois somos irmãos, já que somos filhos de um mesmo Pai, Deus. Não
há, portanto, mais do que uma raça: a raça dos filhos de Deus. Não há mais que
uma cor: a cor dos filhos de Deus. E não há senão uma língua: a que nos fala ao
coração e à inteligência, sem ruído de palavras, mas dando-nos a conhecer Deus
e fazendo que nos amemos uns aos outros.
107
Contemplação da vida de
Cristo
É
esse amor de Cristo que cada um de nós deve se esforçar por realizar na sua
vida. Mas para ser ipse Christus é preciso mirar-se Nele. Não basta ter-se uma
ideia geral do espírito que Jesus viveu; é preciso aprender com Ele pormenores
e atitudes. É preciso contemplar a sua vida, sobretudo para daí tirar força,
luz, serenidade, paz.
Quando
se ama alguém, deseja-se conhecer toda a sua vida, o seu carácter, para nos
identificarmos com essa pessoa. Por isso temos de meditar na vida de Jesus,
desde o Seu nascimento num presépio até à Sua morte e à Sua Ressurreição. Nos
primeiros anos do meu labor sacerdotal costumava oferecer exemplares do
Evangelho ou livros onde se narra a vida de Jesus, porque é necessário que a
conheçamos bem, que a tenhamos inteira na mente e no coração, de modo que, em
qualquer momento, sem necessidade de nenhum livro, cerrando os olhos, possamos
contemplá-la como um filme; de forma que, nas mais diversas situações da nossa
vida, acudam à memória as palavras e os actos do Senhor.
Sentir-nos-emos
assim metidos na sua vida. Na verdade, não se trata apenas de pensar em Jesus e
de imaginar aqueles episódios; temos de meter-nos em cheio neles, como actores;
temos de seguir Cristo tão de perto como Santa Maria, sua Mãe; como os
primeiros Doze; como as santas mulheres; como aquelas multidões que se
apertavam ao Seu redor. Se fizermos assim, se não criarmos obstáculos, as
palavras de Cristo penetrarão até ao fundo da nossa alma e transformar-nos-ão.
Porque a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante que uma espada de
dois gumes; introduz-se até à divisão da alma e do espírito, até às junturas e
medulas; e discerne os pensamentos e intenções do coração.
Se
queremos levar os outros homens ao Senhor, é necessário abrir o Evangelho e
contemplar o amor de Cristo. Podíamos fixar as cenas-cume da Paixão, porque,
como Ele mesmo disse, ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos
seus amigos. Mas também podemos considerar o resto da sua vida, o seu modo
habitual de tratar com quem se cruzava com Ele.
Cristo,
perfeito Deus e perfeito Homem, procedeu de um modo humano e divino para fazer
chegar aos homens a Sua doutrina de salvação e para lhes manifestar o amor de
Deus. Deus condescende com o homem, assume a nossa natureza sem reservas,
excepto no pecado.
Dá-me
uma grande alegria considerar que Cristo quis ser plenamente homem, com carne
como a nossa. Emociona-me contemplar a maravilha de um Deus que ama com coração
de homem.
108
Entre
tantas cenas narradas pelos Evangelistas, detenhamo-nos a considerar algumas,
começando pelos relatos do convívio de Jesus com os Doze. O Apóstolo João, que
verte no seu Evangelho a experiência de uma vida inteira, narra a primeira
conversa com o encanto daquilo que nunca mais se pode esquecer: - Mestre, onde
moras? Disse-lhe Jesus: Vinde e vede. Foram, pois, e viram onde morava e
ficaram com Ele aquele dia.
Diálogo
divino e humano, que transformou a vida de João e de André, de Pedro, de Tiago
e de tantos outros; que preparou os seus corações para escutarem a palavra
imperiosa que Jesus lhes dirigiu junto ao mar da Galileia: Caminhando Jesus junto
ao mar da Galileia, viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão,
lançando as redes ao mar, porque eram pescadores. E disse-lhes: Segui-Me, e Eu
farei de vós pescadores de homens. Deixando as redes, imediatamente O seguiram.
Nos
três anos seguintes Jesus convive com os seus discípulos, conhece-os, responde
às suas perguntas, resolve as suas dúvidas. Sim, é o Rabi, o Mestre que fala
com autoridade, o Messias enviado por Deus; mas, ao mesmo tempo, é acessível,
próximo. Um dia Jesus retira-se para orar. Os discípulos estavam perto, olhando
talvez para Ele e tentando adivinhar as suas palavras. Quando regressa, um
deles roga-Lhe: - Domine, doce nos orare, sicut docuit et Ioannes discipulos
suos; ensina-nos a orar, como João ensinou aos seus discípulos. E Jesus
responde-lhes: Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja o Teu nome...
Também
com autoridade de Deus e com carinho humano recebe o Senhor os Apóstolos,
quando, assombrados pelos frutos da sua primeira missão, Lhe comentavam as
primícias do seu apostolado: Vinde, retiremo-nos a um lugar deserto e repousai
um pouco.
Uma
cena muito similar se repete quase no final da vida de Jesus na Terra, pouco
antes da Ascensão: Ao surgir a manhã, apresentou-Se Jesus na praia, mas os
discípulos não sabiam que era Ele. Disse-lhes então Jesus: Rapazes, tendes
alguma coisa de comer? Aquele que tinha perguntado como homem, fala depois como
Deus: Lançai a rede à direita do barco e encontrareis. Lançaram-na, pois, e mal
a podiam arrastar., devido à grande quantidade de peixe. Então o discípulo
predilecto de Jesus disse a Pedro: É o Senhor.
E
Deus espera-os na margem: Logo que saltaram para terra viram ali umas brasas
com peixe em cima, e pão. Disse-lhes Jesus: Trazei dos peixes que apanhastes
agora. Simão Pedro subiu à barca e puxou a rede para terra, cheia de cento e
cinquenta e três grandes peixe; e, sendo tantos, não se rompeu a rede.
Disse-lhes, Jesus: Vinde comer. E nenhum dos discípulos se atrevia a
perguntar-Lhe: Quem és Tu?, sabendo que era o Senhor. Então Jesus aproximou-Se,
tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com o peixe.
Esta
delicadeza e carinho, manifesta-os Jesus, não só com um pequeno grupo de
discípulos, mas com todos: com as santas mulheres, com representantes do
Sinédrio, com Nicodemus e com publicamos, como Zaqueu, com doentes e com sãos,
com doutores da Lei e com pagãos, com pessoas, individualmente, e com multidões
inteiras.
Narram-nos
os Evangelhos que Jesus não tinha onde reclinar a cabeça, mas contam-nos também
que tinha amigos queridos e de confiança, ansiosos por recebê-Lo em sua casa. E
falam-nos da sua compaixão pelos enfermos, da sua mágoa pelos que ignoram e
erram, da sua indignação perante a hipocrisia. Jesus chora pela morte de
Lázaro, ira-se com os mercadores que profanam o Templo, deixa que se enterneça
o seu coração com a dor da viúva de Naim.
109
Cada
um destes gestos humanos é gesto de Deus. Em Cristo habita toda a plenitude da
divindade corporalmente. Cristo é Deus feito homem; homem perfeito; homem
cabal. E, na sua humanidade, dá-nos a conhecer a divindade.
Ao
recordarmos esta delicadeza humana de Cristo, que gasta a sua vida em serviço
dos outros, fazemos muito mais do que descrever um modo possível de nos
comportarmos: estamos a descobrir Deus. Toda a actuação de Cristo tem um valor
transcendente; dá-nos a conhecer o modo de ser de Deus; convida-nos a crer no
amor de Deus, que nos criou e que quer levar-nos até à sua intimidade.
Manifestei o teu nome aos homens que, do mundo, me deste. Eram teus e Tu
deste-mos, e eles guardaram a tua palavra. Agora sabem que tudo quanto me deste
vem de Ti, exclamou Jesus na longa oração que o Evangelista João nos conserva.
Portanto,
o convívio de Jesus com os homens não fica em meras palavras nem em atitudes
superficiais; Jesus toma a sério o homem e quer dar-lhe a conhecer o sentido
divino da sua vida. Jesus sabe exigir, colocar os homens perante os seus
deveres, arrancar do comodismo e do conformismo os que O escutam, para levá-los
a conhecer o Deus três vezes santo. A fome e a dor comovem Jesus, mas sobretudo
comove-O a ignorância: Viu Jesus uma grande multidão e compadeceu-Se deles,
porque eram como ovelhas sem pastor. Começou então a ensiná-los demoradamente.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.