Leitura Espiritual
Cristo que passa |
São Josemaria Escrivá
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Quando chega o Natal,
gosto de contemplar as imagens do Menino Jesus.
Essas figuras que nos
mostram o Senhor tão apoucado, recordam-me que Deus nos chama, que o
Omnipotente Se quis apresentar desvalido, quis necessitar dos homens.
Do berço de Belém, Cristo
diz-me a mim e diz-te a ti que precisa de nós; reclama de nós uma vida cristã
sem hesitações, uma vida de entrega, de trabalho, de alegria.
Não conseguiremos jamais o
verdadeiro bom humor se não emitarmos deveras Jesus, se não formos humildes
como Ele. Insistirei de novo: vedes onde se oculta a grandeza de Deus?
Num presépio, nuns
paninhos, numa gruta.
A eficácia redentora das
nossas vidas só se pode dar com humildade, deixando de pensar em nós mesmos e
sentindo a responsabilidade de ajudar os outros.
É corrente, às vezes até
entre almas boas, criar conflitos íntimos, que chegam a produzir sérias
preocupações, mas que carecem de qualquer base objectiva.
A sua origem está na falta
de conhecimento próprio, que conduz à soberba: o desejo de se tornarem o centro
da atenção e da estima de todos, a preocupação de não ficarem mal, de não se
resignarem a fazer o bem e desaparecerem, a ânsia da segurança pessoal...
E assim, muitas almas que
poderiam gozar de uma paz extraordinária, que poderiam saborear um imenso
júbilo, por orgulho e presunção tornam-se desgraçadas e infecundas!
Cristo foi humilde de
coração.
Ao longo da sua vida, não
quis para Si nenhuma coisa especial, nenhum privilégio.
Começa por estar nove
meses no seio de sua Mãe, como qualquer outro homem, com extrema naturalidade.
Sabia o Senhor de sobra
que a Humanidade padecia de uma urgente necessidade d'Ele.
Tinha, portanto, fome de
vir à terra para salvar todas as almas; mas não precipita o tempo; vem na Sua
hora, como chegam ao mundo os outros homens.
Desde a concepção ao
nascimento, ninguém, salvo S. José e Santa Isabel, adverte esta maravilha: Deus
veio habitar entre os homens!
O Natal também está
rodeado de uma simplicidade admirável: o Senhor vem sem aparato, desconhecido
de todos.
Na Terra, só Maria e José
participam na divina aventura.
Depois, os pastores,
avisados pelos Anjos.
E mais tarde os sábios do
Oriente.
Assim acontece o facto
transcendente que une o Céu à Terra, Deus ao homem!
Como é possível tanta
dureza de coração que cheguemos a acostumar-nos a estes episódios?
Deus humilha-Se para que
possamos aproximar-nos d'Ele, para que possamos corresponder ao seu Amor com o
nosso amor, para que a nossa liberdade se renda, não só ante o espectáculo do
seu poder, como também ante a maravilha da sua humildade.
Grandeza de um Menino que
é Deus!
O Seu Pai é o Deus que fez
os Céus e a Terra, e Ele ali está, num presépio, quia non erat eis locus in diversorio, porque não havia outro sítio
na Terra para o dono de toda a Criação!
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Cumpriu a vontade de Seu Pai Deus
Não me afasto da mais rigorosa verdade
se vos digo que Jesus continua agora a buscar pousada no nosso coração.
Temos de Lhe pedir perdão pela nossa
cegueira pessoal, pela nossa ingratidão.
Temos de Lhe pedir a graça de nunca
mais Lhe fechar a porta das nossas almas.
O Senhor não nos oculta que a
obediência rendida à vontade de Deus exige renúncia e entrega porque o amor não
pede direitos: quer servir.
Ele percorreu primeiro o caminho.
Jesus, como obedecestes Tu?
Usque
ad mortem, mortem autem crucis,
até à morte e morte de Cruz.
É preciso sair de nós mesmos,
complicar a vida, perdê-la por amor de Deus e das almas...
Tu querias viver e que nada te
acontecesse; mas Deus quis outra coisa...
Existem duas vontades: a tua vontade
deve ser corrigida para se identificar com a vontade de Deus, e não torcida a
de Deus para se acomodar à tua.
Com alegria, tenho visto muitas almas
que jogaram a vida - como Tu, Senhor, "usque
ad mortem"! - para cumprir o que a vontade de Deus lhes pedia,
dedicando os seus esforços e o seu trabalho profissional ao serviço da Igreja,
pelo bem de todos os homens.
Aprendamos a obedecer, aprendamos a
servir.
Não há maior fidalguia do que
entregar-se voluntariamente ao serviço dos outros.
Quando sentimos o orgulho que referve
dentro de nós, a soberba que nos leva a pensar que somos super-homens, é o
momento de dizer que não, de dizer que o nosso único triunfo há-de ser o da
humildade.
Assim nos identificaremos com Cristo
na Cruz, não aborrecidos ou inquietos, nem com mau humor, mas alegres, porque
essa alegria, o esquecimento de nós mesmos, é a melhor prova de amor.
20
Permiti-me que volte de novo à
naturalidade, à simplicidade da vida de Jesus, que já vos tenho feito
considerar tantas vezes.
Esses anos ocultos do Senhor não são
coisa sem significado, nem uma simples preparação dos anos que viriam depois,
os da sua vida púbica.
Desde 1928 compreendi claramente que
Deus deseja que os cristãos tomem exemplo de toda a vida do Senhor.
Entendi especialmente a sua vida
escondida, a sua vida de trabalho corrente no meio dos homens: o Senhor quer
que muitas almas encontrem o seu caminho nos anos de vida calada e sem brilho.
Obedecer à vontade de Deus, portanto, é sempre sair do nosso egoísmo; mas não
tem por que se traduzir no afastamento das circunstâncias ordinárias da vida
dos homens, iguais a nós pelo seu estado, pela sua profissão, pela sua situação
na sociedade.
Sonho - e o sonho já se tornou
realidade - com multidões de filhos de Deus santificando-se na sua vida de
cidadãos correntes, compartilhando ideais, anseios e esforços com as outras
pessoas. Preciso de lhes gritar esta verdade divina: se permaneceis no meio do
mundo, não é porque Deus se tenha esquecido de vós; não é porque o Senhor vos
não tenha chamado; convidou-vos a permanecer nas actividades e nas ansiedades
da Terra, porque vos fez saber que a vossa vocação humana, a vossa profissão,
as vossas qualidades não só não são alheias aos seus desígnios divinos, mas que
Ele as santificou como oferenda gratíssima ao Pai!
21
Recordar a um cristão que a sua vida
não tem outro sentido senão o de obedecer à vontade de Deus não é separá-lo dos
outros homens. Pelo contrário: em muitos casos, o mandamento recebido do Senhor
de que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou cumpre-se vivendo junto dos
outros e tal como os outros, entregando-nos ao serviço do Senhor no mundo, para
dar a conhecer melhor a todas as almas o amor de Deus; para lhes dizer que se
abriram os caminhos divinos da terra.
O Senhor não se limitou a dizer que
nos amava, mas demonstrou-o com obras.
Não nos esqueçamos de que Jesus Cristo
encarnou para nos ensinar, para aprendermos a viver a vida dos filhos de Deus.
Recordai o preâmbulo do evangelista S.
Lucas nos Actos dos Apóstolos: Primum
quidem sermonem feci de omnibus, o Theophile, quae coepit Jesus facere et
docere, falei de tudo o que mais notável fez e pregou Jesus.
Veio ensinar, mas fazendo; veio
ensinar, mas sendo modelo, sendo o Mestre e o exemplo, com a sua conduta.
Agora, diante de Jesus Menino, podemos
continuar o nosso exame pessoal: estamos decididos a procurar que a nossa vida
sirva de modelo e de ensinamento aos nossos irmãos, aos nossos iguais, os homens?
Estamos decididos a ser outros
Cristos?
Não basta dizê-lo com a boca. Tu -
pergunto-o a cada um de vós e pergunto-o a mim mesmo - tu, que por seres
cristão estás chamado a ser outro Cristo, mereces que se repita de ti que
vieste facere et docere, fazer tudo
como um filho de Deus, atento à vontade de seu Pai, para que deste modo possas
levar todas as almas a participar das coisas boas, nobres, divinas e humanas,
da Redenção?
Estás a viver a vida de Cristo na tua
vida de cada dia no meio do mundo?
Fazer as obras de Deus não é um bonito
jogo de palavras, mas um convite a gastar-se por Amor.
Temos de morrer para nós mesmos a fim
de renascermos para uma vida nova.
Porque assim obedeceu Jesus, até à
morte de Cruz, mortem autem crucis.
Propter quod et Deus exaltavit illum.
Por isso Deus O exaltou.
Se obedecermos à vontade de Deus, a
Cruz será também Ressurreição, exaltação. Cumprir-se-á em nós, passo a passo, a
vida de Cristo; poder-se-á afirmar que vivemos procurando ser bons filhos de
Deus, que passamos fazendo o bem, apesar da nossa fraqueza e dos nossos erros
pessoais, por mais numerosos que sejam.
E quando vier a morte, que virá
inexoravelmente, esperá-la-emos com júbilo, como tenho visto que o souberam
fazer tantas pessoas santas no meio da sua existência diária.
Com alegria, porque, se imitámos
Cristo em fazer o bem, - em obedecer e levar a Cruz, apesar das nossas misérias
- ressuscitaremos como Cristo; surrexit
Dominus vere!, que ressuscitou realmente.
Jesus, que se fez menino - meditai
nisto - venceu a morte.
Com o aniquilamento, com a
simplicidade, com a obediência, com a divinização da vida corrente e vulgar das
criaturas, o Filho de Deus foi vencedor!
Este foi o triunfo de Jesus Cristo.
Assim nos elevou ao seu nível, ao
nível dos filhos de Deus, descendo ao nosso terreno, ao terreno dos filhos dos
homens.
22
Estamos no Natal.
Acodem-nos à memória os diversos
factos e circunstâncias que rodearam o nascimento do Filho de Deus e o olhar
detém-se na gruta de Belém, no lar de Nazaré. Maria, José, Jesus Menino ocupam
de modo muito especial o centro do nosso coração.
Que diz, que nos ensina a vida,
simples e admirável ao mesmo tempo, dessa Sagrada Família?
Entre as muitas considerações que
poderíamos fazer, agora quero escolher sobretudo uma.
Como refere a Escritura, o nascimento
de Jesus significa o início da plenitude dos tempos, o momento escolhido por
Deus para manifestar plenamente o seu amor aos homens, entregando-nos o seu
próprio Filho.
Essa vontade divina realiza-se no meio
das circunstâncias mais normais e correntes: uma mulher que dá à luz, uma
família, uma casa.
A omnipotência divina, o esplendor de
Deus passam através das coisas humanas, unem-se às coisas humanas.
Desde esse momento, nós, os cristãos,
sabemos que, com a graça do Senhor, podemos e devemos santificar todas as
realidades sãs da nossa vida.
Não há situação terrena, por mais
pequena e vulgar que pareça, que não possa ser a ocasião de um encontro com
Cristo e uma etapa da nossa caminhada para o Reino dos Céus.
Por isso, não é de estranhar que a
Igreja se alegre, que rejubile, contemplando a modesta morada de Jesus, Maria e
José.
É grato - reza-se no Hino de matinas
desta festa - recordar a pequena casa de Nazaré e a existência simples que ali
se vive, celebrar com cânticos a singeleza que rodeia Jesus, a sua vida
escondida.
Foi ali que, ainda criança, aprendeu o
ofício de José; foi ali que cresceu em idade e partilhou o trabalho de artesão.
Junto d'Ele, sentava-se a sua doce
Mãe; junto a José, vivia a sua Esposa bem-amada, feliz por poder ajudá-lo e
prestar-lhe os seus cuidados.
Ao pensar nos lares cristãos, gosto de
imaginá-los luminosos e alegres, como foi o da Sagrada Família.
A mensagem de Natal ressoa com toda a
força: Glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na terra aos homens de boa
vontade.
Que a Paz de Cristo triunfe nos vossos
corações, escreve o Apóstolo. Paz por nos sabermos amados pelo nosso Pai, Deus,
incorporados em Cristo, protegidos pela Virgem Santa Maria, amparados por S.
José. Esta é a grande luz que ilumina as nossas vidas e que, perante as
dificuldades e misérias pessoais, nos impele a seguir animosamente para diante.
Cada lar cristão deveria ser um
remanso de serenidade, em que se notassem, por cima das pequenas contrariedades
diárias, um carinho e uma tranquilidade, profundos e sinceros, fruto de uma fé
real e vivida.
(cont)
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