Páscoa
Evangelho:
Lc 11, 27-28
27 Aconteceu que, enquanto Ele dizia estas palavras, uma
mulher, levantando a voz do meio da multidão, disse-Lhe: «Bem-aventurado o
ventre que Te trouxe e os peitos a que foste amamentado». 28 Porém,
Ele disse: «Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem
em prática».
Comentário:
Que
extraordinária resposta do Senhor!
Coloca-nos a todos os homens no mesmo nível, posição e categoria da Sua Santíssima Mãe!
Além da honra excepcional que nos concede - sem qualquer mérito da nossa parte - atribui-nos a responsabilidade dessa mesma honra: pôr em prática as Suas palavras.
Não
o esqueçamos!
(ama,
comentário sobre Lc 11, 27-28, 2015.10.10)
Leitura espiritual
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
INTRODUÇÃO
“CREIO – AMÉM”
CAPÍTULO PRIMEIRO
Fé no Mundo Hodierno
- Dúvida
e Fé – Situação do homem frente ao problema
"Deus”
…/6
Verum quia faciendum – quer dizer que o domínio do "facto" foi substituído mais e
mais, a partir do meado do século XIX, pelo domínio do factível, do a-ser-feito
e do passível-de-fazer, com o que a preponderância da história cede lugar à techne,
à técnica. Pois, quanto mais o homem avança pela rota nova, concentrando-se
no "facto" e nele buscando certeza, tanto mais se vê obrigado a
reconhecer que o "facto", ou seja a obra de suas mãos, lhe foge
sempre mais das mãos. A comprovação visada pelo historiador, surgida apenas no
século XIX como grande triunfo da história contra a especulação, conserva sempre
algo de problemático, um momento de reconstrução, de exegese e de equívoco, de
modo que arrastou a história, já no começo deste século, para uma crise, tornando
duvidoso o historicismo na sua orgulhosa pretensão científica. Revelou-se
sempre mais claramente a impossibilidade do "facto" em estado puro,
cercado de certeza inabalável, pois também nele se encerram sempre o sentido e a
sua duplicidade. Tornou-se sempre mais difícil ocultar que não se detinha entre
as mãos aquela certeza que inicialmente se tinha esperado conseguir da pesquisa
dos factos, voltando-se as costas à especulação.
Assim impôs-se forçosamente e gradativamente a
convicção de que, em última análise, é acessível ao conhecimento humano somente
aquilo que o homem pode reproduzir quantas vezes quiser, através da
experiência. Tudo o que ele consegue perceber apenas mediante provas
secundárias torna-se passado e, mau-grado todas as provas, não é plenamente
conhecível. Com isto surge o método das ciências naturais, resultante da
matemática (Descartes) e do retorno à facticidade em forma de experiência
repetível, como único e seguro portador de certeza. Da fusão do pensamento
matemático e dos factos resulta a nova realidade espiritual, determinada pelas
ciências naturais, do homem moderno, o lugar novo que conota retorno à realidade
na sua feição de facticidade. O facto fez sair de dentro de si o factível; o
repetível é o comprovável e existe por sua causa. Chega-se ao primado do
factível sobre o facto, pois realmente de que servirá ao homem o que meramente
existiu? Querendo ser dono do seu presente, o homem não pode encontrar sentido
em ser guarda de museu do seu próprio passado.
Com o que, como antes a história, agora a técnica
cessa de ser um degrau subordinado da evolução espiritual do homem, mesmo conservando
ainda certo ar de barbárie dentro de uma consciência orientada expressamente
para as ciências naturais. A situação alterou-se substancialmente sob o ponto
de vista da situação espiritual no seu conjunto: a técnica deixou de ser uma
exilada na câmara das ciências; ou, mais exactamente: a câmara surge aqui como
o elemento determinante diante do qual o "senado" não passa de
residência de nobres aposentados. A técnica tornou-se poder e possibilidade peculiar
do homem. O que, até aí, estava em baixo, passou para cima: simultaneamente
torna a deslocar-se a perspectiva: na antiguidade e na Idade Média, o homem
estava voltado para o eterno; a seguir, durante o domínio efémero do
historicismo, para o passado; agora, o factível polariza-o para o futuro
daquilo que ele mesmo pode criar. Se antes, por exemplo, mediante os resultados
do evolucionismo, o homem constatava resignado que, sob a luz do seu passado,
não ia além de pó e mero acaso da evolução, sentindo-se desiludido e degradado
por um tal conhecimento, isto não mais deve preocupá-lo, pois agora, qualquer
que tenha sido a sua origem, tem meios de enfrentar com decisão o futuro,
contando com recursos para transformá-lo no que quiser; não lhe é preciso mais
parecer impossível transformar-se a si mesmo num Deus, que se encontra no fim
como o factível, o a-ser-feito, e não mais, como logos, como sentido, no
início. Aliás, isto tudo já está actuando hoje de maneira concreta em forma de
problema antropológico. Mais importante do que o evolucionismo, que já ficou
atrás de nós como algo evidente, surge hoje a cibernética, a planificação do
homem a ser re-criado (homem novo, homem do futuro), de modo tal que, também
sob o ponto de vista teológico, a maleabilidade do homem de acordo com o seu
próprio plano, se apresenta como um problema mais importante do que a questão
do passado humano embora ambas as questões não possam ser separadas e se inter-determinem
no seu rumo: a redução do homem a um "facto" é a suposição para
compreendê-lo como "factível", a ser guiado, moldado, do seu actual
domínio, para um futuro novo.
c) A questão do lugar da Fé. Com o segundo
passo do espírito moderno, com a volta à facticidade, fracassou,
simultaneamente, uma primeira investida da teologia na resposta às novas
realidades. Pois a teologia tentou enfrentar a problemática do historicismo, ou
seja, a redução da verdade ao facto, construindo a mesma fé como história. E, à
primeira vista, poderia sentir-se plenamente satisfeita com sua manobra.
Afinal, a fé cristã, no seu conteúdo, está essencialmente vinculada à história;
as declarações da Bíblia não têm carácter metafísico, mas factivo. Por isso, a
teologia, aparentemente, devia ser substituída pela história, porquanto parecia
realmente estar soando a sua hora: e até, quiçá, pudesse contabilizar essa nova
evolução como resultado de seu próprio ponto de partida.
Esperança depressa abafada e desiludida pela
desentronização crescente da história, substituída pela técnica. Em seu lugar
vai-se firmando um outro pensamento – os teólogos sentem-se tentados a colocar
a fé, não mais no plano do facto, mas do factível, explicando-a como
instrumento de mudanças do mundo mediante uma "teologia política".
Creio que assim se repete, na situação actual, o que a reflexão teológica já
empreendera, unilateralmente, em relação ao historicismo. Percebe-se que o
mundo moderno é determinado pela perspectiva do factível e responde-se,
transferindo a fé para o mesmo plano. Não tenho em mente apontar meramente como
irracionais ambas estas tentativas, para não correr o risco de cometer uma injustiça.
Revela-se, antes, num e outro caso, substancialmente, o que havia sido omitido,
mais ou menos, noutras constelações. Com efeito, a fé cristã tem nexo com o
"facto", movimenta-se de modo específico na esfera da história, e não
foi por acaso que historicismo e história cresceram no âmbito da fé cristã. Indubitavelmente
a fé também tem relação com a evolução do mundo, com a formação do mundo, com a
pretensão contra a inércia das instituições humanas e contra os que delas se
aproveitam. Também seria difícil considerar acaso o facto de a compreensão do
mundo se ter desenvolvido como facticidade no âmbito da tradição judaico-cristã
e das suas inspirações até mesmo em Marx, muito embora imaginada e formulada em
antítese ao cristianismo. Em todo caso é indiscutível que, em ambos os casos,
transparece um pouco da verdadeira mentalidade da fé cristã, antes
excessivamente oculta. A fé cristã tem nexo decisivo com as correntes
essenciais do tempo moderno. Com efeito o actual momento histórico apresenta a
chance de poder compreender de modo todo novo a estrutura da fé, colocada entre
o facto e o factível. "É tarefa da teologia aceitar esse convite e essa
possibilidade para descobrir e preencher os vazios deixados pelos tempos idos.
Mas, ninguém deve deixar-se arrastar por
julgamentos precipitados, como também a correr o risco de curtos circuitos.
Onde as duas tentativas citadas se tornam exclusivas, relegando a fé,
totalmente, para a esfera do "facto" ou da "facticidade",
ali desaparece sob o entulho o significado último, o sentido último de um homem
que diz: "Credo" – eu creio. Pois, ao declarar-se crente, o homem não
elabora um programa de modificação activa do mundo, nem adere simplesmente a
uma corrente de eventos históricos. Tentando ilustrar o meu pensamento, diria
que o fenómeno da fé não pertence à relação "saber – fazer", típica
para a constatação da mentalidade factível, mas a uma outra relação muito
diversa "estar – compreender". Parece-me que assim se tornam visíveis
duas mentalidades e duas possibilidades da existência humana, que não se acham
sem nexo mútuo e que, contudo, devem ser distinguidas.
5. Fé como "estar" e
"compreender"
Ao contrapor o par de conceitos "estar –
compreender" àquele outro "saber – fazer", aludo a uma expressão
bíblica fundamental, intraduzível, sobre a fé, cujo profundo jogo de palavras
Lutero tentara reproduzir na fórmula: "Se não crerdes, não ficareis";
mais literalmente poder-se-ia traduzir: "Se não crerdes (se não vos
agarrardes a Jahvé), não tereis apoio algum" [1]. A única raiz 'mn abrange uma multiplicidade de sentidos cuja interdependência
e diferenciação perfaz a grandiosidade desta frase. A raiz 'mn (amen)
inclui os sentidos de: verdade, firmeza, fundamento sólido, solo, conotando
ainda: fidelidade, fiel, confiar-se, apoiar-se em alguma coisa, crer em alguém
ou nalguma coisa. Deste modo a fé em Deus surge como um apoiar-se em Deus,
mediante o qual o homem consegue base sólida para a sua vida. Com o que a fé é
descrita como adesão, como um colocar-se confiante no terreno da palavra de
Deus. A versão grega (Septuaginta) reproduziu a citada frase não só
idiomaticamente, mas também conceitualmente, para o mundo grego, formulando-a:
"Se não crerdes, não compreendereis". Afirmou-se, por vezes, que
nesta tradução se patenteia o processo de helenização, o afastamento do sentido
bíblico original. A fé teria sido intelectualizada: em vez de exprimir: estar
postado no terreno firme da palavra de Deus digna de fé, teria sido criado um
nexo com a compreensão e a razão, desalojando assim a fé para um plano que, de
modo algum lhe condiz. No que, talvez, haja um pouco de razão. Apesar disto,
julgo que, no seu conjunto, se conservou a ideia básica, embora com os sinais
alterados. "Estar colocado", como vem indicado no texto hebraico,
como conteúdo da fé, tem algo em comum com "compreender". Dentro em
pouco teremos de reflectir mais sobre isto. Por enquanto basta-nos reatar o fio
das anteriores considerações, dizendo que a fé conota uma esfera totalmente
outra do que a do "fazer" e da facticidade. É precisamente o
confiar-se ao não-feito-por-nós e ao jamais factível por nós, que sustenta e
possibilita todo o nosso agir ou fazer. Isto significa ainda que a fé não se
encontra, nem pode encontrar-se no plano do verum quia factum seu faciendum e
que qualquer tentativa de apresentá-la ali, "num cardápio", e de
querer prová-la no sentido do conhecimento do factível necessariamente estaria
fadada ao fracasso. Não se deve procurar nesta espécie de estrutura de conhecimento
e quem, apesar disto, ali a apresentar, estará servindo uma coisa falsa. O
penetrante "talvez" com que a fé questiona o homem em toda parte e em
todo lugar, não aponta para uma incerteza dentro do conhecimento do
factível, mas representa o questionamento do carácter absoluto deste âmbito, a sua
relativização como uma das esferas da existência humana e do ser em geral,
relativização e âmbito capazes de conservarem apenas o carácter de algo
penúltimo. Expresso por outras palavras: as nossas considerações levaram-nos
apenas a um lugar onde se torna visível a existência de duas formas básicas de
atitude humana face à realidade, das quais uma não pode ser reduzida a outra,
por se movimentarem as duas em planos completamente separados.
Talvez venha ao caso lembrar aqui uma contraposição
de Martin Heidegger que fala do dualismo do pensamento calculador e do pensamento
reflexivo. Ambas as maneiras de pensar são legítimas e necessárias, mas, exactamente
por isso, nenhuma delas pode dissolver-se na outra. Portanto, cumpre que existam
ambas as coisas: o pensamento calculador subordinado à facticidade e o
pensamento reflexivo que busca o sentido das coisas. Nem se deixaria de dar
alguma razão ao pensador friburguense, ao exprimir o receio de que, numa época
em que o pensamento calculador festeja os triunfos mais extraordinários, o
homem, no entanto, quiçá mais do que nunca, esteja ameaçado pela fuga diante da
reflexão, pela superficialidade e leviandade. Pondo no centro do seu pensamento
exclusivamente o factível, corre o perigo de esquecer-se de reflectir sobre si
mesmo e sobre o sentido da sua existência. Sem dúvida, esta tentação é comum a
todos os tempos. Assim, no século XIII, o grande filósofo franciscano
Boaventura julgava-se obrigado a lançar no rosto dos colegas da Faculdade de
Filosofia de Paris a censura de que, tendo aprendido a medir o mundo,
esqueceram a arte de medir-se a si mesmos. Repitamos o mesmo noutros termos:
Fé, no sentido visado pelo "Credo", não é uma forma inacabada de
conhecimento, uma opinião que se possa ou deva trocar em saber factível. É
antes uma forma essencialmente diversa de comportamento espiritual, colocada ao
lado dele como algo independente e próprio, não podendo ser-lhe reduzida, nem
dele derivada. Pois a fé não se encontra no âmbito da facticidade e do "feito",
tendo embora relações com ambos, mas localiza-se na esfera das decisões
fundamentais, diante das quais o homem não pode furtar-se nem omitir-se,
decisões que, que pela sua própria natureza, só podem ser feitas de uma forma,
forma à qual chamamos fé. Parece-me imprescindível destacá-lo com toda a
clareza: cada homem deve tomar uma posição, de qualquer forma, dentro do âmbito
das decisões fundamentais; e nenhum homem pode fazê-lo de modo outro que não
pela fé. Existe uma esfera que não admite outra resposta senão a da fé; e
precisamente esta esfera não pode ser contornada por ninguém. Cada homem há de
"crer" de qualquer modo.
A mais impressionante tentativa de subordinar a
atitude da "fé" à atitude do conhecimento factível deve-se ao
marxismo. Pois nele o "faciendum", o "a-ser-feito", o
factível acoberta-se com o próprio futuro a ser criado, e, simultaneamente, com
o mesmo sentido do homem, de modo que o esclarecimento que se realiza, e
respectivamente se aceita pela fé, é transferido para o plano do factível. Com
isto, sem dúvida, tirou-se a consequência extrema do pensamento moderno; parece
ter sortido efeito relacionar o sentido do homem totalmente com o factível e
até identificar um com o outro. Contudo, a uma análise mais demorada não
escapará que também o marxismo não logrou fazer a quadratura do círculo. Pois
nem ele é capaz de tornar cognoscível o factível enquanto sentido, mas apenas
prometido, oferecendo-o à opção da fé. O que hoje torna a fé marxista tão
atraente e facilmente acessível, é a impressão de harmonia com o conhecimento
do factível que ela desperta.
Após esta breve digressão voltemos a uma pergunta
que sintetiza tudo: que é a fé, afinal de contas? A nossa resposta poderia ser:
a fé é a forma de o homem se firmar no conjunto da realidade, forma irredutível
ao conhecimento e incomensurável pelo conhecimento; fé é o dar-sentido sem o
que a totalidade do homem ficaria localizada, sentido que constitui a base do
cálculo e da actividade humana e sem a qual, finalmente, não poderia nem
calcular, nem agir, porque somente é capaz disto à luz de um sentido que o
norteie. Com efeito, o homem não vive apenas do pão da facticidade; como homem,
ele vive do amor, do sentido das coisas. O sentido é o pão que lhe possibilita
subsistir, em sentido próprio, como homem. Sem a palavra, sem uma finalidade,
sem o amor, o homem chega à situação de não poder mais viver, mesmo cercado de
todo o conforto humano. Quem ignoraria até que ponto uma tal situação de
fracasso (entregar os pontos... não poder mais...) pode surgir no meio da
fartura exterior? Ora, sentido não deriva de saber. Querer torná-lo real
através do conhecimento da facticidade seria como a absurda tentativa do barão
de Münchhausen ao querer livrar-se a si mesmo do atoleiro, puxando-se pelos
cabelos. O absurdo deste quadro expõe com exactidão a situação básica do homem.
Ninguém está em condições de se arrancar a si mesmo do pantanal da incerteza,
da incapacidade de viver. Nem nos salvamos de semelhante situação, como quiçá
ainda poderia pensar Descartes com o seu cogito, ergo sum, mediante uma
série de conclusões racionais. Sentido auto-fabricado não é sentido; sentido,
ou seja, um solo, um pedaço de chão sobre o qual a existência possa firmar-se e
desenvolver-se como um todo, um tal sentido não pode ser feito, só pode ser
recebido.
(cont)
joseph ratzinger, Tübingen, verão de
1967.
(Revisão da versão
portuguesa por ama)
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