Cinzas
Evangelho:
Lc 5, 27-32
27 Depois disto, Jesus saiu, e viu sentado no banco de cobrança um
publicano, chamado Levi, e disse-lhe: «Segue-Me». 28 Ele, deixando
tudo, levantou-se e seguiu-O. 29 E Levi ofereceu-Lhe um grande banquete
em sua casa, e havia grande número de publicanos e outros, que estavam à mesa
com eles. 30 Os fariseus e os seus escribas murmuravam dizendo aos
discípulos de Jesus: «Porque comeis e bebeis com os publicanos e os
pecadores?». 31 Jesus respondeu-lhes: «Os sãos não têm necessidade
de médico, mas sim os doentes. 32 Não vim chamar os justos, mas os
pecadores à penitência».
Comentário:
A chamada que o Senhor faz a cada
pessoa é sempre directa e simples com esta feita a Mateus?
Temos de convir que não!
Muitas vezes esse chamamento vem na sequência de algum acontecimento marcante como se fosse uma indicação do caminho a seguir.
O que importa verdadeiramente é
que a nossa resposta seja simples e célere com a de Mateus porque o tempo é
sempre escasso e deve urgir-nos essa ânsia de seguir Cristo sem demora.
(ama, comentário sobre Lc 5 27-32, Carvide, 2015-02-21)
Leitura espiritual
ABRAÃO, NOSSO PAI NA FÉ
O livro do Génesis narra a vida de
Abraão a partir do momento em que o Senhor se cruzou no seu caminho e
transformou a radicalmente a sua existência. Embora o escritor sagrado não
pretenda oferecer uma biografia detalhada, apresenta-nos numerosos episódios
que põem em evidência a profunda fé do santo patriarca e o modo como ele deixa
Deus agir na sua vida.
Com efeito, são lhe prometidas uma
terra e uma descendência numerosa, mas Abraão deverá iniciar um caminho:
Sai da tua terra, do meio dos teus
parentes e da casa de teu pai, e vai para a terra que Eu te mostrar. Eu farei
de ti um grande povo, abençoar-te-ei; tornarei famoso o teu nome, de modo que
se tornará uma bênção [i]. Tempo
depois, o próprio Deus mudar-lhe-á o nome – e já não te chamarás Abrão, mas o
teu nome será Abraão [ii] – para
indicar que lhe conferiu «una personalidade nova e uma nova missão, que ficam
refletidas no significado do novo nome: “pai de multidões"» [iii].
Manifesta-se assim que toda a singularidade do patriarca depende da aliança com
Deus e está ao serviço desta.
Abraão escuta a voz de Deus e põe-na
em prática, sem prestar demasiada atenção ao que as circunstâncias lhe podiam
aconselhar. Porquê abandonar a segurança da sua pátria, esperar uma descendência
quando, quer ele quer a sua mulher, são de idade avançada?
Mas Abraão confia em Deus, na sua
omnipotência, na sua sabedoria e na sua bondade. O episódio de Sodoma e Gomorra
[iv] mostra,
além da gravidade do pecado que ofende a Deus e destrói o homem, a familiaridade
que Abraão tem com o seu Senhor. Deus não lhe oculta o que está por fazer e
acolhe a oração de intercessão do santo patriarca. A resposta de fé apoia-se na
confiança, ou seja, num trato pessoal com Deus.
O conhecimento das coisas, o sentir
comum, a experiência, os meios humanos têm a sua importância, mas se tudo
ficasse por aí, “numa ordem natural", a nossa perceção da realidade seria
falsa por ser incompleta, porque o nosso Pai Deus não se desinteressa de nós
nem o seu poder minguou. Assim o expressava São Josemaría Escrivá de Balaguer:
Nos empreendimentos de apostolado,
está certo - é um dever - que consideres os teus meios terrenos (2 + 2 = 4).
Mas não esqueças - nunca! - que tens de contar, felizmente, com outra parcela:
Deus + 2 + 2... [v].
As dificuldades habituais, por muito
adversas que pareçam, nunca são a última palavra. Deus é fiel e cumpre sempre
as suas promessas. Abraão actua de acordo com esta lógica. O valor exemplar da
fé de Abraão compendia-se em três traços fundamentais: a obediência, a
confiança e a fidelidade.
Na obediência da fé
Abraão manifesta a sua própria fé
principalmente obedecendo a Deus. A obediência pressupõe a escuta, pois é
necessário, em primeiro lugar, “prestar atenção", quer dizer, conhecer a
vontade de outro para lhe dar resposta e cumpri-la. Na Sagrada Escritura
obedecer não é apenas “cumprir" mecanicamente o mandado: implica uma
atitude ativa, que põe em jogo a inteligência diante de Deus que se revela, e
que conduz a pessoa a aderir à vontade divina com todas as forças e
capacidades.
«Quando Deus o chama, Abraão parte "como
lhe tinha dito o Senhor" [vi]: todo o
seu coração se submete à Palavra e obedece» [vii].
A obediência que provém da fé vai
muito para além da simples disciplina: pressupõe a aceitação livre e pessoal da
Palavra de Deus. Assim ocorre também em muitos momentos da nossa vida quando
podemos acolher essa Palavra ou recusá-la, deixando que as nossas ideias
prevaleçam sobre o que Ele quer. A obediência da fé é a resposta ao convite de
Deus ao homem para caminhar junto d'Ele, a viver em amizade com Ele.
«Obedecer ("ob-audire") na fé, é submeter-se livremente à palavra
escutada, porque a sua verdade é garantida por Deus, a própria Verdade. Abraão
é o modelo que a Sagrada Escritura nos propõe desta obediência. A Virgem Maria
é a realização mais perfeita da mesma» [viii].
Com confiança e abandono em Deus
Quando consideramos a vida de Abraão,
vemos que a fé está presente em toda a sua existência, manifestando-se
especialmente nos momentos de obscuridade, em que as certezas humanas falham. A
fé implica sempre uma certa obscuridade, um viver no mistério, sabendo que
nunca se chegará a atingir uma perfeita explicação, uma perfeita compreensão,
pois o contrário já não seria fé. Como diz o autor da carta aos Hebreus, a fé é
fundamento das coisas que se esperam, prova das que se não vêm [ix].
A falta de certeza da fé é superada
pela confiança do crente em Deus; pela fé, o patriarca põe-se a caminho sem
saber onde vai, mas essa é apenas a primeira ocasião em que deverá pôr em jogo
esta virtude. Porque, como recorda o Catecismo da Igreja Católica, é necessário
confiar muito em Deus para viver «como estrangeiro e peregrino na Terra
prometida» [x],
e para enfrentar o sacrifício do filho: Toma o teu filho, o teu único filho Isaac,
a quem amas, e vai para a região de Moriá e oferece-o lá em holocausto, sobre
uma montanha que Eu vou indicar [xi].
A fé de Abraão manifesta-se em toda a
sua grandeza quando se dispõe a renunciar ao seu filho Isaac. O sacrifício do
próprio filho é profecia da entrega de Jesus Cristo para a salvação do mundo. É
algo tão tremendo que dispensa comentários. Mas Abraão não se revolta contra
Deus, não o questiona nem o põe em dúvida: fia-se d'Ele. Põe-se a caminho,
continua atento a escutar a voz do Senhor e, no final da viagem ao monte Moriá,
descobre que não quer o sangue de Isaac: E Deus disse-lhe: – Não estendas a mão
contra o menino! Não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus pois não
me recusaste o teu filho, o teu filho único. (…). E Abraão deu a esse lugar o
nome "Javé providenciará"! Assim ainda hoje se costuma dizer:
"Sobre a montanha, Javé providenciará" [xii].
Acontecimentos similares costumam
suceder na vida dos santos. Recordemos, por exemplo, quando o nosso Padre
pensou que o Senhor lhe estava a pedir para deixar o Opus Dei para poder
realizar uma nova fundação, dirigida aos sacerdotes diocesanos. Que grande
sacrifício! De facto, depois de falar com várias pessoas na Santa Sé, chegou
mesmo a comunicar a sua decisão a D. Álvaro, à Tia Carmen, ao Tio Santiago, aos
membros do Conselho Geral e a mais alguns. Mas Deus não o quis assim, e
livrou-me, com a sua mão misericordiosa – carinhosa – de Pai, do sacrifício bem
grande que me dispunha a fazer de deixar o Opus Dei. Tinha dado conhecimento oficiosamente
da minha decisão à Santa Sé (...), mas vi depois com clareza que não era
necessária essa nova fundação, essa nova associação, posto que os sacerdotes
diocesanos cabiam perfeitamente dentro da Obra [xiii].
Como Abraão tinha sido libertado, São Josemaria
também foi, pois o Senhor fez-lhe entender que os sacerdotes diocesanos podiam
fazer parte do Opus Dei e ser admitidos como sócios da Sociedade Sacerdotal da
Santa Cruz, sem que isso afetasse a sua situação na diocese; mais ainda,
fortalecendo-se, assim, a sua união com o resto do clero e com o seu Bispo.
Fé que é fidelidade
A fé de Abraão manifesta-se também
como fidelidade: perante os diversos acontecimentos persevera na sua decisão de
seguir a vontade de Deus. A fé apoia-se na palavra de Deus e, por isso, dá
lugar a decisões tomadas em profundidade, que não estão submetidas a posteriores
“revisões" ou “re-pensamentos". Mantenhamos firme a confissão da
esperança, porque fiel é o que fez a promessa [xiv].
Na nossa vida, sempre haverá momentos
que nos servirão – com a graça de Deus – para fortalecer e consolidar a nossa
fé. Abraão foi submetido a uma prova tremenda: viu-se na situação de ter que
sacrificar aquele que era fruto da promessa que lhe tinha sido feito. O santo
patriarca não só teve que enfrentar circunstâncias difíceis, mas ainda esperou
contra toda a esperança [xv], porque
as circunstâncias convidavam a “julgar" a vontade divina, a duvidar do
próprio Deus e da sua fidelidade. Nisto radica a tentação que se apresentou a
Abraão.
Também nós nos podemos encontrar, por
vezes, com situações onde intuímos que o Senhor espera algo que talvez nos
contrarie: um passo em frente na vida cristã, a renúncia a um modo de fazer ou
mesmo a uma maneira de ser, talvez profundamente arraigada, mas que talvez não
favoreça a fecundidade do apostolado. Pode surgir o impulso de silenciar essa
inquietação, identificando aquilo que nos agradaria com o que deveria ser a
vontade divina: «A tentação de deixar Deus de lado para nos pormos nós próprios
no centro está sempre à espreita» [xvi].
Abraão não age assim: vai para o monte
Moriá, com um grande conflito interior, mas convencido de que antes ou depois
Deus providenciará [xvii].
E Deus, que está empenhado em fazer-se
entender, no final providencia. Para que se fizesse luz, Abraão teve que
percorrer o caminho completo, teve que pôr-se em marcha e chegar até ao fim.
Também nós, se procuramos secundar em
todo o momento a vontade divina, descobriremos que, apesar das nossas
limitações, Deus dá eficácia à nossa vida.
Saberemos e sentiremos que Deus nos
ama e não teremos medo de O amar: «a fé professa-se com a boca e com o coração,
com a palavra e com o amor» [xviii].
J. Yániz
[i] Gn12,
1-2.
[ii] Gn17,
5.
[iii] Bíblia
de Navarra (tomo I, 1997), comentário a Gn17, 5.
[iv] Cfr.
Gn18-19.
[v] S.
Josemaria, Caminho, n. 471.
[vi] Gn12, 4
[vii] Catecismo
da Igreja Católica, n. 2570.
[viii] Catecismo
da Igreja Católica, n. 144.
[ix] Hb11,
1.
[x] Cfr.
Catecismo da Igreja Católica, n. 145.
[xi] Gn22,
2.
[xii] Gn22,
12-14.
[xiii] S.
Josemaria, Carta 24-XII-1951, n. 3, em A. Vázquez de Prada, El fundador del
Opus Dei, vol. 3, Rialp, Madrid 2003, p. 171.
[xiv] Hb10,
23.
[xv] Cfr.
Rm4, 18.
[xvi] Francisco,
Audiência geral, 10-IV-2013.
[xvii] Gn22,
8.
[xviii] Francisco,
Audiência geral, 3-IV-2013.
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