Art. 1 — Se os dons se distinguem das
virtudes.
Art. 2 — Se os dons são necessários à
salvação do homem.
Art. 3 — Se os dons do Espírito Santo
são hábitos.
Art. 4 — Se são convenientemente
enumerados os sete dons do Espírito Santo.
Art. 5 — Se os dons são conexos.
Art. 6 — Se os dons do Espírito Santo
permanecem na pátria.
Art. 7 — Se a dignidade dos dons se
funda na enumeração de Isaias, cap. XI.
Art. 8 — Se as virtudes têm
preeminência sobre os dons.
Art.
1 — Se os dons se distinguem das virtudes.
O primeiro discute-se assim. — Parece
que os dons não se distinguem das virtudes.
1. — Pois, Gregório, expondo aquilo de
Job (Job 1, 2) — E nasceram-lhe sete filhos e três filhas — diz: Nascem-se sete
filhos quando pela concepção do bom pensamento surgem em nós as sete virtudes
do Espírito Santo 1. E cita aquilo da Escritura (Is 11, 2): E
descansará sobre ele o espírito de entendimento, etc., onde se enumeram os sete
dons do Espírito Santo. Logo, estes sete dons são virtudes.
2. Demais. — Agostinho, expondo aquilo
da Escritura (Mt 12, 45) — Então vai, e junta a si outros sete espíritos etc. —
diz: Sete vícios são contrários às sete virtudes do Espírito Santo2, i. é, aos
sete dons. Ora, esses sete vícios são contrários às virtudes consideradas em
sentido geral. Logo, os dons não se distinguem das virtudes consideradas nesse
sentido.
3. Demais. — Sujeitos a que convém a
mesma definição são idênticos. Ora, a definição da virtude convém aos dons,
pois, o dom é uma boa qualidade da mente, pela qual vivemos retamente, etc 3.
Semelhantemente, a definição do dom convém às virtudes infusas, pois, o dom é
uma doação irretribuível, segundo o Filósofo 4. Logo, as virtudes
não se distinguem dos dons.
4. Demais. — Alguns dos chamados dons
são virtudes. Pois, como já se disse 5, a sabedoria, o intelecto e a
ciência são virtudes intelectuais, o conselho pertence à prudência, a piedade é
uma espécie de justiça, e por fim, a coragem é uma virtude moral. Logo, as
virtudes não se distinguem dos dons.
Mas, em contrário, Gregório distingue
os sete dons, designados, diz, pelos sete filhos de Job, das três virtudes
teologais, representadas pelas três filhas do mesmo 6. E noutro
lugar, distingue os mesmos sete dons, das quatro virtudes cardeais.,
representadas, diz, pelos quatro ângulos da casa 7.
Se considerarmos o dom e a
virtude, quanto às suas noções, nenhuma oposição há entre esta e aquele. Pois,
a virtude, por essência, é assim chamada por conferir ao homem a perfeição de
agir rectamente, como já dissemos 8, ao passo que o dom essencialmente
é relativo à causa de onde procede. Ora, nada impede, que o precedente, como
dom, de uma certa causa, confira a quem o recebe a perfeição de agir rectamente,
sobretudo que, como já dissemos 9, certas virtudes são infundidas em
nós por Deus. Por onde, a esta luz, o dom não pode ser distinto da virtude.
E por isso alguns ensinaram não devem
os dons ser distintos das virtudes. — Mas nem por isso deixa de lhes ser menor
a dificuldade, quando se trata de dar a razão de se considerarem certas
virtudes, e não todas, como dons, e de certos dons não se contarem evidentemente
entre as virtudes, como, p. ex., o temor.
E daí o dizerem outros que os dons se
devem distinguir das virtudes, mas sem darem suficiente causa de distinção, de
tal modo comum às virtudes que de nenhum modo conviesse aos dons, e vice-versa.
E então outros, considerando que, dentre os sete dons, quatro — a sabedoria, a
ciência, o intelecto e o conselho — pertencem à razão, e três — a coragem, a
piedade e o temor — à potência apetitiva, disseram que dons fortificam o livre
arbítrio, enquanto faculdade racional, e as virtudes, enquanto faculdade
voluntária. E isso por descobrirem só duas virtudes — a fé e a prudência — na
razão ou intelecto, pertencendo às outras a potência apetitiva ou afectiva. Ora,
seria necessário, se esta distinção fosse pertinente, que todas as virtudes pertencessem
à potência apetitiva, e todos os dons, à razão.
Outros ainda, tiveram em vista o seguinte
citação de Gregório: o dom do Espírito Santo que forma, na mente que lhe é
obediente, a prudência, a temperança, a justiça e a fortaleza, também a mune,
pelos sete dons, contra todas as tentações 10. E consideraram então
as virtudes como ordenadas a obrar bem e os dons, a resistir às tentações. —
Mas esta distinção também não é suficiente. Pois, também as virtudes resistem
às tentações, que induzem aos pecados e que as contrariam pois cada um resiste
ao que lhe é contrário, como bem vemos suceder com a caridade, da qual se diz
(Ct 8, 7): as muitas águas não puderam extinguir a caridade. Outros, por fim,
reflectindo que a Escritura nos transmite esses dons como existiram em Cristo,
disseram que as virtudes se ordenam, absolutamente, ao bem agir, ao passo que
os dons nos tornam semelhantes a Cristo, principalmente quanto aos seus
sofrimentos, pois os dons de que tratamos resplenderam principalmente na sua
paixão. Mas também isto não é suficiente. Pois, o próprio Senhor nos induz
precipuamente a assemelharmo-nos com ele pela humildade e pela mansidão,
conforme está na Escritura (Mt 11, 29): aprendei de mim, que sou manso e
humilde de coração, e também pela caridade, conforme (Jo 13, 34): Que vos amei
uns aos outros, assim como eu vos amei. Ora, estas virtudes resplandeceram,
precipuamente, na paixão de Cristo.
E portanto, para distinguir os dons,
das virtudes, devemos seguir o modo de falar da Escritura, que no-los
transmite, não sob o nome de dons, mas antes, sob o de espíritos. Assim, diz
Isaias (11, 2): E descansará sobre ele o espírito de sabedoria e de
entendimento etc. Essas palavras dão manifestamente a entender que tal
enumeração dos sete dons os supõe existentes em nós por inspiração divina, e a
inspiração implica uma moção externa. Ora, devemos considerar que há no homem
um duplo princípio motor: um, interior — a razão, outro exterior — Deus, como
já dissemos 11, e o Filósofo também diz o mesmo 12. Ora,
como é manifesto, todo o movido deve necessariamente ser proporcionado ao motor,
e a perfeição do móvel, como tal, consiste em ter uma disposição que o faça bem
receber o movimento do motor. Quanto mais elevado porém for o motor, tanto mais
necessariamente, e por uma disposição mais perfeita, o móvel se lhe há-de proporcionar,
assim, vemos ser necessário o discípulo dispor-se tanto mais perfeitamente, a
receber a doutrina do mestre, quanto mais perfeita ela for. Ora, é manifesto
que as virtudes humanas aperfeiçoam o homem, ao qual é natural ser movido pela
razão, em todos os seus actos, interior ou exteriormente. Logo, é necessário que
existam no homem perfeições mais altas que o disponham a ser movido por Deus. E
tais perfeições chamam-se dons, não só por serem infundidos por Deus, mas
também por disporem o homem a deixar-se facilmente mover pela inspiração
divina, como diz Isaías (50, 5): O Senhor me abriu o ouvido, e eu o não
contradigo, não me retirei para traz. E o Filósofo também diz: quando movidos
por inspiração divina não devemos buscar conselho na razão humana, mas seguir
essa inspiração, porque somos movidos por um princípio superior 13 à
razão humana. E assim o entendem os que dizem que os dons aperfeiçoam o homem
para actos superiores aos da virtude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. —
Os dons em questão também se denominam virtudes, conforme a noção comum de virtude.
Tem contudo algo de supereminente a essa noção, por serem certas virtudes
divinas que aperfeiçoam o homem, enquanto movido por Deus. E por isso o
Filósofo introduz, além da virtude comum, uma virtude heróica ou divina, que
faz certos serem chamados homens divinos 14.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os vícios sendo
contrários aos bens da razão também contrariam as virtudes, como contrários,
porém, à divina inspiração, contrariam os dons. Ora, contrariar a Deus é também
contrariar a razão, cujo lume deriva de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A definição em
apreço dá-se da virtude quanto ao seu modo comum de ser. Donde, se quisermos
restringir a definição às virtudes, enquanto distintas dos dons, diremos que a
expressão — pela qual vivemos rectamente — deve ser entendida da rectidão da
vida conforme a regra da razão. Semelhantemente, o dom, enquanto distinto da
virtude infusa, pode ser considerado como o dado por Deus para lhe recebermos a
moção, que leva o homem a seguir rectamente as suas inspirações.
RESPOSTA À QUARTA. — A sabedoria se
chama virtude intelectual, enquanto procede do juízo da razão. Chama-se porém,
dom, enquanto obra por instinto divino. E o mesmo se deve dizer nos demais
casos.
(Nota:
Revisão da tradução portuguesa por ama)
____________________________________________
Notas:
1.
I Moral. (c. XXVII).
2.
I De quaestion. Evangel. (quaest. VIII).
3. Q. 55, a. 4.
4. Lib. IV Topic. Cap.
IV.
5.
Q. 57, a. 2.
6.
I Moral. (ubi supra).
7. II Moral. (cap. XLIX).
8. Q. 55, a. 3, 4.
9. Q. 63, a. 3.
10. II Moral. (cap. XLIX).
11. Q. 9, a. 4, 6.
12. In cap. De
bona fortuna (Ethic. Eudem, lib. VII, cap. XIV.
13.
In cap. De bona fortuna (loc. cit.).
14.
VII Ethic. (lect. I).
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