20/06/2011

Cercados de fraqueza Afonso Cabral)

Navegando pela minha cidade
Aristóteles disse que o homem é um animal social dizendo que a união entre os homens é natural, porque o homem é um ser naturalmente carente, que necessita de coisas e de outras pessoas para alcançar a sua plenitude.

E o homem é tão e tanto assim – animal social – que até para viver as suas misérias e fraquezas  precisa da companhia dos outros.

A Praça da República - antes da coisa ser publica – chamava-se Campo de Santo Ovídio e  por isso o enorme quartel que lá se situa se chamava Quartel de Santo Ovídio.

Foi mandado construir em 1790 pela Rainha D. Maria I; em 1809 serviu de aquartelamento e de prisão da tropa do General Soult na 2ª Invasão Francesa; posteriormente passou a ser o Quartel General da Região Militar Norte e desde 2006 é a sede do Comando de Pessoal do Exército.

É interessante  verificar-se o continuum histórico na parte de cima da sua grande Porta de Armas. Em toda a largura do  portão e com cerca de dois metros de altura, um painel em ferro fundido apresenta espingardas de baionetas caladas, clarins, sabres  e machados cruzados, tambores, um barril de pólvora e um capacete.

Mas o mais  curioso é que toda esta panóplia militar oitocentista sobrepõe-se a dois estandartes cruzados sobre outros dois que, orgulhosamente, estendem em dobras sucessivas de alto abaixo, as suas cores azul e branca.

As cores monárquicas em plena Praça da República não deixam de ser paradoxais, mas reveledoras do continuum histórico da nação e do povo, que está acima e para além dos regimes.
Admito que ainda lá estejam, mais por preguiça da República do que por  resistência da Monarquia.

Mas, voltemos à questão inicial – às misérias e fraquezas do animal social – porque o quartel é de onde tudo se vê. Ou seja, aquela enorme frontaria que vai de uma rua a outra rua, reinou e preside sobre a grande praça que todas noites (especialmente as do fim de semana) se transforma num imenso campo de batalha.

Eu conheço este campo de batalha no dia a seguir a ela. Já sob o sol, restam espalhados - ou concentrados onde a luta  foi mais renhida - os despojos e os corpos dos vencidos.

Sob um arbusto, um corpo jaz com a boca aberta e com os braços debaixo do ventre; o forro de um dos bolsos sai-lhe para fora das calças como o sangue de um ferida.

Num banco, outro corpo meio torcido descansa no oblívio da sua tristeza, com a barba de quinze dias cheia de flocos daquela espécie de neve de lã da floração dos choupos.

Por todo o lado, como estilhaços de granadas, dezenas de garrafas de cerveja Cergal e de vinho Moita Velha atestam da violência do combate contra os demónios interiores.

No ar, a acidez do cheiro a cerveja e a vinho derramado, vomitado, urinado, tem a espessura do desespero e a cor do suor da luta corpo a corpo com as baionetas de vidro que estriparam e esquartejaram a alma até à nascença.

Numa ironia insultuosa e sarcástica, no fim desse campo de batalha e de costas para o quartel, em cima de uma coluna de granito - trocista, ébrio, cercado de cachos de uva – ergue-se o busto de Baco a rir alarvemente.

Para aqueles homens cercados de fraqueza, feridos e vencidos pelas balas e metralha da quinta coluna, aquele quartel cheio de armas não lhes serviu para nada.

E para muito menos lhes serviu a sua orgulhosa divisa: SOMOS NÓS QUE FAZEMOS O DESTINO

Afonso Cabral

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