10/03/2011

Da velhice (Afonso Cabral)

Navegando pela minha cidade

Tenho para mim que qualquer tipo de eufemismo é uma forma de cobardia. Porque é cobardia fugir ou fingir. Vem isto a propósito da enorme estupidez que é a moda do eufemístico sénior quando se fala de velhos. Neste caso, parece-me que a cobardia está em achar-se que a velhice é uma fase da vida má ou indesejável e como tal, deve ser tratada – ou nomeada – de forma diversa: mais suave; mais subtil; mais cuidadosa; mais em latim.
Cícero (106-43 a.C.) dedicou a um seu grande amigo um livro intitulado: CATÃO-O-VELHO OU DA VELHICE. “O tema da obra é a velhice. Estabelece Catão os seguintes princípios gerais: a velhice não é para o sábio um mal; devemos seguir o curso natural da vida”[1].

Na vida há sempre uma razão de causa e efeito. Não há acasos nem coincidências. Se as há, talvez sejam apenas uma forma de Deus manter o anonimato.
Aquilo que acontece com a velhice é o resultado da juventude e da maturidade. Ou seja, o somatório do que acontece quando deixamos a vida passar sem fazer qualquer esforço para aumentarmos as nossas qualidades e combatermos os nossos defeitos ou se fizemos exactamente o contrário. Quero com isto dizer que somos ou seremos na velhice aquilo que fomos sendo durante a vida.
O que originou este preâmbulo foi a consideração daquilo que me parece um estereótipo completamente errado: o do velhinho bonzinho, coitadinho. Por exemplo, a imagem do sorridente casal de velhinhos do Lar do Comércio pode ser completamente falsa. Depende do que eles fizeram com a sua vida.
Mas eu exemplifico: na Rua do Monte dos Burgos existe um asilo de velhos pobres ou de pobres velhos, não sei bem qual é a diferença. Não sei porquê mas é imediatamente ao lado da 13ª esquadra da PSP. A coisa está mais ou menos encriptada porque não tem qualquer placa a dizer do que se trata. O que existe só é visível a quem tenha boa capacidade de observação e esteja parado numa bicha de automóveis parados até aos semáforos do Carvalhido. Reunindo-se estas circunstâncias: estar parado dentro de um automóvel a cem metros dos semáforos do Carvalhido e ter bom espírito de observação, é possível ver no muro de pedra uma inscrição feita com pedras mais pequenas e rodeadas com o mesmo cimento que uniu as pedras do muro que diz: Casa dos Pobres. Claro que há sinais exteriores bem visíveis que são o permanente vai e vem de canadianas prateadas com o seu cilc clic clic metálico pelo passeio fora. Aconteceu que um dia, navegava eu nessa rua quando vejo dois velhos de canadianas, acompanhadas pelas respectivas trôpegas pernas, a conversarem. E de repente começam à canadiada nos corpos, nas pernas e nas cabeças um do outro, com um ódio tal que todo ele brilhava no alumínio delas. Conclusão: os cabelos eram brancos; as pernas trôpegas; as veias esclerosadas e a idade avançada, mas o ódio era novíssimo e imenso. Então percebi porque é que dizem que o diabo sabe muito: não é só por ser muito inteligente mas – principalmente - porque é muito velho. Como escreveu Cícero: a má índole e a desumanidade são dolorosas para qualquer idade[2].

Afonso Cabral, 2011,01,28




[1] Marco Túlio Cícero – Catão-o-Velho ou Da Velhice – Biblioteca Editores Independentes – 2009 – pág. 9
[2] [2] Marco Túlio Cícero – Catão-o-Velho ou Da Velhice – Biblioteca Editores Independentes – 2009 – pág. 16

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