A voz do Magistério
O Magnificat é um cântico
que revela em filigrana a espiritualidade dos anawim bíblicos, isto é, daqueles fiéis que se reconhecem
"pobres" não só no desapego de qualquer idolatria da riqueza e do
poder, mas também na humildade profunda do coração, despojado da tentação do
orgulho, aberto à irrupção da graça divina que salva…
O primeiro movimento do
cântico mariano [i] é
uma espécie de voz solista que se eleva em direcção ao céu para alcançar o
Senhor. Ouvimos precisamente a voz de Nossa Senhora que fala assim do seu
Salvador, que fez maravilhas na sua alma e no seu corpo. Com efeito, observe-se
o ressoar constante da primeira pessoa: "A minha alma... o meu espírito...
meu salvador... chamar-me-ão bem-aventurada... fez grandes coisas em
mim...". A alma da oração é, portanto, a celebração da graça divina que
transbordou no coração e na existência de Maria, tornando-a a Mãe do Senhor.
A estrutura íntima do seu
canto é, portanto, o louvor, o agradecimento, a alegria agradecida. Mas este
testemunho pessoal não é solitário, intimista ou puramente individualista,
porque a Virgem Mãe está consciente de ter uma missão a cumprir pela humanidade
e de que a sua vida se insere na história da salvação. E assim pode dizer:
"A sua misericórdia estende-se de geração em geração sobre aqueles que o
temem"[ii].
Com este louvor ao Senhor, Nossa Senhora dá voz a todas as criaturas redimidas,
que no seu Fiat, assim como na figura de Jesus nascido da Virgem, encontram a
misericórdia de Deus.
Neste ponto desenvolve-se o
segundo movimento poético e espiritual do Magnificat[iii].
Ele possui uma tonalidade mais coral, como que se à voz de Maria se associasse
a da inteira comunidade dos fiéis que celebram as escolhas surpreendentes de
Deus. No original grego do Evangelho de Lucas temos sete verbos no aoristo [iv],
que indicam igual número de acções que o Senhor realiza de modo permanente na
história: "Manifestou o poder do seu braço... dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu-os de bens...
despediu os ricos... acolheu Israel".
Nestas sete acções divinas é
evidente o "estilo" no qual o Senhor da história inspira o seu
comportamento: ele declara-se do lado dos últimos. O seu projecto com
frequência está escondido sob o terreno obscuro das vicissitudes humanas, que
vêem triunfar "os soberbos, os poderosos e os ricos". Contudo a sua
força secreta está destinada a revelar-se no final, para mostrar quem são os
verdadeiros predilectos de Deus: "Os que o temem", fiéis à sua
palavra; "os humildes, os famintos, Israel seu servo", isto é, a
comunidade do povo de Deus que, como Maria, está constituída por aqueles que
são "pobres", puros e simples de coração. É aquele "pequeno
rebanho" que está convidado a não temer, porque ao Pai aprouve conceder-lhe
o seu reino[v]. E assim
este cântico convida a associarmo-nos a este pequeno rebanho, a ser realmente
membros do Povo de Deus na pureza e na simplicidade do coração no amor de Deus.
Aceitemos então o convite,
que no seu comentário ao texto do Magnificat, nos dirige santo Ambrósio. O
grande Doutor da Igreja diz: "Esteja em cada um a alma de Maria que
engrandece o Senhor, esteja em todos o espírito de Maria que exulta em Deus;
se, segundo a carne, uma só é a mãe de Cristo, segundo a fé todas as almas
geram Cristo; de facto, cada uma acolhe em si o Verbo de Deus... A alma de
Maria engrandece o Senhor, e o seu espírito exulta em Deus, porque, consagrada
com a alma e com o espírito ao Pai e ao Filho, ela adora com afecto devoto um
só Deus, do qual tudo provém, e um só Senhor, em virtude do qual todas as
coisas existem"[vi].
Neste maravilhoso comentário
do Magnificat de santo Ambrósio sensibiliza-me de modo particular a palavra
surpreendente: "Se, segundo a carne, uma só é a mãe de Cristo, segundo a
fé todas as almas geram Cristo: de facto cada uma acolhe em si o Verbo de
Deus". Assim o santo Doutor, interpretando as palavras de Nossa Senhora,
convida-nos a fazer com que o Senhor encontre um abrigo na nossa alma e na
nossa vida. Não devemos apenas levá-lo no coração, mas devemos levá-lo ao
mundo, de forma que também nós possamos gerar Cristo para o nosso tempo.
Peçamos ao Senhor que nos ajude a magnificá-lo com o Espírito e com a alma de
Maria e a levar de novo Cristo ao nosso mundo.
Bento
XVI (séc. XXI), Discurso na audiência geral, 15-II-2006.
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